Refiro-me à madrugada que sucedeu ao dia das eleições autárquicas, no dia 26, a de Segunda-feira, salientando, no entanto, que não pretendo deter-me na análise dos resultados, seria pretensão: os mais reputados críticos retalharam e disseram de sua justiça.
Assim, o que me induz a escrever este texto nada mais será que o gosto de observar imagens de comportamento inesperado, de acontecimentos insólitos, todavia dignos de nota e da maior atenção. Afinal, foi noite de festim de novos lobos de ideias concertadas, curricula invejável; em momento fulcral, destacaram-se na política… Apanhada a nação de surpresa aguardaremos, tranquilos (?), o prosseguimento de novos arranjos políticos: a estabilidade deixou de ser redundante, muito pelo contrário.
De certo modo, tornou-se evidente que a estabilidade da coisa política irá manter-se, com alguns acertos, num cenário surpreendente de inevitáveis jogos de cintura; a polarização tende, por norma, a reforçar o campo das esquerdas, mas tal processo parece lento e difícil, se atentarmos na ação política conjunta.
E voltando ao tema do texto: na madrugada insólita, tais lobos, que não perseguem o sangue nem privilegiam facas longas, limitaram-se à manipulação discursiva, em cumplicidade geracional na sociedade portuguesa, mas poderia ser noutra, em que os políticos de carreira continuam a reger-se pelo teor de compromissos éticos seguintes à revolução de 1974; pelo seu lado, políticos tornados adultos no século seguinte mantêm tudo o de relevante na zona obscura da memória, memória por interposto meio, nada presenciaram; logo, sem preconceito, problemas de consciência em relação ao pretérito (seria impossível que tal lhes surgisse espontaneamente), reformulam aflorações retóricas da harmonia interclassista. Tenta-se, sobretudo, superar conflitos pela negociação de interesses contraditórios, pela «concertação social» entre delegados de classes antagonistas, qualquer organismo de índole totalitária que fundamentalmente rejeita; na democracia atual, assemelhar-se-ia a uma caricatura do passado: o Estado forte liga-se a um eufemismo voltado para a ditadura. Quando olhamos para o passado, as coisas parecem-nos tranquilas por ter-se entretanto efetuado um recuo organizado…
Jamais poderíamos pensar no regresso, qualquer regresso, o tempo flui arrastando consigo mentalidades; o homem e a mulher do séc. XXI não são os do séc. XIX; e já não necessitamos de «chefia carismática» contrária à democracia…
No entanto, ocorre-me a questão da diferença definida por Weber, entre a ética da responsabilidade, que tem em vista resultados, e uma ética de convicções, em que a primeira atitude não é a racionalidade das intervenções mas a adequação entre os meios e os valores assumidos, repudiando o exercício da mentira ou da dissimulação.
Decorridos poucos dias sobre a dita madrugada de triunfo ferino, ainda não temos meios para avaliar o que daí advirá; sejamos pacientes, embora delongas de tempo sejam apenas úteis a quem recebe o voto não a quem o usa.
Estas referências sumárias são tentativa de acautelar a inquietação, no que toca ao diálogo, quando justificada pelos factos, desde que não astuciosos. A Política e a Ética raramente andam a par; todavia, nada impede que tal se verifique.
«Portugueses, quem manda?»; «o Povo, evidentemente.»
02.10.2021