Entre Livros       

Índice:

40 - “I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil”

39 - FILOMENA CABRAL, UMA VOZ CONTEMPORÂNEA

38 - EUROPA - ALEGRO PRODIGIOSO

37 - FEDERICO GARCÍA LORCA

36 - O PORTO CULTO

35 - IBSEN – Pelo TEP

34 - SUR LES TOITS DE PARIS

33 - UM DESESPERO MORTAL

32 - OS DA MINHA RUA

31 - ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS

30 - MEDITAÇÕES METAPOETICAS

29 - AMÊNDOAS, DOCES, VENENOS

28 - NO DIA MUNDIAL DA POESIA

27 - METÁFORA EM CONTINUO

26 - ÁLVARO CUNHAL – OBRAS ESCOLHIDAS

25 - COLÓQUIO INTERNACIONAL. - A "EXCLUSÃO"

24 - As Palavras e os Dias

23 - OS GRANDES PORTUGUESES

22 - EXPRESSÕES DO CORPO

21 - O LEGADO DE MNEMOSINA

20 - Aqui se refere CONTOS DA IMAGEM

19 - FLAUSINO TORRES – Um Intelectual Antifascista

18 - A fidelidade do retrato

17 - Uma Leitura da Tradição

16 - Faz-te à Vida

15 - DE RIOS VELHOS E GUERRILHEIROS

14 - Cicerones de Universos, os Portugueses

13 - Agora que Falamos de Morrer

12 - A Última Campanha

11 - 0 simbolismo da água

10 - A Ronda da Noite

09 - MANDELA – O Retrato Autorizado

08 - As Pequenas Memórias

07 - Uma verdade inconveniente

06 - Ruralidade e memória

05 - Bibliomania

04 - Poemas do Calendário

03 - Apelos

02 - Jardim Lusíada

01 - Um Teatro de Papel


Entendo que todo o jornalismo tem de ser cultural, pois implica uma cultura cívica, a qual não evita que, na compulsão, quantas vezes da actualidade, se esqueçam as diferenças.

No jornalismo decididamente voltado para a área cultural, todos os acontecimentos são pseudoeventos, cruzando-se formas discursivas em que as micropráticas têm espaço de discussão.

Não sendo um género, o jornalismo cultural é contudo uma prática jornalística, havendo temas que podem ser focados numa perspectiva cultural especifica ou informativa, numa área não suficientemente rígida, embora de contornos definidos.

Assim o tenho vindo a praticar ao longo dos anos, quer na comunicação social quer, a partir de agora, neste espaço a convite da 'Unicepe'.

Leça da Palmeira, 23 de Setembro de 2006

        Ler em Inglês

Nelly Novaes Coelho (Universidade de S.Paulo)

 

FILOMENA CABRAL, UMA VOZ CONTEMPORÂNEA (1)

 

Entre a Memória e a Invenção

 

 

" ... a palavra não só diz o mundo, mas também o funda."

 

(Octavio Paz)

 

Se há obra que se mostra consciente dessa afirmação do poeta mexicano, essa é a de Filomena Cabral, escritora portuguesa, já dona de uma orgânica produção ficcional, e que vem de publicar um novo romance, O Amor Cortês (2), encerrando a "Trilogia da Ilusão", que fora iniciada com o romance Madrigal e continuada pelo breve e denso No Entretanto do Tempo. Completada agora com este sedutor O Amor Cortês, essa trilogia representa mais uma região explorada no labiríntico universo romanesco que Filome­na Cabral vem construindo há cerca de 20 anos.

 

 

Sintonizada com as forças criadoras mais atuantes em nosso tempo, seu romance (e a poesia) se funda sobre os princípios do relativo, do contraditório, do ambíguo, da multiplicidade, do non-sense, da dúvida, da fantasia ... princípios que singularizam o pensamento século XX, e que, em sua arte narrativa, se mostram não só no plano temático e na vibração dramática, mas também na própria concepção formal: linguagem, perspectivas, focos narrativos, montagem.

 

 

Há ainda uma constelação de nomes que energizam a sua matéria literária: Walter Benjamin (a grande presença), Baudelaire, Nietzsche, Eco, Blanqui, pintores, poetas, romancistas, filósofos ... cujas obras confluem na avalanche de conhecimentos-século XX e ecoam em seu universo romanesco. Daí o amalgama estilístico que singulariza a arte da escritora, na qual avulta a idéia benjaminiana de que "o mundo é uma grande narrativa".

 

 

Sempre desdobrando-se em fascinantes e intrincadas tessituras, a criação literária de Filomena Cabral se estrutura en abyme, como uma caixa-de-surpresas, da qual a escritora vai retirando suas doridas e ambíguas personagens e com elas se medindo incessantemente, num verdadeiro jogo de poderes: quem narra? quem é narrado? quais os limites entre real e fantasia? ou entre história e ficção? como o leitor participa da narração? onde os limites entre autora e narradora? serão ambas "personagens de papel"?

 

 

Arrastada pela consciência de que a palavra funda o real e, ao mesmo tempo, é visceralmente insuficiente para expressar a totalidade do vivido ou pensado ou sonhado, a romancista divide-se entre a tentação de assumir a onipotência de autora e a certeza das limitações e falibilidade de seus "artifícios" ou "saber fazer". Em contínuo diálogo com as personagens e com o leitor, ela se entrega a uma dolorosa/exultante escrita, onde as vozes narradoras -sempre femininas- estão no encalço de suas próprias identidades; ora perdidas em consequência da perda do amado; ora estilhaçadas pelos mil desencontros entre o Ideal e o Real.

Tentaremos aqui registrar nossa leitura desse fascinante universo, mesmo sabendo de antemão que toda leitura é redutora, pois limita, a uma perspectiva de visão, aquilo que é, no texto literário ilimitado e polifórmico, aberto a mil outras interpretações.

 

 

 

A Tetralogia da Ausência

 

 

É essa a problemática nutriz da tetralogia publicada entre 1985 e 1992 (Tarde demais Mariana, Maldamor, Obsidiana e Prantos) Romances que se entrelaçam e se explicam mutuamente através de uma galeria de mulheres (Ana, Mariana, Obsidiana, Ivre ... ) que, como num caleidoscópio, refletem as várias faces da mulher duplice, ambígua, criada pela civilização cristã e patriarcal (Eva/Maria, tentadora/mãe sublime, demónio/anjo ... ) e que, só através do homem, teria sua identidade definida.

 

 

A fala delirante das mulheres que povoam o universo de Filomena Cabral tem na memória o grande canal de acesso à escrita auto-reveladora e, também, o ponto de convergência do eu e do mundo em que lhes cumpre viver. Do primeiro ao último livro publicado pe­la escritora, a memória, com seu poder transfigurador/eternizador do vivido ou acontecido, é sem dúvida a grande fonte narrativa. Memória sondada nas duas grandes esferas da experiência humana: na ético-existencial e na histórico-cultural.

 

 

A grosso modo, pode-se dizer que no primeiro ciclo romanesco, o da "tetralogia da ausência", a memória predominante se circunscreve ao âmbito pessoal, existencial e intransferível (o das mu­lheres naufragadas, cada qual em si mesma, lutando para preencher com memórias o vazio existencial cavado pela ausência do amado) . E no segundo ciclo (que se finda com o recente O Amor Cortês) a esfera existencial está subordinada à História: é da memória histórico-cultural que decorrem as singularidades existenciais das personagens deste novo ciclo e que as distinguem daquelas que vivem/desvivem nos romances do primeiro ciclo e se obstinam em manter viva a memória que ficou do amado. E isso, não, como pode parecer de imediato, só pela saudade ou pelo desejo de sua presença, mas essencialmente devido à perda do próprio eu ("Objeto desejado" pelo tu amado). Um eu que, perdido o tu amante, ficou à deriva, naufragado no abismo da não-existência. Assim, a memória, escrita e reescrita nos doridos romances da "Tetralogia da Ausência", se torna a via pela qual, revivendo o amor passado, através da memória e da escrita, perpetua o ser amada pelo homem desaparecido. No tu, ela busca o próprio eu; ou em termos lacanianos, no tu - aparente objeto desejado, ela busca o sujeito desejante desaparecido e do qual ela seria o objeto desejado que, sem ele, deixou de existir.

 

 

Nesta linha de vivências, a escrita romanesca busca se trans­formar em zona de emergência do eu ou da auto-revelação que a personagem busca, cegamente; ao mesmo tempo em que a narradora almeja ser o objeto desejado do leitor (e o consegue!).

 

 

De livro para livro, essa problemática se aprofunda e, em Prantos, o caso singular de cada mulher-em-si, se amplia para o caso plural da Mulher que, nestes nossos tempos de mutação, agonicamente busca sua verdadeira identidade perdida sob a camada endurecida dos costumes e tradições.

 

 

 

A “mundividência feminina", que filtra a matéria romanesca de Filomena Cabral, tem sido bastante destacada pela crítica. Óscar Lopes pressente essa problemática já em Tarde demais Mariana e aproxima-o do Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, _"o texto clássico português da identidade feminina à sua própria procura una e múltipla, escrita por um homem mas ecoando vozes femininas que vêm das Cantigas de Amigo." Essa problemática da busca da identidade feminina, está presente em todo o primeiro ciclo romanes­co. Segundo nos diz a própria romancista,

"Esse ciclo é um Réquiem entretecido de todas as memórias, experiências, vivências, da observação do mundo, da consciência desse mesmo mundo, de todos os escritores que li e me fascinaram, de todos os filósofos que me mostraram caminhos, entretecido ainda de todos os incêndios da alma, de todos os rios de gelo que a foram atravessando. [ ... ] ciclo de obsessivos retornos [ ... ] Do religare contínuo." (in Prantos)  

 

 

É em busca desse "religare" que se movem as mulheres que peram­bulam no universo criado por Filomena Cabral.

 

 

 

A Trilogia da Ilusão

 

1. Madrigal (1993)

 

 

Nos romances da Trilogia da Ilusão, a memória íntima (lírico-existencial) vai ser filtrada pela memória ancestral (de natureza histórico-cultural). E consequentemente a problemática do feminino ganha maior amplitude.

 

 

Madrigal, que abre este novo ciclo romanesco ("grávido de História") põe em confronto o universo real (espaço e tempos realmente vividos) e o universo virtual (o da cultura em gestação, criado pela imaginação e pela palavra). Romance caleidoscópico, Madrigal se desenrola numa vertiginosa sucessão de imagens desfocadas ou ofuscantes, imagens que desdobram, bifurcam-se; diálogos sibilinos; sonhos que se interpenetram; indefinição de fronteiras entre realidade e fantasia; personagens e vozes narradoras que se confundem e acabam se revelando corno personas (máscaras de teatro, caracteres ou alegorias).

 

 

Angélica é a persona eleita pela narradora para intermediar o corpo-a-corpo a ser sustentado com o Profeta -"mensageiro da História"; o Cavaleiro dos sonhos (a utopia); os Rosavos, Pênia e tantas outras figuras ou imagens que entram na ambígua tessitura narrativa. E, não por acaso, a narradora nomeia-a "Angélica", filiando-a abertamente à figura do Anjo, alegoria que, na modernidade literária, tem qualquer coisa da "beleza terrível" (Rilke), beleza excessiva, onde se juntam as fronteiras do humano e do inumano, - passagem do invisível ao visível. Angélica atravessa toda a Trilogia da Ilusão, como a mediadora eleita pela narradora, mas o jogo-de-poder entre criadora e criatura (que continuamente se confundem na voz narrativa) impede que ela seja o "fio de Ariadna" ou o guia seguro do leitor (como Virgílio o foi para Dante), pelos descaminhos de uma trama romanesca esgarçada, que se desenvolve num espaço chamado illusio.

 

Espaço esse (difícil de ser localizado ou definido) que, longe de significar mera "illusione" (phantasia ou devanear lúdico) se revela como virtualidade, como o lugar criado pela ficção (ou o lugar-da-criação), no sentido benjaminiano: o de um mundo construído pela palavra, pela arte ... mundo virtual que, entretanto, é mais autêntico ou verdadeiro, do que o mundo real. Em Illusio convergem todos os tempos (o histórico, o cósmico, o mítico, o cultural, o existencial, etc.), num processo de interação que podemos chamar de alquímico (pois a esperança é de que dele resulte um novo tempo, uma nova utopia). O maravilhoso é a órbita em que o romance se tece, sabendo-se fruto de um momento de crise, em que "as linguagens tinham sido tomadas de lepra, as imagens tropeçavam no limbo e os anjos haviam recolhido as asas." Como novo menestrel ou "novo trovador enlouquecido pelas galáxias", a romancista tenta exorcizar o mundo deteriorado e cantar o sonho de um mundo novo, no qual avulta o espaço a ser ocupado pela mulher.

 

Já nas primeiras linhas, sua problemática-matriz é enunciada alegoricamente:

A ausência de um cenário em desfocagem inesperada [ ... ] aconteceu quando (eu) atravessava a fronteira, algo chegava até mim, julguei que do passado. [ ... ] Fora necessária uma caminhada de muitos anos para (eu) decidir, em consciência, percorrer illusio."

 

Decodificando as palavras em termos da problemática ali latente (e que só no decorrer da leitura se revela), temos: a súbita conscientização da narradora em relação ao seu tempo-em-crise, tempo de ruptura das bases da civilização herdada ("cenário em desfocagem"), momento-limiar ("atravessava a fronteira") em que lhe cumpre viver, testemunhar o vivido ("uma caminhada de muitos anos”) e, ao mesmo tempo, sonhar com um novo e possível viver. Conscientização, testemunho e sonho que lhe exigiam uma decisão: "percorrer illusio". Isto é, fazer uma espécie de inventário do hoje virtual, condicionado por dois tempos contraditórios: o passado e o futuro, os quais, amalgamados no presente, estão criando a nova utopia, - a que se realiza no espaço do aqui-e-agora (e não mais, no tempo, como a antiga).

 

Utopia que a romancista cria no espaço da illusio, desenovelando a intrincada narrativa de Madrigal, - romance, cujo título metafórico aponta para o nervo mais sensível ali exposto: a necessidade visceral do amor, para que os humanos atinjam a plenitude do viver. O Amor está, pois, entre as "virtuais magias que vão acontecendo no espaço do livro, no tempo da narrativa e na história do mundo" .

 

Romance estruturalmente labiríntico, como labiríntico é a História e a Vida, Madrigal é uma reflexão sobre o mundo (“por onde transitam as fantasmagorias do moderno”); sobre a crise da linguagem; sobre o processo criador; sobre a literatura, como construtora de vida; sobre o destino humano, principalmente o da Mulher, verdadeiro "fiel da balança"; sobre o destino dos povos e, particularmente, o de Portugal e seus desdobramentos além-mar, como em África, "concebida esta como constelação histórica presente-passado, onde mensageiros imprudentes não cessam de criar espaços mágicos de todas as correspondências, deslocações metaf6ricas do desejo." (grifos nossos)

 

Entre esses "mensageiros imprudentes", está a própria escritora, em cujo universo romanesco, a África lusa ocupa um lugar especial, como parte vital da nova utopia: a da Grande Comunidade de Língua Portuguesa que, um dia, terá seu lugar de destaque na "aldeia global" em que o mundo está se transformando.

 

O aceno a essa nova utopia já está antecipada em Madrigal, com a evocação de uma certa paisagem angolana, destruída pela guerra e para sempre perdida, - evocação que leva a "vestal do Tempo" dizer:

“Nada poderia manter-se, pois nada é imutável, mas agora, acredita, o tempo é de regresso: acabar com o ódio e a intolerância é mais difícil do que destruir o mundo ... "

 

 

2. No Entretanto do Tempo (1994)

 

A nova utopia engloba esse "tempo de regresso" (sem ódios, intolerância e guerras). E vai ser sonhada em No Entretanto do Tempo (segundo volume da Trilogia da Ilusão), cujo título já revela o tempo intervalar vivido hoje por portugueses e africanos, prensados entre o apocalipse das guerras de independência e a gigantesca tarefa de reconstruir o corpo-de-sonho de uma África livre.

 

De lastro biográficol, adensado dramaticamente pela dor irremediável das perdas que não têm volta, No Entretanto do Tempo é antes um livro de ternura, dor e solidariedade, do que de revolta.  

Nele, a África (ou mais precisamente Angola) volta a ser o espaço-da-escrita e da invenção poética, que Filomena Cabral já acolhera anteriormente (1979) nos poemas de Muxima (expressão que traduz "saudade"), agora incluídos em No Entretanto do Tempo. Urna escrita de fundas raízes no substrato africano, penetrado pela cultura e pela língua portuguesa e que reflete

“não só a aceitação da cultura do Outro, o Africano, por parte do Europeu (Filomena), senão até a metamorfose, por identificação e amor, isto é, uma forma de saudade (o texto é projetado sobre a África desde a ausência in presentia). Metamorfose que poderia fazer deste texto de Filomena Cabral, um texto de literatura africana em língua da lusofania, tal é a sua identificação e transformação, em contacto com a realidade, sentida e imaginada do mundo africano." (José Luís Fontenla) (2)

 

Esse "mundo africano" é a nova utopia (illusio?) que Filomena Cabral recorda/sonha em No Entretanto do Tempo, cuja matéria agônica-luminosa, embora pareça abrir um novo sulco no mundo criado pela autora, em essência se integra no mesmo húmus que a nutre desde sempre: a consciência da indefinição de fronteiras en­tre passado/presente/futuro, ou entre “História e Ficção” (Benjamin) a "literatura como projeção do desejo" (Calvino); a idéia lacaniana de que “o inconsciente é o puro Outro" (não, o "semelhante", mas a chamada "alteridade da consciência"), na medida em que descobrimos que o "inconsciente não é uma região pulsante, tumultuada, particular, restrita ao dentro de nós, mas um efeito de nossas relações com outros" (Lacan); a atração pela metamorfose (associação da linguagem plástica e a linguagem literária, criando alegorias, fantasmagorias falantes, imagens alucinatórias ... ); a consciência da crise-da-linguagem ou do esgotamento dos significados conhecidos (denominador comum dos escritores sintonizados com o contemporâneo) .

 

Em síntese, No Entretanto do Tempo é um dorido registro de urna experiência real, transfigurada pela arte; e que funde o individual e o coletivo, acenando para a utopia com que todos (portugueses e africanos) sonham ... Longe de ser um "discurso da ingenuidade", como alguns podem pensar, é um discurso amoroso, feito de inteligência e corajoso idealismo.

 

3. Um Amor Cortês (1996)

 

É neste terceiro romance da Trilogia da Ilusão, que essa poli­mórfica/polifônica arte de Filomena Cabral atinge seu maior virtuosismo, seja no domínio da palavra como "fundadora de mundo", seja na fusão dos gêneros literários. (Para além de diluir as fronteiras entre romance e ensaio, como nos anteriores, agora persegue uma escritura híbrida que se tece com ficção, poesia, música, teatro, história, pintura, dança, canto, recitação ... )

 

Estruturalmente, Um Amor Cortês é uma narrativa en abyme. Com mais evidência do que antes, a intertextualidade é a técnica do­minante: um texto é sempre fruto de um outro que o precedeu ou de milhares de outros que, através dos séculos, vêm-se amalgamando para darem corpo ou realidade perene à vida efêmera que nos cumpre viver.

 

Consciente de que "vivemos hoje num mundo desencantado, em que os encantamentos são mais da ordem da memória ligada ao passado, ao maravilhoso", Filomena Cabral escolhe a Idade Média (tempo de magias e de guerras, durante o qual as nações européias se construiram como tais), como o tempo-espaço ideal para desenrolar a sua fábula. Tempo de germinação de idéias, normas, limites e certezas que, como sabemos, ao se transformarem em ação, acabaram por forjar um novo homem, - o do Renascimento - que lançou as bases definitivas da progressista civilização, herdada pelo nosso século, e hoje em pleno processo de transformação, desde as bases.

 

Muitos são os recantos dessa memória (centrada em Portugal), que o romance percorre. Deles, destacaremos apenas dois que, aparentemente independentes, acabam por interligar, através de uma personagem, Topázio/Taciturna. São eles: o espaço ocupado pela Mulher no Mundo e o espaço ocupado pelo Homem, na História. O primeiro correspondendo, no romance, ao ideal da mulher submissa e amante, fiel ao "amor cortês" (que garantia o equilíbrio dos poderes no mundo) e o segundo, correspondendo ao ideal do homem guerreiro que estava no centro da História, com a missão de construí-la ("centro" do qual já há muito foi desalojado) .

 

Esses dois espaços se interpenetram no romance, formando uma teia inextrincável, que se tece com a simultaneidade dos tempos em que decorre a trama: diluem-se as fronteiras entre o ontem, o hoje e o amanhã. O "presente narrativo" é o do passado medievaI, centrado na região Entre Douro e Minho. Um passado, porém, que no "presente narrativo" convive com seu próprio futuro, seja pelas "profecias" de fatos vindouros (como a descoberta do Brasil, a alusão a anacronismos verbais ou referências a fatos que viriam a acontecer, como a menção ao Reino de Calibão que, só no Renascimento, iria aparecer na peça de Shakespeare, Tempestade), seja pelo espírito de modernidade que o atravessa e o energiza.

 

Enfim, o que Um Amor Cortês tenta recuperar pela memória, não             se limita às formas de vida peculiares à Idade Média (como o pretendia o "romance histórico"), mas essencialmente procurar apreender o espírito que forjou aquelas formas. Essa preocupação está patente na escolha do "tempo histórico" em que se situa a trama: o já aludido tempo medieval, quando se firmam as raízes da civilização ocidental, e Portugal se prepara para a grande Aventura dos Descobrimentos. Tempo também em que nasce, em pequenas côrtes da Galícia e Sul da França, a poesia trovadoresca. Essa poesia, que nasceu canto e criou a "arte de amar", é o elo en­cantado que, de maneira invisível, se infiltra nos interstícios da narrativa e cria a atmosfera de conto-de-fadas, que o leitor respira do princípio ao fim.

 

Para mais ampla compreensão da intencionalidade maior que di­namiza o romance e responde por sua singularidade estilística (tendendo sempre à representação dos gestos, resultantes dos sons, da música), é preciso lembrar que essa poesia trovadoresca nasceu mesclada à música, ao canto, aos gestos ... oferecendo-se, nas côrtes medievais, como espetáculo ou representação; e levada, depois (pelos trovadores, menestréis, jograis) de côrte em côrte, de praça em praça, foi difundindo um novo ideal de homem: o do cortesão amoroso (em lugar do guerreiro que vinha predominando há séculos) submisso a um novo código de amor, - o da auto-entrega do eu ao tu amado, como suprema realização existencial.

 

É esse ideal-de-amor que Filomena Cabral, seguindo os rastros de Dona Bela e de sua filha mais velha, Topázio, vai desdobrando em seus labiríntico romance; por um lado, exaltando-o como essencial à realização do ser; e por outro, denunciando a falha-de-raiz que o impede de resistir à passagem do tempo e fatalmente leva à frustração dos amantes. É o que veremos mais adiante.

 

Grande alegoria do Amor, a poesia trovadoresca nasceu, como não podia deixar de ser, marcada pelo seu tempo: o do grande movimento espiritualista com que a Igreja combateu a barbárie e disciplinou os instintos, preparando terreno para a nova civilização que se engendrava (a burguesa-cristã). Daí se compreender que a mulher (princípio de vida e garantia de sua continuidade) tenha sido escolhida como matriz dessa nova poesia e que esta, naturalmente, tenha surgido sob duas formas poéticas derivadas da dualidade que, desde as origens bíblicas, estigmatizou a mulher: o Bem e o Mal; a pura e a impura, a virtuosa e a pecadora ... Virtude ou estigma que depende de um único ato: a obediência (ou desobediência) ao interdito do sexo, estabelecido pela Tradição.

 

Nessa ordem de idéias, compreende-se que, no momento em que se engendravam as formas de comportamento que dariam sustentação à Sociedade nascente, a poesia surgisse corno meio privilegiado de transmissão de seus valores; a mulher fosse apontada como a sua fonte primordial e a base de seu equilíbrio; e o sexo (privilegiado como órgão reprodutor e vedado corno prazer) tenha sido reprimido ou disciplinado, para que o controle social pudesse se exercer desde as nascentes.

 

É, pois, nesse fervilhar de novas formas de pensar e viver que surge a poesia trovadoresca, diferenciada em duas expressões bem distintas e excludentes:

- Cantiga de Amor ("Ay, mia fremosa Señor!"), - a do amor ideal, cantada pelo homem (trovador, menestrel, jogral) e dando voz a um novo tipo de relações homem-mulher: o amor cortês, a "arte de amor”, o amor como valor absoluto e eterno, vivido como um ritual sagrado, - o da entrega total da alma do amante à Mulher amada e inacessível (Amor que, mais tarde, Camões levaria à sua mais alta expressão) .

- Cantiga de Amigo ("Ay, eu, coitada / Corno me tarda o meu amigo na Guarda!") - a do amor real, dando voz à mulher (cuja presença, o trovador assumia, por artifício poético) que cantava o amor erótico, o amor como perdição e loucura e que se exacerbava com a perda do amado; - daí o constante lamento da mulher pela ausência do "amigo" e pela solidão em que vivia (ou morria) .

 

Na linha das fusões ou da diluição de limites que singulari­zam a sua escrita, Filomena Cabral engendra numa personagem, a fusão dessas duas cantigas, ou melhor, desses dois estados de espírito, que a Tradição estigmatizou como excludentes: o do amor espiritual, absoluto e eterno e a do amor erótico, momentâneo, avassalador e fugaz. Dona Bela é a sedutora e comovente alegoria dessa fusão e também a prova eloquente da falência desse ideal-de-amor que, mesmo desfazendo a dualidade e tornando-se total (corpo e alma) permanece individualista, realizan­do-se em circuito fechado, isto é, no círculo restrito do eu + você, que leva ao desgaste do próprio amor. É Topázio quem vai denunciar essa falha do ideal e se entregar a um novo projeto amoroso: eu + você + mundo. Vejamos como o romance se desenvolve em torno dessa problemática.

 

Certo dia ao crepúsculo estando a dona a tecer a música chegou mui doce

 

É esse o início do romance. Destacada do fluxo encantatório da narrativa e posta em epígrafe, essa breve cena da "dona a tecer" vai-se revelar, no refluxo da leitura, como a célula seminal do "rimance" de Dona Bela, aqui contado/cantado. "Riman­ce" que pontua toda a labiríntica narrativa romanesca e redescobre a "arte de amar", o ideal do "amor cortês", a partir da perspectiva da mulher e já nâo dividido entre ideal (realizado no plano abstrato do espírito) e real (concretizado pela entrega do corpo), mas ambos fundidos numa só energia existencial, avassaladora.

 

Já nas primeiras palavras, se faz ouvir a voz da narradora, tornando explícito ao leitor que ele está novamente entrando no mundo da illusio e que novos caminhos e atalhos serão percorridos:

Volto-me para minha sombra, tomada por um sentimento de amargura. Como o salgueiro permito que a memória, tantas vezes estilhaçada, cintile em limbos infinitos, folhas, ainda que de papel. [ ... ] sou motivada no sentido de  um caminho diferente, armadilha sedutora das palavras, desenhar uma outra linha na trama, que insistimos em designar por destino, ainda que o da escrita. [ ... ] falar-vos-ei ainda da personagem feminina a quem denominei Angélica, não sei se demoníaca, cujo perfil tracei num outro livro (Madrígal), onde ela habitava o nada e o tudo.”

 

Assumindo-se como criadora das tramas e destinos, que sua escrita vai tecendo com os fios da memória e da imaginação, a persona-narradora nos avisa que, entretanto, não vai só, precisa do olhar ou do sentir de Angélica (personagem-limiar, oscilante entre o presente, o passado e o futuro; o real e o maravilhoso, o "nada e o tudo" ... ) não só para decidir os novos caminhos a percorrer, mas também para alertar o leitor para a continuação da viagem (pela História, pelo Mito, pela Língua, pela Literatura, pela Vida ... ) encetada no primeiro volume da Trilogia da Ilusão e agora em sua última etapa.

 

“Mostrou-me Angélica saídas disponíveis, a chave do cofre, onde guardadas são as tonalidades, a clave de todos os dizeres, a possibilidade, enfim. Ordenei que abrisse a porta primeira. Empunhou a chave.

O tempo rodou:

Taciturna descobriu o rosto e velou o corpo, não saberia actuar se, coordenados os movimentos, deparasse consigo mesma na nudez:

da mudez sabia, e conformara-se.”      (grifos nossos)

 

Na linguagem encantatória dos romances arcaicos ou dos contos-­de-fadas, a romancista nos introduz no espaço mágico em que os sucessos se vão desenrolar, e nos põe frente a frente com Taciturna, personagem que de imediato se revela como mulher submissa ao ideal feminino consagrado pela Tradição: "velou o rosto" e "conformara-se" com a "mudez". O que significa obediência aos tabus do corpo e das palavras. (Lembremos que o despudor e a tagarelice foram sempre (ou são?) os defeitos mais censurados às mulheres.) Entretanto, como veremos no decorrer da trama, Taciturna (apelido de Topázio) não era igual às demais donzelas. Arredia, pensativa, triste, buscava a solidão dos campos, as sombras, "se perdia pelas salas à procura de pequenos tesouros, pergaminhos enrolados com fita carmezim, queimados pelo tempo, alguns em idiomas por ela desconhecidos [ ... ] fascinada pelas palavras que não vinham até ela por não conhecer a chave que pudesse dar-­lhes acesso."

 

É esse seu fascínio pelas palavras, sua curiosidade em relação às coisas que não conhecia, sua atração pelos testemunhos do passado e os acontecimentos mágicos de que participou com o Cavaleiro Trevaluz, que vão levá-la, afinal, ao projeto de vida que, metaforicamente, antecipa, a nova mulher, hoje em gestação em nosso século. "Nova", no sentido em que assume e transforma a "antiga": a do amor "em circuito fechado".

 

Paralelamente ao correr da vida de Taciturna e suas irmãs, vamos tendo conhecimento da vida de Dona Bela que, presa de um encantantamento, aos poucos vai desaparecendo do convívio familiar, sem que as filhas, ainda pequenas, se dessem conta disso. É nesse encantamento, que Filomena Cabral projetou a grande alegoria do "amor cortês" que é, afinal, o ideal-de-amor que a Tradição nos legou.

 

Nesse sentido, é importante lembrar que da Idade Média ao início do nosso século, tudo mudou profundamente: sistemas políticos, sistemas económicos, conquistas tecnológicas, arte, domínio da natureza, modas, etc., etc., menos o ideal-de-amor baseado na imagem du­al da mulher, tal como a religião a consagrara. Imagem que atravessou a Era Clássica, permaneceu na Era Romântica e chegou aos nossos tempos. Foi preciso que Deus fosse posto em questão pela Ciência e o mundo perdesse seu centro sagrado, para que esse alto ideal amoroso fosse contestado ou negado; e o Amor entrasse em descrédito, criando o caos nas relações homem-mulher.

 

Filomena Cabral, através de Dona Bela e de Topázio, procura res­gatar aquele alto ideal de amor (essencial aos seres humanos), mas transformando-o em uma nova força geradora de plenitude vital. E o faz, criando um dos mais belos momentos de sua obra romanesca: o "rimance" de Dona Bela, cujo marido, D.Valdevino, senhor de Entre Douro e Minho, fôra para as Cruzadas e não voltara, deixando-a solitária em seu castelo, em companhia das filhas e da ama Clarimunda. Até que, em certo "tempo de encantamento", estava ela a tecer, quando uma música "mui doce" invade todo o castelo, altera-lhe a calma rotineira, faz dançar o fogo, as louças, estilhaçar as jarras, soltar o perfume das flores ... invade de alegria as pessoas e, de repente, desaparece.

 

Como que enfeitiçada, Dona Bela, a partir de então, só vivia à espera de que a música voltasse, para novamente deixar-se levar pelo seu encantamento. Várias vezes ela chegou e se foi, até que, em certa noite, as ondas de melodia se transformaram num belo “donzel”, invisível para todos, menos para Dona Bela que, invadida de paixão, com ele pôs-se a bailar e a ele se entregou. Testemunha perplexa do que acontecia diante de seus olhos (a Dona a bailar sozinha, como se tivesse um par, e na cama, nua e feliz, a abraçar a si mesma) Clarimunda sentia que algo de mágico acontecia: sua Dona estava enfeitiçada. E com o tempo, acostuma-se com      a música, os bailados e as estranhas cenas da Dona a amar o invisível.

 

Até que um dia, a música não voltou mais, apesar das muitas súplicas da Dona: "Diz que me queres! Não partas! Volta! Volta!" Novamente solitária e não sabendo mais "viver sem ritmo", Dona Bela fecha-se num quarto afastado, cuja porta logo se encobriu com teias de aranha. "Enclausurada com a memória" do amado ausente, transformada em morta-viva, de quem os demais só guardavam uma vaga lembrança.

 

A longa paráfrase (que anula toda a magia do texto romanesco ... ) justifica-se na medida em que facilita a decodificação da alegoria isto é, das formas figuradas criadas pela romancista para expressar as idéias implícitas no ideal-de-amor em foco. Destaquem-se, pois, as identificações alegóricas:

 

- da natureza abstrata, fluida, imponderável ou inexplicável do Amor, com a música (sons, ritmos, ressonâncias ... que no romance estão ligadas à poesia trovadoresca, que nasceu para cantar o amor);

- do caráter pessoal, íntimo e intransferível do sentimento amoroso (que leva o amante a ver no objeto amado o que ninguém vê) com a invisibilidade do "donzel" que só para Dona Bela é visível

- da energia ou vibração vital produzida nos amantes pelo estado amoroso, com a vibração de alegria e agitação produzida pela música ao invadir o castelo;

- da natureza duradoura do verdadeiro amor (aquele que leva o ser que-ama à sua plena realização) com a fidelidade de Dona Bela, fechando-se para o mundo, a fim de viver da memória do ausente, que a abandonou.

 

É este último aspecto (o da abdicação da vida com os outros para viver da memória do amor) que vai ser visceralmente transformado pela filha de Dona Bela, Taciturna/Topázio, quando anos depois chegar a sua vez de amar.

 

Saltando por cima do enovelamento romanesco e mágico que nos vai desvendando a personalidade de Taciturna/Topázio, detemo-nos no seu encontro final com o Cavaleiro Trevaluz, pretendente à sua mão.

 

(Mas antes de analisarmos esse encontro, abriremos aqui um parêntese para apontar pelo menos dois dos inúmeros elementos simbólicos que dão coerência orgânica à construção do romance e ressaltam as sutilezas da arte de Filomena Cabral. Referimo­-nos ao nome Topázio, escolhido para a personagem-chave da transfiguração em causa no romance, e ao de Trevaluz, seu “iluminador.

 

Apelidada, desde pequena, de Taciturna, fica claro que sua personalidade estava encoberta, vivia imersa em sombras (como a efabulação romanesca torna bem claro) . A partir do momento em que se assume, por inteiro, o nome "Topázio" substitui o apelido.

 

Lembremos que topázio é uma pedra. Desde as origens mais re­cuadas, no âmbito do conhecimento esotérico ou religioso em ge­ral, as pedras eram vistas, não como massas inertes, mas como algo em contínua e invisível transformação. Daí a estreita ligação apontada entre a alma e a pedra, pois ambas tinham em comum o duplo movimento: descerem do céu (das estrelas ou meteóricos e de Deus) e a ele voltarem, depois de cumprida a tarefa (por e­feito da erosão e pela morte). // À pedra filosofal era atribuída a noção da Grande Obra a ser construída pelos homens. // Na tradição bíblica, pedra significa sabedoria; daí que a constru­ção "pedra sobre pedra" evoque a de uma construção espiritual. Ao nível das significações secretas das pedras (ex. ágata, signo do respeito e da fortuna; ouro, da imortalidade, etc.) o topázio é o signo da "coragem, lealdade, piedade e riquezas legítimas" (Islam) e também do "poder de neutralizar líquidos venenosos".

Note-se ainda que topázio é uma pedra semi-preciosa (nem pedra bruta, nem mineral precioso), tal qual o ser humano, visto por todas as religiões como formado de alma (metade divina) e corpo (metade animal). Reforçando essa dualidade inerente ao ser humano, o "iluminador" do novo caminho de Topázio é Trevaluz, cuja presença e palavras, no romance, tornam explícito que o enigma humano é impossível de ser decifrado, pois à possível "luz" de um conhecimento total, se opõem as "trevas" que ocultam o indevassável.)

 

Fechado o parêntese, voltamos ao encontro de Taciturna/Topázio com o cavaleiro Trevaluz e do qual destacaremos três momentos que, a nosso ver, compõem a alegoria do novo ideal-de-amor e da nova mulher que, em nosso tempo, estão em germinação:

 

1.Taciturna, à noite em seu quarto, se contemplava no espelho quando nele vê surgir Trevaluz. (Pela simbologia do espelho, sabe-se que o eu se encontra realmente, quando se vê refletido no outro ou reconhecido pelo outro: essa é a componente básica do amor.)

 

2. Inquirido por Taciturna sobre sua presença ali, Trevaluz respondeu: "Quero que sejais minha, ainda antes de partir, gran­de empreendimento sou obrigado a prosseguir." (A experiência do amor, como entrega do eu ao outro, é condição básica para se viver "grandes empreendimentos", isto é, vida plena de ação fecunda, construtiva).

 

3. Prosseguindo, Trevaluz lhe diz "que fora ali para possui-la, sem sangue, sim com a queimadura da alma, bem mais terrível". E conclui:

"Continuarás virgem mas deixarás de ser pura: não será puro o que tem consciência do bem e do mal, quem joga o jogo." (Aí temos expressa, literalmente, a nova concepção do amor, como realização plena do ser, mas não obrigatoriamente vinculada (ou limitada) ao ato sexual, mas sim (com ou sem sexo) pela conquista da cons­ciência crítica do eu em comunhão existencial com o outro(s), como forças complementares que são, dentro do universo.)

 

É essa nova visão-de-mundo (ou de mulher) que Filomena Cabral alegoriza nas últimas páginas do romance, acompanhando a trans­formação de Taciturna em Topázio.

 

“E Taciturna, experimentando, pela primeira vez, a inquietação do desejo, os espasmos que tornam o coração louco e o cérebro radioso, envolveu-se num abraço sem braços, a queimadura tomava-a por dentro, corno se a atravessasse um rio de fogo, de lava. Eis que vinha desse lugar, onde se perdera com o cavaleiro, e nunca mais seria a mesma.”

 

Aí temos o momento de transfiguração de Taciturna: como que num processo alquímico (fundindo corpo e espírito), a força avassaladora da libido ("queimadura da alma") como a grande reveladora do ser a si mesmo e a dinamizadora de sua ação.

 

A partir desse momento, Taciturna desaparece para dar lugar a Topázio que, tal qual guerreiro, vestida com a armadura do pai e com sua lança de guerreiro, parte para desafiar o "monstro" que ,na "fonte das águas mágicas" (o do antigo "amor cortês), seduzia as mulheres com suas cantigas doces, aprisionando-as em amor e dor, para sempre. Tapando os ouvidos com "bolotas de sobreiro", para não ceder à sedução do canto, Topázio acaba por matá-lo. Em seguida dirige-se a galope ao "castelo de Guimarães, berço da nacionalidade" e faz sua profissão de fé, que é, ao mesmo tempo, um presságio ou profecia de coisas que, a partir de então, aconteceriam:

 

“-Juro que os mares haverei de cruzar, pela Palavra, à minha phala fiel, para que respeitem mais e mais Portugal!

Juro que nos intervalos das pelejas - como mulher serei sempre mui pelejada- pousarei a espada e empunharei a pena, escrever hei-de, o melhor que puder, para honra do meu País! [ ... ]

A terra mil voltas dará, por miles de anos rodará, seremos um Império, senhores do Mundo, com a Hespanha, e tudo perderemos, mas algo nos pertencerá para todo o sempre, no entretanto do tempo: a lusa phala."

 

Nesse desenlace confluem os dois problemas axiais de Um Amor Cortês: o da mulher que busca sua nova identidade feminina e o de Portugal que, neste novo ciclo em que o mundo entrou, procura "se cumprir" novamente, com a grandeza com que o fez no ciclo dos Descobrimentos.

 

Mas agora as "caravelas" são outras. Filomena Cabral aponta para uma que, na verdade, vem sendo sonhada como a "grande caravela", em que os povos de língua portuguesa (cerca de 190 milhões de falantes) devem embarcar, conscientemente, no Terceiro Milênio: a lusa phala, - a fala lusitana, célula original (e inextirpável) dos muitos falares que hoje no Brasil, em África e Ásia, se identificam com o tronco ancestral, que os tornou galhos da grande árvore ocidental, hoje cheia de enxertos e em plena muda de folhas.

 

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(1) Filomena Cabral casou-se em Luanda e ali viveu durante dez anos (1962/1972) até à morte do marido em uma emboscada de guerrilheiros.

(2) FONTENLA, José Luís. "Natureza textual e cultura no Outro, Alteridade e Metamorfose em Muxima de Filomena Cabral. Literatura Lusófana Africana?" in Anais-Simpósio Internacional Mulher & Cultura. Compostela, 1992

 

1 – Escrito em 1997, aguarda publicação na Colóquio Letras”, desde então

2 – Publicado em 1996; desde então foram editadas oito obras.