Entre Livros       

Índice:

41 - Entrevista da Prof. Doutora Ana Maria Gottardi

40 - “I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil”

39 - FILOMENA CABRAL, UMA VOZ CONTEMPORÂNEA

38 - EUROPA - ALEGRO PRODIGIOSO

37 - FEDERICO GARCÍA LORCA

36 - O PORTO CULTO

35 - IBSEN – Pelo TEP

34 - SUR LES TOITS DE PARIS

33 - UM DESESPERO MORTAL

32 - OS DA MINHA RUA

31 - ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS

30 - MEDITAÇÕES METAPOETICAS

29 - AMÊNDOAS, DOCES, VENENOS

28 - NO DIA MUNDIAL DA POESIA

27 - METÁFORA EM CONTINUO

26 - ÁLVARO CUNHAL – OBRAS ESCOLHIDAS

25 - COLÓQUIO INTERNACIONAL. - A "EXCLUSÃO"

24 - As Palavras e os Dias

23 - OS GRANDES PORTUGUESES

22 - EXPRESSÕES DO CORPO

21 - O LEGADO DE MNEMOSINA

20 - Aqui se refere CONTOS DA IMAGEM

19 - FLAUSINO TORRES – Um Intelectual Antifascista

18 - A fidelidade do retrato

17 - Uma Leitura da Tradição

16 - Faz-te à Vida

15 - DE RIOS VELHOS E GUERRILHEIROS

14 - Cicerones de Universos, os Portugueses

13 - Agora que Falamos de Morrer

12 - A Última Campanha

11 - 0 simbolismo da água

10 - A Ronda da Noite

09 - MANDELA – O Retrato Autorizado

08 - As Pequenas Memórias

07 - Uma verdade inconveniente

06 - Ruralidade e memória

05 - Bibliomania

04 - Poemas do Calendário

03 - Apelos

02 - Jardim Lusíada

01 - Um Teatro de Papel


Entendo que todo o jornalismo tem de ser cultural, pois implica uma cultura cívica, a qual não evita que, na compulsão, quantas vezes da actualidade, se esqueçam as diferenças.

No jornalismo decididamente voltado para a área cultural, todos os acontecimentos são pseudoeventos, cruzando-se formas discursivas em que as micropráticas têm espaço de discussão.

Não sendo um género, o jornalismo cultural é contudo uma prática jornalística, havendo temas que podem ser focados numa perspectiva cultural especifica ou informativa, numa área não suficientemente rígida, embora de contornos definidos.

Assim o tenho vindo a praticar ao longo dos anos, quer na comunicação social quer, a partir de agora, neste espaço a convite da 'Unicepe'.

Leça da Palmeira, 23 de Setembro de 2006

2009-01-10
Entrevista da Prof. Doutora Ana Maria Gottardi



Publicamos hoje entrevista da Prof. Doutora Ana Maria Gottardi (UNESP/Marília) a Filomena Cabral, para a revista "Estudos", daquela Universidade, a propósito do "Ciclo Americano", conjunto de cinco romances historiográficos (1) que concretizam um projecto que envolveu estudo, pesquisa, dedicação, tempo (dez anos), fixando a memória do mundo, das europas fora da Europa, privilegiados o Brasil, Angola e os Estados Unidos da América, narrativas em que a cidade do Porto, o Norte de Portugal, tem o destaque que a História lhe destinou, aquele que, enquanto portugueses, nos propusemos.  

Filomena Cabral, conhecida também dos que procuram na nossa página a rubrica "Entre Livros", tem merecido, precisamente no Brasil, olhar atento sobre a sua produção literária. Ali recebeu um Prémio Especial de Literatura Portuguesa, pela Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA), entre outras distinções. Entretanto, da sua obra, objecto de atenção de académicos e universidades, existe tese de Mestrado em Letras, de 1999 (USP) "O Escavar da Memória, como técnica narrativa"(2). Em preparação, também na USP, um Doutorado em literaturas comparadas, na "ótica do resgate e reinvenção do lastro africano na literatura brasileira (na obra de Heloísa Maranhão) e portuguesa (na de Filomena Cabral), incidente em Mar Salgado, o livro de Filomena sobre a Guerra Colonial e mais aquém.  

Recentemente, na sequência de um outro Doutorado em projecto, na Universidade Federal de Pernambuco, no Recife, sobre a mesma obra e “Brasil.Díptico” (Trilogia do Mar), e após presença no "Encontro Internacional de Linguística de Assis", em Outubro último, verifica-se no programa de novo Mestrado em Letras, desta feita na Universidade de Marília, a selecção de um conjunto de três romances (do ciclo mencionado acima) sobre a formação do Brasil, numa rede de disciplinas: "ORNATO CANTABILE", sécs. XV/XVI, "OURO, Honor, Corsários, Ilusiones", sécs. XVII/XVIII e "VIAGEM, Memória e Sertão", sécs. XIX/XX; isto é, desde os primórdios do achamento e do que o precedera, numa fase expansionista, até ao final da Primeira República, em Portugal e no Brasil: assistia-se ao redesenhar de territórios ideológicos, chegara o tempo de Getúlio Vargas, de Oliveira Salazar.    

1)Ornato Cantabile; Ouro. Honor, Corsários, Ilusiones; Viagem, Memória e Sertão; Mar Salgado; Oklahoma Blue.

2)Rita Caparroz Belmudes, sob orientação da Prof. Doutora Nelly Novaes Coelho (USP), abrangendo a tetralogia iniciada com "Tarde de mais Mariana" (1984) e  terminada com "Prantos" (1990), obras, entre outras, elogiadas e apresentadas por Óscar Lopes.



Filomena Cabral    

Entrevista da Prof. Doutora Ana Maria Gottardi

Entrevista com Filomena Cabral, Escritora e Jornalista Portuguesa



Interview with Filomena Cabral, a Portuguese Author and Journalist

Ana Maria Gottardi

Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de Marília – Unimar – Marília/SP – Brasil.

E-mail: gottard@terra.com.br

RESUMO

A entrevista focaliza a escritora Filomena Cabral, reconhecida poeta, ficcionista, dramaturga, ensaísta e jornalista portuguesa, dando ênfase a seus romances de cunho histórico, que enfocam variadas épocas da História do continente americano, em especial da realidade brasileira. A importância de seu trabalho evidencia-se pelas muitas homenagens e prêmios que recebeu tanto no Brasil como nos Estados Unidos.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Portuguesa – romance histórico – jornalismo.

ABSTRACT

This interview focalizes the author Filomena Cabral, very known portuguese poet, novelist, playwright, essayist and journalist, emphasizing her historical novels, that show several periods of the American History, mainly of the Brasilian reality. The importance of her works shows up from the many tributes and prizes that she has received both in Brazil and USA.

KEY-WORDS: Portuguese Literature – Historical novels – journalism.

A escritora Filomena Cabral, poeta, ficcionista, jornalista, dramaturga e ensaísta portuguesa, nasceu no Porto, onde reside atualmente. Viveu durante alguns anos em Angola, na década de 60, o que certamente veio a se refletir no acentuado interesse da autora pelas antigas colônias portuguesas, tanto em África como na América. Sua extensa obra vem sendo publicada ao longo dos anos, desde seu primeiro livro de poesias Sol Intermitente, de 1976.

Iniciada na atividade jornalística nos maiores jornais diários portugueses, colaborou também n’ O Estado de São Paulo (JT). Foi convidada a participar, no Brasil, em diversas Bienais Internacionais do Livro e em Congressos de Língua e Literatura Portuguesa, por iniciativa de universidades federais e estaduais (São Paulo, Belo Horizonte, Campinas , Brasília e Recife), das Pontifícias Universidades Católicas de São Paulo e Rio de Janeiro, instituições onde proferiu palestras sobre criação e estética literária.

Pela relevância de seus romances do ciclo americano publicados até a época, enfocando vários momentos da História Brasileira, a Secretaria de Estado da Educação do Estado de São Paulo solicitou sua presença nas Comemorações dos 500 Anos da Descoberta do Brasil. A escritora integra ainda a Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes, em São Paulo, cidade onde recebeu o Prêmio Especial de Literatura Portuguesa, da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA), no Memorial da América Latina. Em Brasília, foi-lhe conferido o Diploma de Mérito Cultural, pela Câmara Brasileira do Livro.

Nos Estados Unidos, Filomena Cabral foi considerada Woman of the Year, em 2001, e World Citizen, em 2002, pelo American Biographical and Research Institute, em cuja biblioteca e arquivo encontram-se catalogados seus romances que formam “Brasil. Díptico”. Ainda nos EUA, foi-lhe atribuído, em 2003, o International Peace Prize, por The United Cultural Convention of the USA (Organização Internacional e Multicultural), e, em 2006, o Master Diploma da World Academy of Letters honoris causa.

Esse reconhecimento internacional da obra da autora, particularmente por parte do Brasil e Estados Unidos, são um tributo ao seu interesse pela História do continente americano, que demandaram acuradas e significativas pesquisas, cujo resultado são romances que, a par de seu valor literário, relevam-se como textos de verdadeiro interesse histórico.

1

Estudos – Qual a sua primeira actuação no campo jornalístico?

Cabral – Data de Agosto de 1982, na área do jornalismo cultural – Artes e Espectáculos –, entrevistara, por iniciativa própria, um artista plástico e organizador de uma Bienal de Arte. Enviei o texto para “O Primeiro de Janeiro”, seria publicado na última página, dois ou três dias depois. De minha autoria, tinha três livros de poesia e uma novela; desnecessário dizê-lo: ninguém me conhecia na comunicação social. Em 1984, iniciei colaboração no “Jornal de Letras” (JL); ali assinei reportagens, entrevistas e recensões; era, em simultâneo, coordenadora de uma página cultural em “O Comércio de Porto”. Editado o meu primeiro romance, “Tarde de mais Mariana”, premiado, seria apresentado por Óscar Lopes (também os cinco romances seguintes) e prefaciado por Agustina Bessa Luís. No “Diário de Lisboa”, publiquei inúmeros contos de pendor fantástico, até ao fecho do jornal (1990); resta mencionar o “Jornal de Notícias”, onde divulguei obras de mais de uma centena de escritores de Língua Portuguesa, quer nas páginas de Cultura quer no “Noticias Magazine”, entre 1992 e 1995, o “Letras & Letras” e o vosso “ O Estado de S. Paulo” (JT), no Suplemento de Sábado.

Estudos – Como jornalista, qual a sua visão da situação africana que você vivenciou por alguns anos?

Cabral – Se as “Artes” me motivaram, de início, para o jornalismo, a História (o meu curso de eleição, com a Filosofia), a guerra colonial, o 25 de Abril, nunca dissociados, constituiriam um marco, a partir do qual tentaria avaliar o mundo: seremos, no decorrer do tempo, repositório de emoções e sentimentos-fósseis, cujas marcas permanecem na memória, como se riscada – pela aresta viva do sílex – a matéria friável dos sonhos. Todos tentamos imprimir a nossa marca, o nosso fóssil no coração do mundo. A minha memória afectiva desde logo foi poiso para o sofrimento em diferido, subentendido, transferido, denegado, em estratégias de sobrevivência, na vida e no texto (mais recentemente em “A Noite Transfigurada”).

Em Angola vivi os anos mais intensos da minha vida, permanência com um final trágico, tal poderia ter contribuído para que, decalcando a atitude de tantos, me tivesse fechado em mim mesma com o ressentimento ou o desgosto, às voltas com o sentimento de perda, demolidor. Não fora afinal gratuita a minha colaboração com a F.A.O., os problemas do “terceiro mundo” – que agora já não sabemos muito bem delimitar – rodeavam-me, contribuiriam para futura memória, embora considerasse que Angola era Portugal em África, como o Brasil fora Portugal na América. Resta a Lusofonia.

Precisamente no que respeita à Língua Portuguesa – uma vez que as riquezas de Angola são as mesmas de sempre, idênticas a gula secular de potências estrangeiras e uma relativa ingenuidade das gentes, talvez atordoados alguns com o propalado crescimento económico – , apesar da preponderância de diferentes idiomas no mundo, pelas eternas razões, políticas e/ou exploratórias, seja das minas ou outros, continuam os angolanos falantes de uma “língua universal”. Creio chegada a hora de pertinente análise sócio-cultural, económico-política e geo-estratégica do Mundo Contemporâneo e descobrir, activa e organizadamente, o lugar insubstituível dos “espaços de lusofonia”, para bem do espaço humano. Mais que um projecto ou “questão cultural”, não será a Lusofonia, além de um muito importante projecto, uma questão de “estratégia política”? Para quando uma Comunidade Lusófona liberta de condicionantes políticas, económicas e culturais de antanho, ou de agora ou do futuro, superadas as ideologias clássicas do “luso-tropicalismo”, do “não-racionalismo brasileiro”? se bem que o “glorioso passado de Portugal” e o “glorioso futuro do Brasil”, enquanto mitos, devam, em meu entendimento, ser mantidos. Já nas palavras de Almeida Garrett, a “Lusofonia” era o grande e específico peso de Portugal na “balança da Europa” e do Mundo, quanto mais agora que o Brasil integra as potências do século XXI.

Enquanto tal, nos Países Africanos, a re-emergência de certos complexos e de um provincianismo típico de elites pseudo-globalizadas, pretensamente des-africanizadas, por certo des-humanizadas levam a associar lusofonia a utopia. Não será preferível a “pantopia” dos direitos humanos, da democracia e do desenvolvimento económico-social de todos os países africanos de Língua Portuguesa?

Estudos – Qual a sua actuação, no momento, na mídia portuguesa?

Cabral – Com o decorrer do tempo, demonstrei empenho e capacidade, considerada a vasta bibliografia. A pesquisa incansável – durante doze anos – contribuiu para que me afastasse dos jornais, ficaram pelo caminho propostas à RTP para rubricas na área cultural (literaturas), jamais concretizadas. Penso recomeçar, agora por convite, a colaboração em “O Primeiro de Janeiro”.

No entanto, no intuito de neutralizar um certo silêncio ruidoso, de há um ano a esta data tenho publicado, no “site” da Unicepe, temas literários e outros, em coerência: não existem tabus (textuais, políticos, ou de qualquer ordem), desde que, bem informados, tenhamos bom senso na abordagem dos temas, das sensibilidades.

Estudos – Pensando no romance OKLAHOMA BLUE, cujo título é em Inglês, gostaríamos que comentasse a repercussão internacional de suas obras, mesmo em países de outras línguas.

Cabral – Creio que o possível interesse irradia das Universidades, dos departamentos de Língua e Literatura Portuguesas, de História, talvez de Filosofia, tenho vindo a acumular, ao longo dos anos, opiniões elogiosas de grandes críticos literários (mais recentemente, Álvaro Manuel Machado, sobre “A Noite Transfigurada”) e de historiadores, dos quais destaco António Pedro Vicente (“Mar Salgado”) e Fernando Rosas, cujas opiniões convergem na atribuição de algum merecimento aos meus romances historiográficos, assim se me desculpando a imodéstia.

OKLAHOMA BLUE, apresentado pelo segundo em Lisboa, foi por ele considerado “metáfora de Portugal, na primeira metade do séc. XX”, salientando o rigor factual; abrange o livro os anos da Segunda Guerra Mundial e os que a antecedem, incluindo o último quartel do século XIX, e estabelece, para além de outros, nexos necessários em função do “ciclo americano”.

A alusão ao “blue” afro-americano conduz ao “jazz”, que pretextara episódio fulcral em “Brasil.Díptico”, séc. XIX/XX, durante a viagem da francesa progressista frequentadora da “Colombo”, no Rio dos anos vinte, aos Estados Unidos, acompanhada de Vladimir, suposto aristocrata russo refugiado, talvez espião, ambos no séquito de certa brasileira abastada. Em OKLAHOMA BLUE, surgem linhas melódicas sinuosas, sombrias, melancólicas, aterradoras, por efeitos de rajadas mortíferas no mundo ígneo dos grandes conflitos mundiais, dos lamentos em campos de extermínio, na cadência da marcha nazi e fascista, das tentações totalitárias, e ainda pela evocação do avô americano da família Álamo, que chegara aos Estados Unidos quando a corrida ao ouro terminara; a personagem oriunda do Norte de Portugal, necessariamente, fora dar a Penhandale, a narradora alvitra que se enganou na rota, na época sonhava-se com o portentoso Brasil, não com os Estados Unidos.

O universalismo do texto (e do ciclo) terá contribuído para alguma atenção;OKLAHOMA BLUE pretende ser um painel do mundo, nos anos da Guerra. Entre outros aspectos corresponde a uma tentativa de romper com a dicotomia literatura/ filosofia, praticando-se uma escrita polimorfa e polifónica, em continuidade com os livros anteriores, escrita como meio de fundir, unir a vida e a obra no “corpus”, na tentativa de ludibriar o destino através do sujeito: vive-se sempre um tempo que morre, só a “velocidade poética”, ilusoriamente, permite a sua recuperação.

O mimetismo consciente com um olhar de Nietzsche, que vê na decadência do seu tempo o fermento de um futuro novo, encadeia com o declínio do tempo da acção – em OKLAHOMA BLUE – o da Segunda Guerra Mundial, leva ao desejo de mudança. Em Nietzsche – em cuja teia me enleei muito depois de ter conseguido ver claro na natureza humana, revelados sofrimentos, alegrias e cóleras, a vivência do amor passional nas obras de entre muitos outros Dostoievski ou Stendhal –, as alegorias como única formulação para ideias novas. Procurou o filósofo fundar uma cultura inédita, motivadora da adesão dos leitores: talvez tenha sido este desejo de adesão a conduzir à diabolização da obra, uma vez adoptadas as suas teses pelo nazismo, empatia macabra de que estou livre, embora em cada sujeito da escrita se observe a luta com o “si mesmo”, a ambivalência, nada é definitivo no texto, enquanto vai tomando corpo, quando ainda em formação. Ao elaborar Nietzsche o seu pensamento, torna problemática a diferença entre literatura e filosofia, unindo os lados apolínio e dionísiaco (“La Naissance de la Tragédie”): na decadência do seu tempo, adivinha Nietzsche o fermento de um futuro novo. É este o sonho das personagens e das nações, em “Oklahoma Blue”. Enquanto autora subestimo os textos que simplesmente distraem.

O trânsito de personagens da História e da ficção pela narrativa desenvolve-se entre a perdição e a eventual redenção, muitas delas no caminho do meio, pela indefinição; a ironia é notória e o cinismo indubitável, usados contra a perfídia pela “linha do riso” que percorre o texto (uma constante no ciclo), incompatível com a mundivivência dogmática ou se preferirmos com a hipocrisia, coincidente tal plano do risível com a visão bakhtiniana, onde a subversão é servida pela ruptura das regras (desde cedo o assumi); em OKLAHOMA BLUE, Plínio Álamo, o emigrante, permite-me, pela sua inocência, a mistura de culturas, enquanto explorador luso-americano, o gozo de trazer para o enredo Albino (cujo avô fora aluno de Nietzsche em Paris), o seu oposto, erudito e uma espécie de narrador de segunda instância, meio século após: crê-se um homem indubitavelmente culto, mais, um sacerdote de Diónisos, contribuindo com os seus processos para uma narrativa polimorfa reveladora de um olhar cruel sobre as criaturas; presentes efeitos paródicos, pela mistura de idiomas, a exploração de sobreposição de planos, o de Plínio na pradaria, tornado cozinheiro de Goodnight, um barão do gado, e o da narradora, na mistura de ingredientes, empenhados em processos alquímicos.

Pode detectar-se em OKLAHOMA BLUE a luta dos sentimentos activos contra os reactivos, para levá-los à capitulação, pondo termo a insensatos furores do ressentimento, configurando o autoritarismo. Afinal, decorre à vista do leitor a mutação para sociedades de novo tipo: imaginando alguns resolver o problema individual conseguiriam a energia do colectivo. Enfim, na vida e nos textos, a par do fazer, meditando, encontraremos o tom de uma representação da História, de uma partitura memoralialista, melancólica, “blue”.

Estudos – Analisando sua produção literária, vemos que você vai deixando a poesia pela prosa: como se dá esta passagem e como se relaciona ela com a sua visão do mundo?

Cabral – Acredito que a fui misturando ao discurso ficcional, podemos nele encontrar brechas, cedências, alusões à poesia. O processo foi consciente: transpondo para os textos realidades sociais de sucessivas épocas, impregno-os de sentimentos e sensações relacionadas com estados psíquicos subjectivos, marcas estas comuns aos textos líricos; e porque narram situações sociais presentes-ausentes, tais como estão a ser observadas e/ou experimentadas por grupos concretos de indivíduos em devido tempo, tal lirismo pode exercer um efeito de adesão por parte do leitor, aliciando as suas simpatias para com o tipo de pessoas cujas provações surgem ali expostas de modo emocional. Enquanto documentos cumprem a sua função, a de provocarem no leitor a sensação de que tais acontecimentos (como em “Oklahoma Blue”) poderiam ser (e foram-no) resolvidos no mundo extra-ficcional; e assim acredito que concretizo o meu objectivo: levar o leitor a transitar pela História (e tudo talvez porque, em determinada altura da minha vida, a História me trespassou, qual gume acerado) com a indispensável “mise en intrigue”, o descontínuo no contínuo, articulando o tempo, só a eternidade é estática (pelo menos segundo “As Confissões”, de Santo Agostinho).

A modalização temporal constitui embraiador formidável, permite-me representar as acções como se estivessem a acontecer diante de mim (solicitando a cumplicidade do leitor, o exercício da escrita leva a uma solidão monstruosa). De certa forma, quando privilegio questões sociais e políticas de determinada época aproximo-me do “grande realismo”, embora a narradora, sensata, saiba distanciar-se politicamente. Denuncia, provoca, exaspera, em estratégias de aliciamento. O escritor representa o seu papel, o de decifrador de traços. E quando deciframos traços vamos seguindo a memória da História, esta deixa pegadas muito suas e muito nossas.

Respondendo ainda à pergunta, tenho um livro de poemas cuja edição tem sido preterida pela publicação dos livros do “ciclo americano”, a grande prioridade.

Estudos – Ao considerarmos sua produção em prosa, poderíamos falar em uma linha intimista e em uma linha épica para o conjunto dos seus romances?

Cabral – Sem dúvida. A “tetralogia da ausência”, correspondente aos quatro primeiros romances – “Tarde de Mais Mariana”, “ Maldamor”, “ Obsidiana”, “Prantos” -, reflecte um sujeito da escrita voltado para si, para a sua memória afectiva. Entretanto, em 1990, desloco-me pela primeira vez ao Brasil, sou enleada na vertigem da memória: num outro plano, a projecção de Angola na paisagem humana, na vegetação luxuriante, sobretudo na energia circulante, na exuberância, se bem que em diferente ordem de grandeza. Eis-me na armadilha de emoções, em transferências insensatas: o Brasil mítico inquietou-me, conhecia-o da Literatura, lera os grandes autores brasileiros, durante a minha estada em África, a ânsia intensifica-se, inevitável o sobressalto.

Volto-me então, enquanto sujeito da escrita em fuga da memória afectiva, para a memória do mundo, há muito deambulava pelas ideias. Mas não me entrego de imediato ao romance histórico. A Língua portuguesa, a memoria das Literaturas, das linguagens o incentivo, por isso situo a personagem-narradora na metáfora da criação, habitando a própria metáfora estaria perto de todas as imagens, virtualidades. Haveria de deslocar-se a narradora – em “Madrigal”, pelo lúdico e pela ilusão, conceder-lhe-ia a possibilidade de encontrar-se com a utopia, com as fantasmagorias do moderno. Deparavam-se-lhe o mensageiro, projecção do Anjo da História, o do Benjamin e de Klee, os anjos de Rilke, Poe, as figuras seráficas/demoníacas. Enveredara pela “aventura da narrativa”, também a aventura da criação literária em língua portuguesa, pela experimentação das formas, necessariamente, até à raiz da “phala”. O Brasil foi o responsável por tal aventura, aí encontrei a sinfonia empolgante dos timbres da língua portuguesa. Escrevo “Um Amor Cortês” que satiriza e subverte, num género misto encontrado nos “rimances” em que se reconstruíam histórias recombinando os elementos, de que o exemplo mais conhecido será ‘Donzela que vai à guerra’, presente no refrão que inspirou Guimarães Rosa, em “Grande Sertão, Veredas” (lido por mim, quando também eu vivia no sertão e deambulava por lá). Acabaria por dedicar ao Brasil um livro cuja a acção se desenrola em Entre Douro e Minho, com todas as características do romance de cavalaria, do amor cortês, e que vai além da paródia: recorro à glosa, componho pseudo-trovas da época, canções de gesta. “Haveremos então de ser mito?”, indaga a determinado passo uma personagem.

Claro que sim. Quando se iniciassem as Descobertas, quando achássemos o Brasil, percorrida já a costa de África – ainda motivo do segundo livro desta “trilogia da ilusão”, experimentalista por utilizar o registo do português falado pelas populações em Angola, decorre a acção durante a guerra civil (1992), embora recue até à fase do fim da guerra colonial. Estávamos em 1995, dois anos antes começara a estudar a História do Brasil.

Estudos – Quais as razões que levam a autora a eleger as diferentes épocas e lugares focalizados em seus romances?

Cabral – Procuro motivação, pesquiso, escolho os séculos XIX/XX. O primeiro livro do ciclo americano tem início no Porto (tal como os seguintes, ou aqui, especificamente, ou no Norte de Portugal, as personagens em trânsito), num jantar no Consulado do Brasil, durante a Grande Guerra; termina na mesma cidade, depois de múltiplas personagens e situações ficcionais e/ou históricas; findara a I República aqui e no Brasil, onde Vargas já prendera o cavalo ao obelisco da Avenida Rio Branco, espantando os cariocas. No período do mesmo barão de Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores – ali permaneceu entre 1902 e 1912, durante os mandatos presidenciais de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto – verificara-se forte aproximação aos Estados Unidos, com o objectivo de garantir ao Brasil a posição de primeira potência sul-americana. Aliás, a primeira Constituição republicana, promulgada em Fevereiro de 1891, inspira-se no modelo norte-americano, garantia a República federativa liberal. Há espaço narrativo para lugares muito afastados do Rio de Janeiro, tal como o movimento surgido durante o governo de Prudente de Moraes, refiro-me ao liderado por Mendes Maciel, mais conhecido como António Conselheiro. Viria a instalar-se no arraial de Canudos. Dali a meia dúzia de anos, os positivistas arrasá-lo-iam. A política dos grandes estados, com São Paulo na dianteira, triunfara. Fala-se das oligarquias, a I República ilustra a fase da aliança de interesses de São Paulo e Minas Gerais. Enfim, a acção vai-se misturando aos acontecimentos.

Dizia eu atrás que findara a I República aqui e no Brasil. Em Portugal, Salazar chegava ao poder, com a II República, e todo o “ciclo americano” – escrito em nove anos e correspondente a cinco títulos, a mais de duas mil páginas, a doze anos de investigação – é sustentado por uma série de acontecimentos da História fulcrais para a estruturação de uma cosmogonia. Se a primeira revolução republicana no Porto, em 31 de Janeiro de 1891, fora incentivada pela revolução industrial, já em resultado das greves, da agremiação do Partido Socialista em associações anarquistas, por outro lado, a organização social em Inglaterra, levando ao capitalismo, tivera o seu papel no progresso do liberalismo constitucional português, sendo ali aceites representações diplomáticas das duas tendências, a miguelista e a constitucional, assim como muitos refugiados portugueses; preparava-se o exército que desembarcaria no Porto, movimento a que a Revolução Francesa de 1848 poria fim. D. João VI morrera em 1826; no segundo livro do “Díptico”, incidente nos séculos XVII/XVIII, a invasão napoleónica e a ida do monarca marcam o seu termo;o herdeiro do trono, Pedro IV, após ter-se proclamado imperador do Brasil, enviara à Metrópole, no mesmo ano, a Carta Constitucional. O Brasil iniciara a própria caminhada.

As personagens da ficção e da história estabelecem, ao longo dos textos, uma rede de acontecimentos, sugestões, conduzidas à inquietação pelas ideias. No séc. XIX, o Manifesto Comunista (1848), considerada a radicalidade pelo papel que lhe coube na história, contribuiu para a “ansiedade de contaminação” que atingiria a Europa e a América, o mundo, no século seguinte: a distância do núcleo conferia um significado ao chamamento da realidade, a razão cedia á paixão, a verdades testemunhais transplantadas, chamamento esse sempre sujeito a manipulação, uma forma de domínio. Eu vou criando personagens pelo século XX adiante: Paloma Rubra, Mathilde, os anarquistas depois revolucionários Afonso, Justa, Laura, Carolina, Décio; num outro plano, Libório; e tantas da história brasileira. Misturados a realidade e a ficção, a História e a narrativa, episódios, as personagens lançadas no mar epopeico do pensamento haveriam de encontrar um porto de abrigo, talvez um lugar de perdição. Após a Primeira Guerra Mundial, a utopia tomava homens e mulheres, exigiam esquecer a fragilidade; a nossa fronteira continuava a ser o fortim da língua, em formas de estar, “maneiras de falar” comuns aos latinos, segundo o enunciado de Duartes Nunes de Leão; alude-se ao Partido Progressista da América – continuo voltada para o “Díptico” (Viagem) –, e o português internacional Petrov (nome de guerra), azoratava os brasileiros com perorações sobre bolcheviques e mencheviques, imaginem, percorrendo a personagem a Rua Gonçalves Dias, artéria onde fora aprisionado o mítico Tiradentes, Petrov ligado à ala internacionalista, disposta a coligações com as classes possuidoras, logo contrária à ditadura da classe operária. Tais perorações surtiam efeito demolidor, o Rio sempre propende ao acolhimento de floreado de importação, lá estaria também a progressista Mathilde, o pedante Pimenta, divagando sobre Diderot, “o Homero do jornalismo, endeusado por Sainte-Beuve”, resumia.

Porém, a segunda revolução industrial, as consequentes transformações sociais reflectem-se até nos títulos das obras literárias, “Miragem”, “Turbilhão” (Coelho Neto), “Maria Bonita” (Afrânio Coutinho), Machado de Assis a grande figura do Brasil, no início do século que conteria “Dez Dias que abalaram o Mundo”, de John Reed, americano, resultado da sua observação no terreno, em plena revolução Russa de 1917. A consciência crítica da época era formada por cientistas e pensadores, Darwin, Comte, Taine, Marx.

Tais aspectos iriam caracterizar também a literatura de costumes na América Hispânica, com o venezuelano Romero Garcia, o mexicano Federico Zamboa – o russo Tolstoi como respeitável ancestral, a par de Henry James, nos Estados Unidos, ridicularizando milionários americanos incultos e aristocratas europeus entrados em decadência. Ei-los, que transmigram de “Viagem” do Brasil e de Portugal, projectados em “Oklahoma Blue”: nos Estados Unidos, após a Guerra Civil de 1861/1865,assistira-se a um novo perfil das sociedades a reflectir-se nas obras de Frank Norris (a função da Literatura foi sempre a de espelhá-las articulando o tempo), Theodore Dreiser, Jack London. Em Portugal, nos primórdios do séc. XX, dominava ainda uma literatura sentimental de “A Severa”, de Júlio Dantas, Aquilino Ribeiro escrevia “As Filhas da Babilónia”, longe ainda o dia em que, desistindo da vida religiosa, abandona Viseu, vai para Lisboa, onde se torna conspirador republicano, forçado a fugir para Paris.

Estudos – Seria correto dizer que seus textos de linhagem épica preocupam-se com a questão ideológica das épocas focalizadas?

A partir de determinada altura, na criação em geral e no meu processo criativo, as características do épico vão-se acentuando, o espaço narrativo, tal como o palco, deixa de ser um espaço mágico para tornar-se local privilegiado de exposição, ainda que compartilhado. Alterava-se a tensão dramática, embora existissem na Idade Média momentos épicos; quase desnecessário mencionar a tragédia grega, o coro recitava e dizia da acção, em vez de figurá-la, desde que passou a ter dois protagonistas em diálogo. Ainda hoje os prólogos, interrupções, epílogos correspondem aos restos do épico na forma dramática, meios que na dramaturgia permitem supor quem enuncia e qual o destinatário.

Antes de Brecht, exemplo incontornável, a vida das personagens era narrada em quadros sucessivos, a caminhada dos heróis era sempre patética, através dos lugares e do tempo (Ibsen é paradigmático). O épico contraria a catarse, evitando um encadeado linear e temporal, por privilegiar a intervenção de um narrador, isto é, “um ponto de vista” sobre o narrado em cena (em texto), acabando assim por apelar à capacidade efabulatória, no desenvolvimento de textos críticos, porventura antidramáticos, logo estéticos e políticos em simultâneo, pondo em questão o real em vez de o imitar. De acordo com o épico, “as épocas devem evidenciar o contexto ideológico correspondente”. Tentei ir por aqui, não me cabe avaliar os resultados.

Estudos – Até que ponto a imaginação criadora fundamenta-se na realidade histórica em seus romances do ciclo americano?

Cabral – Acredito que em todos os textos do “ciclo americano”, com ligeiras nuances, se apela ao real; a imagética proveniente de situações autênticas (as da História) modeliza os acontecimentos históricos - no encalço de Brecht - os mais adequados, por serem já conhecidos. O efabulador distanciar-se-ia assim dos lugares-comuns históricos e psicológicos.

Creio vir a propósito a remissão para “Mar Salgado”, que encerra a ‘trilogia do mar’, a acção a desenrolar-se em Angola, antes, durante e após a guerra colonial. A narradora, a dado passo, introduz Brecht na efabulação, chama-o à “boca de cena”, mais, faz “ouvir” fragmentos de “Mahagonny”, de Weill, este instituído marcador rítmico na narração, com variações sobre o enunciado irónico.: “Oh moon of Alabama, now we must say good-bye...”, prolongando-se, mais adiante: ”...now we must have dollars, oh, you know why...”, até que o estribilho – o dramaturgo já nos Estados Unidos – vinca: “Now, I tell you, I tell you, I tell you, you must die”.

...Quem seriam os que tinham de morrer? Para além dos naturais da terra, os portugueses e os brasileiros descendentes dos Pernambucanos expulsos do Brasil em 1849, após a “revolução praieira”, no Recife. Deportados para Angola, por serem prósperos – ameaçariam os interesses de Lisboa –, vão para um lugarejo, Moçâmedes: dali a cinco anos, seria uma vila; decorridos vinte, Moçâmedes possuía um porto de mar. Teriam de morrer em consequência da guerra colonial; e na Grande Guerra, quando se inicia “Viagem”.

No entanto, voltando ao tempo conveniente, quando Salazar dera sinal de simpatia pelo Estado Novo brasileiro, homenageando Vargas no Real Gabinete de Leitura – isto também pertence ao “corpus” de “Mar Salgado” –, seria concedida especial atenção aos portugueses estabelecidos em terras de Vera Cruz, inquietos com a guerra civil de Espanha: parodiando os pernambucanos expulsos do Recife, muitos deles que tinham ido para o Brasil odiando “a situação”, tornar-se-iam, pela prosperidade, ferrenhos defensores do Estado Novo de Salazar.

Com o final da Segunda Guerra Mundial, a bifurcação política entre os dois países irmãos acentua-se. O Brasil de pós-guerra, combatente do fascismo na Europa, não aceita a ditadura dentro de fronteiras, pode dizer-se que a chegada dos “pracinhas” faz oscilar a neutralidade brasileira face ao conflito; afastadas tendências germanófilas, decide aceitar a corte dos Estados Unidos da América. Entendo interessante, em termos narrativos e no espelho da História que, tanto no Brasil como em Angola, pudessem ser ainda trauteadas as estrofes de Kurt Weill, o eco de uns afinal eco dos outros:”...Now, we must have dollars, oh, you know why...” O pan-lusitanismo dava lugar ao pan-americanismo. O fulgor de súbito gélido da lua de Alabama atingia Angola; de facto, dali a duas décadas, os Estados Unidos apoiariam o levantamento bacongo no Norte, contra os portugueses, não sem que, nos anos 50, Adlai Stevenson tivesse apresentado na ONU as pretensões dos grupos independentistas. Começaria a guerra colonial; o estribilho obsessivo, incidiria no mesmo: “Now, I tell you, I tell you, I tell you, you must die…”, portugueses e brasileiros, em mimetismo inesperado, aparentemente estranho, tanto na adaptação a novos espaços como na adopção dos valores do outro, o que, ainda que dito com ironia, é sem dúvida algo a atar-nos para além da racionalidade quiçá da vontade. Também o Brasil justifica amplamente OKLAHOMA BLUE…

Estudos – Em muitos dos seus romances há um forte entrosamento entre história e ficção, percebendo-se uma pesquisa aprofundada e exaustiva sobre os períodos e as situações focalizadas. Nota-se aí o espírito investigativo da jornalista?

Cabral – Não creio. Desde o início, o “cultural”, em toda a sua abrangência, haveria de conduzir-me ao factual, aos acontecimentos, mas como consequência. Na investigação factual, de facto exaustiva, dialogo com o mundo, vou à procura do motivo dos acontecimentos, encontro este aspecto, outro, e rejubilo, a narrativa vai avançando contaminada pelo entusiasmo de vidas de papel decalcadas no real, sonhos, medos, terrores, ânsias, que passam a ser meus, não só enquanto narradora. E assim se criam mundos, as personagens pensam e agem de acordo com o tempo em que as situo ou que lhes pertence, isto é o mais trabalhoso e o mais estimulante, o retrato psicológico, o palco interior, o feixe de indecisões que a narradora tem de vencer, também ela forçada a actuar, não constitui a mera voz em “off”, ao contrário da maior parte dos cultores do romance histórico que por ele avançam porque está na moda, logo por oportunismo; vendo no género a “liberdade” de estratégias gratuitas, supõem a distância no tempo passível de gratuitidade (na preferência do grande público, alheado de quase tudo que respeita à memória do colectivo).

Embora não me suponha num plano superior, procuro ângulos de visão orientando-me pelos que souberam pensar a História, deixo-me tentar pela vertigem utópica de uma transformação social em contínuo, embora saibamos todos, até as personagens, que o homem será sempre igual a si próprio e tenderá a precipitar-se nos mesmos alçapões.

Estudos – A respeito destas suas obras, que poderíamos chamar de romances históricos, você poderia comentar a trilogia que focaliza um largo período da História do Brasil?

Cabral – Já o fui fazendo; e abrindo mais o leque… Quem bem ler os textos encontrará rede historiográfica consistente, em sucessivas épocas, nelas convergindo tentações, fascínios, provocações ao leitor, explícitas ou encapotadas. Em “BRASIL. Díptico” – onde, na realidade, me debruço para a formação da américa ibérica – , em “Ouro, Honor, Corsários, Ilusiones”, sécs. XVII/XVIII, já pelas páginas noventa do único romance historiográfico português com a cidade de Parati por cenário de eleição, a par da rota do ouro brasileiro, a narradora alude a Robert Burton, escritor inglês e pastor humanista nascido no séc. XVI; troçava este dos intelectuais do seu tempo, reabilitando o humor a traduzir disponibilidade interior ligada à generosidade, ao sublime e ao ridículo. Tal atitude teria continuidade na época dos entusiasmos metodistas e revolucionários, no séc. XVIII, em que tanto Fielding como Sterne adoptaram temas divertidos, apesar da acuidade política; Burton edificara, em digressões eruditas, a psicopatologia amorosa e religiosa do luto, do abandono, do ressentimento e do humor… E a narradora, pulando no tempo, refere Escarpit, utiliza o enunciado deste, segundo o qual “é provavelmente impossível (d)escrever a existência”. Se atentarmos no pormenor de ser Escarpit cronista no “Monde”, no séc. XX, voltado para uma “sociologia da literatura” a prolongar-se numa “teoria da comunicação literária”…O que, evidentemente, não pretendi, a minha ousadia tem limites. Creio encontrar-se nos meus textos, após leitura atenta e abrangente, na totalidade do “ciclo americano”, a ilusão de um “tempo curvo”: se, durante cinco séculos, irradiara de Portugal como que um feixe de energia atravessando o tempo, privilegiando o Brasil, pelo incentivo dos bons resultados do passado assiste-se na actualidade ao retorno dessa energia, a “saga dos Pernambucanos” é resgatada; Lisboa, Portugal inteiro, a Europa acolhe os brasileiros, o Brasil, no séc. XXI. O achamento ganhou assim novo sentido.

Estudos – Ressalta da leitura de sua obra que sua criação fundamenta-se numa visão universalista e cosmopolita, seu interesse desconhece fronteiras, lança-se para África, Europa, Brasil, Estados Unidos. Como você analisa este dado do seu fazer literário?

Cabral – Reflecte a vertente experimentalista do projecto, escolher os lugares do mundo que contribuíram para uma poética do olhar inaugurada por nós, portugueses, quando da descoberta de novos lugares por onde haveríamos de dispersar a nossa energia, edificando novas nações no futuro, destacadas capacidades humanas (ou desumanas), na espiral do progresso. Ainda a ascensão e a queda, arrastando consigo os avatares do descontentamento: tendemos a ignorar que a vontade individual só adquire força e sentido quando projectada no universal.

A matéria do humano é a mesma em qualquer dos continentes, se bem que os sonhos, não já de grandeza, mas de estabilidade a longo prazo, continuem a inquietar-nos, enquanto país.

A África fez de mim o que sou, para o melhor e para o pior, enquanto indivíduo tive oportunidade de avaliar as convulsões de sociedades em transformação: se sonhos de séculos eram soterrados outros brotavam, em crueldade salvífica, despontavam quais gumes.

Os projectos eram sempre condicionados ou pelo poder central, na Europa, nas Metrópoles, ou por compromissos de ordem vária estabelecidos ao longo do tempo, e isto remonta a meados do segundo milénio, entre as respectivas potências coloniais, em futuros interesses, alianças, traições. Todos os que vivíamos nas colónias - não só portuguesas - éramos peões de uma mudança que ainda não terminou, o que, vendo bem, nos dá hipótese de evitar o pântano.

Entendo que o escritor não tem de circunscrever-se às próprias fronteiras, as do seu país, o mundo é uma imensa trama narrativa dita e pensada por inúmeras vozes. A América surgiu no meu projecto, e quem bem conhecer o seu papel no mundo ao longo dos tempos, encontra justificativa para que me tenha voltado para a sua História enleada à de outros povos, directa ou indirectamente. O Brasil afinal foi sempre motivo da sua atenção desde o séc. XVIII, se bem que, honra nos seja feita, entre 1816 e 1820, o abade José Correia da Serra, ministro plenipotênciário do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves junto do executivo norte-americano, tentasse influenciar Jefferson para que o Brasil fosse aceite com responsabilidade igual à dos Estados Unidos, no chamado “sistema americano”. Aliás, imitando os rebeldes brasileiros de 1817, os insurgentes sul-americanos solicitavam auxílio à grande potência americana…

Por outro lado, durante o séc. XX, e logo após a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria levava a que os Estados Unidos e a Rússia (então URSS) tentassem captar as simpatias do terceiro Mundo. Os primeiros acenavam-lhe com a prosperidade, os bens do corpo, os segundos com a mobilização da vontade, queriam-lhe a alma. E continuava a projectar-se a tese de Rousseau: ”Todos nascem homens e livres”, no estribilho das revoluções americana e francesa. Isto, ainda que irónico, é, como todos sabemos, verdadeiro.

Se tivesse vivido sempre no Porto, onde nasci – sou europeia galaico-duriense – ter-me-ía sido impossível tal abrangência criadora, se bem que as fronteiras hoje sejam traçados subliminares pautados por interesses. Nós continuamos a ser, personagens da vida ou da ficção, peças indispensáveis e, em simultâneo, descartáveis. Assim as bibliografias.

Estudos – Você é uma escritora com uma extensa produção, que constrói obstinadamente um projecto literário, o que aguça nossa curiosidade: quais serão os seus próximos trabalhos?

Cabral – Chegou a altura de mencionar ORNATO CANTABILE, o meu texto mais vasto, sairá este ano, romance épico incidente nos séculos XV/XVI: aqui se dá conta do séc. XVI brasileiro por mim ainda não tratado, mais concretamente até à ida dos Jesuítas. A exemplo dos anteriores – este, cronologicamente, antecipa “BRASIL.Díptico” –, mistura os fios da História e da ficção, em múltiplas situações sustentadas por personagens activas, algumas delas demoníacas, mas por bem, para que a narrativa se expanda, se articule.

Também um outro romance – este não historiográfico –, “Volúpia”, aguarda edição. Em processo de escrita, um novo texto historiográfico, a decorrer na China (teria de chegar a vez da Ásia). Wei-yang-cheng traça o mapa das cavernas onde nidificam as andorinhas, no tempo em que as montanhas lendárias Thai-Hsing e Wanh-Wu formavam uma única…

Estudos – No momento actual em que a mídia tornou-se um poder na sociedade, como você vê a relação entre mídia e literatura: como os meios de comunicação influenciam e orientam os leitores?

Cabral – A mídia cada vez se distancia mais da Literatura, aproxima-se de textos que não obriguem ao trabalho de ler, preferencialmente opina-se sobre obras estrangeiras, chegam com ampla informação pronta a utilizar. O jornalista é forçado a afirmar-se rapidamente (existem demasiados para ocupar-lhe o lugar). Tudo – ou quase – é “marketing”; se os textos não forem lineares, simplistas, se, pela ambiguidade, obrigaram à cumplicidade de quem lê, em jogos de inteligência, correm o sério risco do silêncio. O público leitor, ingenuamente, compra o que está em destaque nos escaparates nas grandes superfícies, onde rareia o critério.

As excepções na mídia correspondem a vozes credíveis e com autoridade, geralmente académicos na responsabilidade de tentar orientar o leitor. No entanto, quanto mais “ruído”, ainda que por via do escândalo, maior a venda. Os autores devem ser “personalidades”, não se lhes exige que sejam escritores.

Estudos – Seguindo esta linha de idéias, até que ponto você julga que influencia, no sucesso das obras atuais, o seu conteúdo político-social?

Cabral – A época é frívola, o público leitor compra “capas”, não livros. Acredito que só quando chegar a altura de joeirar para futura memória crítica, o conteúdo político-social seja valorizado.

A publicação atingiu índices de tal forma insensatos que não há tempo para a triagem natural; banalizado o acto de escrever, publicar, confunde-se escrita, qualquer que seja, com Literatura.

Estudos – Enfim, falando para uma revista de Comunicação, você se considera uma escritora que atua como jornalista, ou uma jornalista que atua como escritora?

Cabral – As águas misturam-se, decorreram 30 anos de actividade; após 26 livros publicados (e 3 ainda não editados), abrangendo poesia, romance, teatro, ensaio, considero-me uma escritora que actua como jornalista, por acreditar na utilidade do que produz enquanto tal.

Filomena Cabral









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