Índice:
40 -
“I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil”
39 - FILOMENA CABRAL, UMA VOZ CONTEMPORÂNEA
38 -
EUROPA - ALEGRO PRODIGIOSO
37 -
FEDERICO GARCÍA LORCA
36 -
O PORTO CULTO
35 -
IBSEN – Pelo TEP
34 -
SUR LES TOITS DE PARIS
33 -
UM DESESPERO MORTAL
32 -
OS DA MINHA RUA
31 -
ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS
30 -
MEDITAÇÕES METAPOETICAS
29 -
AMÊNDOAS, DOCES, VENENOS
28 -
NO DIA MUNDIAL DA POESIA
27 -
METÁFORA EM CONTINUO
26 -
ÁLVARO CUNHAL – OBRAS ESCOLHIDAS
25 -
COLÓQUIO INTERNACIONAL. - A "EXCLUSÃO"
24 -
As Palavras e os Dias
23 -
OS GRANDES PORTUGUESES
22 -
EXPRESSÕES DO CORPO
21 -
O LEGADO DE MNEMOSINA
20 -
Aqui se refere CONTOS DA IMAGEM
19 -
FLAUSINO TORRES – Um Intelectual Antifascista
18 -
A fidelidade do retrato
17 -
Uma Leitura da Tradição
16 -
Faz-te à Vida
15 -
DE RIOS VELHOS E GUERRILHEIROS
14 - Cicerones de Universos, os Portugueses
13 - Agora que Falamos de Morrer
12 - A Última Campanha
11 - 0 simbolismo da água
10 - A Ronda da Noite
09 - MANDELA – O Retrato Autorizado
08 - As Pequenas Memórias
07 - Uma verdade inconveniente
06 - Ruralidade e memória
05 - Bibliomania
04 - Poemas do Calendário
03 - Apelos
02 - Jardim Lusíada
01 - Um Teatro de Papel
Entendo que todo o jornalismo tem de ser cultural, pois implica
uma cultura cívica, a qual não evita que, na compulsão, quantas vezes
da actualidade, se esqueçam as diferenças.
No jornalismo decididamente voltado para a área cultural, todos
os acontecimentos são pseudoeventos, cruzando-se formas discursivas
em que as micropráticas têm espaço de discussão.
Não sendo um género, o jornalismo cultural é contudo uma prática
jornalística, havendo temas que podem ser focados numa perspectiva
cultural especifica ou informativa, numa área não suficientemente
rígida, embora de contornos definidos.
Assim o tenho vindo a praticar ao longo dos anos, quer na comunicação social quer, a partir de agora, neste espaço a convite da 'Unicepe'.
Leça da Palmeira, 23 de Setembro de 2006
|
|
2008-11-08
Filomena Cabral
“I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil”
“I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil”, de 20 a 24 de Outubro de.2008
“Comunicação: da Teoria à Prática” / Filomena Cabral (1)
“Puzzling” (Sub-título)
Habituei-me a tactear formas, conceitos; entre a teoria e a prática o fazer, e, na actividade da escrita, como noutra qualquer actividade, o praticante vai percebendo que o empolgamento gera inquietação e esta agudiza a capacidade. Fui-me viciando na antropofagia das formas, incorporando o que me sensibiliza, encanta, horroriza, sempre rasando os extremos, quais pontas aceradas. Avalio em solidão as marcas que possam deixar, olharei sempre mais longe, na tentativa de escapar quiçá à amargura, os criadores são peritos em deslocar-se num inferno de possibilidades, incertezas, induzindo prazeres e decepções, camuflagens, até o próprio sujeito da escrita parece suspeitar de si mesmo.
Será pois na dúvida, na perseguição do bom resultado, no princípio da indagação – o abençoado desassossego – que quase tudo se concretiza: sem este, a vontade estiolaria, até o sangue deixaria de sê-lo, tornado uma qualquer matéria inerme, sem dúvida vital mas sem desígnio, por não ser mais que a escalfeta do corpo, quando deve ser, é forçoso que seja, matéria viva: irrigando-nos, cumpre a finalidade que lhe foi traçada desde os primórdios e tudo o que é verdadeiramente perturbador, motivante, da ordem do sonho, da sempiterna utopia, inscreve-se a vermelho na memória do colectivo. Não creio possível manipular, sem incalculáveis danos, o fio de um curso de energia universal, que nos faz intentar aventuras audaciosas, escamotear a perturbação, e, necessariamente, perseguir um resultado, na ausência do qual a inquietação seria gratuita.
Intuímos desde cedo que nada acontece na escrita como quem planta um pé de vinha; para defendê-lo da geada, ao processo narrativo, teremos de, para além de analisar a capacidade ou o recurso a determinado método, encarar, em retiro, a responsabilidade de comunicar sem falsear, ou de narrar a memória do mundo sem atraiçoá-la. Quem atraiçoa morre, embora, eventualmente, atinja um século de existência. E são esses mortos, aparentemente vivos, a acrescentar a muitos outros provocadoramente jovens, quem tem por função alienar o mundo, e este aprecia ser alienado, menorizado, achincalhado, tudo aceita, desde que o mistifiquem. A estes, aos que se não preocupam em joeirar, caberá o maior número de grãos necessários à degenerescência, em determinado contexto; e, dado que é impossível conhecer, actualizar, todas as prováveis técnicas (evasivas ou construtivas) de todos os factíveis contextos, o praticante avisado prende o seu pé de vinha (creio que com esta imagem estou inconscientemente a projectar no Brasil o Douro, o norte de Portugal, visto ser uma “europeia galaico duriense”) à realidade sólida. Tudo o mais pode ser instável, incluída a matéria rarefeita do sonho, não a matriz: ainda que como as melodias se transfigure em variantes, lá continua embora já não o mesmo.
A teoria sem prática auto-confina-se a um reduto academista, a prática sem teoria é relegada para um processo individual consciente, que há-de evoluir no sentido de ir beber àquela, até que se não separem uma da outra.
O recurso a um método, que nos garanta a concretização de um objectivo, representa, no início da actividade, uma vitória sobre a emoção, a dominante é a preocupação, e a dúvida sistemática um sinal do indispensável bom senso voltado para o concreto: e aqui viso a prática do jornalismo, na área cultural, em que a capacidade de analisar, quando ainda incipiente, pode levar-nos para um incerto fazer em que o respeito pelo labor alheio é, desde logo, fundamental, porfiando numa ética antes de ser, eventualmente, uma estética. Abre-se um livro - tenho-me voltado mais para o literário - e desvenda-se-nos um mundo, que talvez possa ser-nos totalmente alheio. Mas, entretanto, algo da ordem do residual permanece, e de livro em livro, de um protocolo da escrita para outro, diversos, vamos tomando consciência de que a actualização, a revitalização de acontecimentos tornados objectivos é que formam a memória, esta não existe em si mesmo: ainda que desligada do colectivo, acaba por reforçar, consciente ou inconscientemente, a história cultural: os saberes, as experiências são influenciados pelo modo de pensar e agir quer da época em que se inserem, quer a do momento em que o sujeito os selecciona, regista, quer ainda o da publicação. Idealmente, a leitura seria o passo seguinte.
A ficção e o testemunho misturam-se muitas vezes, em muito autores, conhecedores de que o depoimento informa das revoluções da alma, atento às mudanças nos costumes e nas instituições, ao longo do tempo, logo sucessivas estéticas. «A ética e a estética são um», defende Walter Benjamin, ele sabia que “o mundo nunca está contente” e que o autor se torna por vezes uma voz virtual a acentuar uma figura ou outra; a da ironia a que mais aprecio. Encontrei o pensamento de Walter Benjamin suficientemente cedo, para felicidade minha, nossa por certo, atrevo-me a dizê-lo. Alumiou-me o caminho, quando, a partir de determinada altura, comecei a estruturar-me, enquanto escritora, e vale informar que entre o início da minha actividade no jornalismo e o meu primeiro romance, “Tarde de mais Mariana”, mediaram dois anos, embora já com outros livros publicados, poesia, essencialmente. Ensinaram-me Walter Benjamin, Nietzshe, o trágico da existência, e eu, pé ante pé, pelo mundo, a grande narrativa, no seu encalço e no de muitos outros, entre eles o também amado e indispensável Kant, que nos diz ser a mão o pensamento exterior.
Acabei por compreender melhor os caminhos alheios enquanto ia traçando a minha cartografia, na medida em que procurava pontos de encontro entre o fazer e a teoria, assim fui escolhendo os meus canais de preferência, mas isto é dedutível à posteriori. A grande preocupação, desde sempre, foi a de não atraiçoar-me, respeitando os outros, logo respeitando-me. Deslocando-me, ao longo da vida e da escrita, pela catedral das literaturas, encontrei muitas figuras de merecida devoção, mas, qualquer “amador” que se preze haverá de encarar a possibilidade de lobrigar um nicho, uma peanha na penumbra, que ninguém parece notar, cabendo-nos então, enquanto jornalistas da área cultural, tarefa que justifica a actividade, em grande parte: divulgar, partilhar, pondo de lado a própria figura narcísica, se existir, sempre devoradora; necessário pois colocar sentinela firme no respeito pelo labor alheio, todos contribuímos para algo que nos ultrapassa, na totalidade somos os guardiões da memória das linguagens, e em simultâneo, se criadores, o instrumento dessa inscrição na memória do colectivo, uma arqueologia em contínuo: ninguém, no próprio tempo, sabe o que perdurará na matéria friável dos sonhos, ao capricho da vontade de múltiplos, que também somos nós: todos ansiamos deixar uma marca, um fóssil, no coração do mundo, para que ele nos não esqueça (depressa).
Por isso atentamos, ou deveríamos, enquanto jornalistas do “cultural”, nas vozes mais discretas ou em silêncio involuntário, dedicando-lhes o mesmo cuidado prestado aos grandes vultos, que também para estes me volto, retribuindo assim, por via longínqua, indirecta, o desvelo que o meu dizer, enquanto criadora, possa ter suscitado noutros. Deste modo, enquanto tal, intencionalmente, procuro o caminho das pedras, o das empresas difíceis ainda que inglórias, cuidadosa em não invadir o espaço alheio, que se quer único, se bem que existam e só formas de narrar, segundo uma estrutura, a do próprio sujeito, daí a individualidade das vozes; ninguém consegue trair-se, ainda que o pretenda, sobretudo se contentinho, deslumbrado! A escrita é uma fatalidade, ninguém está na literatura por gosto – eu ainda não descobri se gosto de escrever -, o que não inviabiliza o contrário, quando se confunde, tantas vezes, demasiadas, a escrita com a literatura.
Mas o que diferencia uma da outra? A ética? A estética? Quanto a mim um compromisso com o mundo, em sã consciência. O respeito pelo outro passa pela forma como comunicamos com ele, e quanto mais nos respeitarmos mais o veneramos.
Sei bem que nem todos os jornalistas culturais, com o decorrer do tempo e da prática da escrita, num exercício contínuo interdisciplinar, se tornam passíveis de ocupar um qualquer hipotético recanto no labirinto da linguagem - e devemos pensar que tal nunca nos diz respeito, sabiamente e por princípio - se presenteados pelos deuses com a vulnerabilidade do humano, em “carne viva”. Múltiplas presenças, também por não desdenharem o caminho das pedras, muito pelo contrário, me encontraram, leram, estimularam. Algumas abandonaram-me logo a seguir, supremo desafio pessoal: fui obrigada a acreditar em mim, a caminhar só, a afastar-me delas, a encetar o relacionamento com outros “corpos”, movimentando-me ao seu encontro. Entende Bakhtin, prestando tributo a Einstein, que o movimento de um corpo só encontra justificação quando em relação a outro corpo(s), físico, político, conceptual, no sentido da utópica “comunidade”, ainda que Bakhtin a restringisse porventura ao seu país de origem. Assim procedi, ao longo dos textos, outras exigências em mim atentaram, no Brasil, onde estive já tantas vezes dizendo-vos da minha particularidade: nos textos e na vida não é possível fugir ao movimento da maré, ao fluxo e ao refluxo, assim se vai formando a espuma dos dias.
E tudo afinal se concretizara na cidade do Porto, cidade onde nasci e onde vivi por mais de cinquenta anos (agora em Lisboa, acabo de escrever um novo romance, “Os pavões de Gori”), ali produzi tudo o que até hoje veio a público, em jornais ou na Internet, em vinte e oito livros, dezanove deles romances, dois ainda por publicar (um sê-lo-á em Fevereiro próximo), uma peça de teatro sobre Pedro e Inês,”O Grito da Garça”, o mito português da tragédia no amor, um livro de poemas inédito, que tenho desprezado por embrenhada num projecto, “o ciclo americano”, motivado na América ibérica, ramificando-se por Angola, por motivos óbvios, seja o tributo a prestar por Portugal e Brasil aos africanos, pela sua energia, determinante, com a dos nossos antepassados, portugueses e brasileiros, sem desdenhar outras nações europeias, no fazer da nação brasileira, ou ainda pelo contributo dos pernambucanos, que, no século XIX (1848) foram daqui deportados para Angola (a rainha D. Maria não os quis na Metrópole, eram ricos, iriam perturbar os interesses estabelecidos em Lisboa), em resultado da “revolução praieira”, no Recife; estabelecem-se junto do deserto de Moçâmedes. Ali edificariam a cidade do mesmo nome - saga espantosa - consigo levavam uma prática, a do fazer do Brasil: transitar por aqui, pelo interior do estado de S.Paulo, é transitar por lá, tal a similitude. Na verdade, haveriam esses brasileiros, pela descendência, de combater na guerra colonial (1961-1974), tal como anteriormente teriam enfrentado, ainda no séc. XIX, os alemães, em Moçâmedes, projectavam aqueles explorar Angola, por desinteresse nítido de Portugal. Logo, se hoje se fala português na antiga colónia, terá sido também pela atitude de rejeição determinada dos pernambucanos, em ido tempo (o amor dos portugueses, desde quinhentos, fixou-se no Brasil, a jóia da coroa); quer a América inglesa, ciclo esse formando uma pentalogia e já publicado. Romances, afinal, na pretensão de que textos romanescos, historiográficos, contribuam para avivar a memória do mundo, como quem sopra cinzas; o brasido quase extinto… de súbito, bruxuleante, uma palavra, outra! E ainda uma outra; surgem figuras, vozes, contextos, eu a transfigurar-me, mero utensílio, intuindo que me vou imolando – “p´rá morte, p´rá morte” –, um grito de guerra, no desespero de encarar o embate das formas, como outros no combate das ideias. Há trinta e três anos que a minha vida é isto, há três décadas pois que deveras existo na escrita, embora sabedora de que, até por um escritor, o amor é o mais difícil, sempre, tudo o mais é viável à face da terra, aspecto este, acreditem, bastante estimulante. Sem raiva o escritor não sobrevive.
A loucura criativa, desafiante, é um gume, um golpe inestancável, inenarrável: por mais que se escreva não nos abandona a ânsia. Por isso me tenho voltado para outras vozes, para além da minha, atenta a outros textos, para divulgá-los, neles implícitos outros que também somos nós, “je est un autre”, formando-se assim uma irmandade de vozes, “coral” de diferenciado dizer a incorporar-se num todo; a metalinguagem deve ser, por princípio, devastadora, tornar-se-ia (se tal fosse possível) atroadora. Por vezes pergunto-me se não haveria sensatas razões para o emudecimento, de minha parte, porém, tais razões não justificariam o silêncio, pois tudo em mim se motiva na entrega, num sentido tão amplo que chega a parecer masoquismo. Acredito, no entanto, que, na impiedade dirigida a nós mesmos, poderá residir uma forma de sabedoria. Será caso para indagar porque se sobrevive, apesar do arsenal de emoções desencontradas. Creio que tudo se resume à capacidade de resistir.
Num movimento ”teoria-prática-teoria”, as dificuldades, levando a um questionamento, remetem sempre para o labirinto. Se o discurso teórico é declarativo e explícito, o conhecimento prático é implícito e intuitivo. Aparentemente antagónicos, cabe ao sujeito fazer a articulação, estabelecer um percurso “prático teórico”, em metamorfose, versus a aptidão e a repetição que a teoria é. E se assim não acontecesse, refiro-me à variabilidade, reaproximar-nos-íamos do positivismo, que foi tão caro e tão importante no Brasil, ainda que aquele admita, como fonte única do conhecimento, o critério da verdade; agora, hoje, estimulam-nos mais as verdades por simulacro, as mentiras convenientes… Mas, estará Comte fora do tempo? Seria o mesmo que perguntar se Hegel emigrou para outra galáxia, quando ambos coincidem no conceito, segundo o qual “as ideias conduzem e transformam o mundo”. E daí, talvez tivesse partido já, mas voltou…Estou ainda de acordo com Auguste Comte, quando destaca que só é possível conhecer o espírito humano através de obras sucessivas, ainda que se refira à história da civilização e do conhecimento. Porém, rejeita a introspecção e aí o caminho, quanto a mim, bifurca-se: e então Bakhtin, indispensável à figura da ironia, ao tal olhar enviesado do sujeito sobre o si mesmo e as suas criaturas? Não dispenso - e não estou sozinha - esse estar subversivo que nos lança, enquanto criadores, para o fatal “trampolim lírico da linguagem”, a rede elástica sem a qual não teriam existido os nossos Machado de Assis, Eça de Queiroz, Sá-Carneiro, Guimarães Rosa, e durante e depois deles, não mencionando muitos outros, a matilha ainda e sempre esfaimada de palavras, com um pé no século XX e outro no século XXI, na maior parte gente madura, com seiva, “ mestres artífices” a destruir estimativas, qual vinha podada sistematicamente, nodosa, persistente, cujo expoente máximo José Saramago metaforiza na perfeição; homenageado neste Encontro, espécie de pater famílias das literaturas de língua portuguesa, quase a rasar o além, regressa, por virtualidade do viver, escreve ainda um livro, outros virão. A repartir a chefia, Agustina Bessa-Luís (oxalá me não amaldiçoem um e outro, ou outros por eles); luxuriantes, provocadores, estimulantes. Pegamos num livro de Saramago e a ancestralidade, a sabedoria espraiam-se pela actualidade; a vivacidade, a extrema inteligência de pensar o mundo estão lá; voltamo-nos para Agustina e encontramos um universo situado nos antípodas, embora com pontos em comum, como o de bem conhecerem a alma portuguesa; são, no entanto, de mundos diversos: creio que não existira antes de Agustina perversidade em tal grau, a genialidade aproxima-se da crueza, ligadas, desafiam as fúrias… E não há herdeiros à vista, aquietem-se os pretensos delfins!... Quem meterá na cabeça de petulantes que é o génio que escolhe, não é escolhido… Acredito que lhes tenha sido cometido, a Saramago e Agustina, entenda-se, entre os vivos, e a outros, pouquíssimos, altíssima a fasquia, mas não me compete, por demasiado evidente, decidir da hierarquia em qualquer tempo.
E depois as literaturas de língua portuguesa parecem cada vez mais, espero que me perdoem a ironia, enquanto brasileiros, enfeudadas às teorias de Adam Smith, tão importante que foi pelo seu breviário útil, conducente à riqueza das nações americanas, esquecendo porém que a natureza humana, imutável, é regulada por uma capacidade de simpatia e por uma presença interior, a consciência moral, que aprova ou desaprova as acções do indivíduo. Pormenor este que, criando tensões, desde sempre, recorde-se a “inconfidência mineira”, a “revolta baiana”, a “revolta praieira”, e, mais para a frente, o “ataque ao forte de Copacabana”, leva à gestão do conflito e à faculdade de criar instituições, através das quais os mesmos conflitos são transformados em bens sociais. Na trama de Smith – o mundo é uma grande narrativa plurifacetada – estão Rousseau, Voltaire, que o apresentara nos grandes salões literários. Acredito, a par de muitíssimos aspectos bem mais determinantes, que o reflexo das suas teses no inconsciente colectivo brasileiro tem habilitado este país na condução de políticas práticas - ainda que a posteriori -, Smith foi antes de tudo um social especulativo que, expondo “sentimentos morais”, numa linha evolutiva conducente a um maior bem estar colectivo, acabaria por inspirar Marx; a diferença é que este via a evolução como uma luta de classes, enquanto Smith atribuíra a evolução ou o progresso (ainda sem dialéctica) à natureza humana: afinal tudo começara com as teses de Rousseau,”todos os homens nascem livres e iguais”, logo com igualdade de oportunidades, teses aparentemente vivas, crepitantes, hoje, no continente americano, nos EUA, aqui tão perto, assim seja com as literaturas… agora que o Brasil se tornou o centro do antigo império, da “phala” e não só. Desde 500, tem constituído um tubo de ensaio sociológico privilegiado, motivo pelo qual me deixei seduzir pelo desejo apaixonado do homem brasileiro em melhorar, em transcender-se, por bem ter conhecido pessoalmente África, nações jovens, e a velhíssima Angola, tão diferente hoje da que encontrei e onde vivi. A “tempestade soprou do paraíso”, arrastou-me de lá, pelo que consagrei mais de dez anos da minha vida num jogo de espelhos, escrevendo textos em que o Brasil é uma das personagens principais: este país é o único que posso amar e onde poderei ser estimada, fora da Europa, no agora da acção e da vida. É um facto e a nada obriga.
A Literatura sempre jogou com a pluralidade das vozes presentes na consciência dos locutores, mas de duas formas diferentes: ou o discurso da obra é em si mesmo homogéneo ou se opõe às normas linguísticas gerais; a diversidade do discurso está representada no interior dos textos. O “eu” bakhtiniano, o que perfilho, e já o referi, por ser dialógico, existe a partir do diálogo com os outros “eus”, tornando-os intervenientes no discurso, reais ou imaginados. O “eu” necessita deles para ser “autor” de si mesmo, uma vez que o ”eu” só pode realizar-se no discurso apoiando-se em “nós”, a visão do mundo é pluralista, polifónica, vincula-se na totalidade à História. A nossa estrutura não é uma abstracção, a realidade social e histórica é que fazem a ligação do indivíduo à vida. Não será menos verdadeiro que se a política textual de Bakhtin favorece a abertura à especificidade e diferença, recusa, liminarmente, um “possível” cultural fora da linguagem. A palavra dita, pela sua fluidez, é viva, o espírito pertence ao mundo da vida, daí que a palavra precise da escrita, para afastar-se da algidez, precise de nós, o ser humano, da nossa energia, para sobreviver. Por tal contingência a vida se nos vai nos livros, sucessivos “corpus” saídos de nós, uma fila de duplos, a metamorfose do nosso labor, o resultado de lutas “corpo a corpo” com a linguagem, através do labirinto palmilhado pelos que corajosamente hesitam. Isto é doloroso e claro como a límpida fonte.
Oscilam os agentes culturais – no âmbito da produção textual – entre a razão e o coração, a História murmura; se o escritor estiver atento, chega até si um não sei quê, eco da memória do mundo, nunca o mesmo para os diversos escritores, o tal “sofrimento de ver”, de que fala Walter Benjamin, é funcional. E sempre procuramos – os que procuram – o “sublime”, recusando a indiferença, em simbiose com a imagem virtual, o que parece ir ao encontro do fascínio actual de imagens puramente ópticas ou sonoras, que, por não contarem uma história, podem ligar-se a “imagens recordação” ou “imagens sonho”- os “flash-backs” são memórias psicológicas - assegurando a metamorfose incessante da situação; tornou-se indiscernível a ponte entre o real e o imaginário, através da cibernética. Visto o corpo como um intermediário, as imagens moldam-se com o espírito, o pensamento. “Dêem-nos um corpo”, exigiu o cinema - e agora irei cedendo o lugar àquela minha outra parte centrada no jornalismo -, corpo esse que nada mais será que o quotidiano, de que fazem parte a espera, a fadiga, o desespero, de que Antonioni terá sido o paradigma; a sua máxima, a de levar ao interior pelo comportamento, sendo este a resultante de experiências passadas, o que vem depois de tudo ter sido dito. Esta função da memória é comum às duas linguagens: na escrita como no cinema há posturas do corpo, demonstrando tantas vezes, como defendido por Blanchot, a imensa fadiga do corpo ligada ao drama da comunicação.
Há sucessivos gritos na vida e na arte: o grito nasce da impossibilidade de comunicar o excesso. “Dar um corpo à imagem” pode também ter outro significado, o de submetê-lo a múltiplos disfarces, a carnavalização das formas atingiu um patamar formidável e inquietante, velá-lo e desvelá-lo, isto faz-se com todas as personagens, no cinema e na literatura, daí que estejam sujeitas ao grotesco ou à dignidade extrema. Se o realizador é um mestre-de-cerimónias, também o narrador exerce tal função. Existe teatralidade no gesto, necessariamente social e político; já para Rivette ou Godard é também metafísico e estético, o que acontece igualmente no plano literário: uma das finalidades do cinema é “filmar a palavra”, e aqui atrevo-me a aludir à expressa cumplicidade entre um cineasta português, Manuel de Oliveira, e Agustina Bessa-Luís: tive a felicidade de assistir a uma troca de apaixonadas impressões em público, durante um colóquio memorável, no Porto, em que os dois dinossauros excelentíssimos se digladiaram afectuosa e impiedosamente: o fulgor da inteligência, da sabedoria, da estocada, no lugar certo, aquele onde se encontram, virtualmente, palavras e imagens. Inolvidável.
Qual o motivo de uma aparente dicotomia? Talvez por uma outra figura do cinema moderno, um cinema intelectualizado (o de Oliveira) por oposição ao cinema físico, aquele que, com Antonioni, exige:”Dêem-me um cérebro”; aliás o cinema experimental partilha-se entre este dois domínios: a física do corpo, quotidiano ou cerimonial, e o abstracto. Godard, um cinema do corpo, Resnais, um cinema do cérebro. A imagem cinematográfica faz o que as outras artes exigem dizer, recolhe delas o essencial, herda mesmo a maneira de utilizar imagens noutras linguagens. O “eu penso” cinematográfico sempre se empenha em levar a pensar sobre si mesmo, no sentido do sublime. Num segundo movimento, verifica-se a deslocação para o afecto, associando-se-lhe a plenitude emocional ou “paixão”. Eisenstein debruçou-se amplamente para a problemática, defendendo que a “inteligência emocional” não poderia desligar-se do cinema dito intelectual, num processo duplo em que as imagens constituiriam uma massa plástica, uma matéria sinalética com traços de expressão sonoros, visuais, gestos e silhuetas, sequências, desaguando naquilo que veio a chamar-se o “ monólogo interior”, monólogo sedento, operando figuras, metonímias, metáforas, inversões, atracções…Desde o início, Eisenstein entendeu que o monólogo interior encontrava a sua extensão mais no cinema que na literatura. …Que a virtude do “monólogo interior” é a de constituir uma tessitura que contém, por assim dizer, o pensamento colectivo, levando a uma dimensão patética, a uma música visual: verifica-se um choque em cadeia, vai-se da “imagem choque” ao conceito formal e consciente, à imagem matéria, à imagem futura, que produzirá o choque por seu turno.
As imagens e os textos nunca contam, de facto, exactamente o mesmo, é sabido que Bachelard demonstrou consistir a imaginação poética não em formar imagens, mas, pelo contrário, em deformá-las. A psicologia, por seu turno, o domínio das explicações analógicas, sabe há muito que a denegação também funciona: a”inversão” é um facto na escrita, e o perdido sempre se transmuda.
O escritor está só, separado, a escrita começa onde a palavra se torna insuportável, a uma palavra se associa outra, numa cadeia de correcções e aperfeiçoamentos, no nosso inconsciente, ou na parte inconsciente do nosso discurso, a psicanálise está ligada à palavra, não à escrita, por isso Penélope se associa a esta, no seu fadário de tecedeira; seu e meu.
Neste texto com embutidos sucessivos, tentei encaixar formas, na pretensão do “puzzle”, espero que pelo menos se não tenham recusado entre si – certa de espaços, peças em falta, essas talvez as descubramos, em cumplicidade. Vejam: Maquiavel, hodierno mais que nunca, sopra-me, lá de um recanto do labirinto, que «a natureza humana é invariável».
Oxalá me tenha feito compreender, pois aquele que desistiu da comiseração por si mesmo atingiu um patamar superior, o do desespero frio, excelente peça para um puzzle. É bem verdade que se Keats entendia que o criador devia criar-se a si próprio, defenderia por seu lado Melville que lhe incumbia aspirar a um lugar de destruição. Afirmava este – na altura em que Emerson estabelecia a metafísica do sucesso – a grandeza do fracasso. Segundo o próprio, a exposição nefasta aos poderes da cultura evitaria a lógica interna de um projecto coerente, pois deveria o criador, qualquer que fosse o género que cultivasse, comprometer-se totalmente com a sua aptidão e as suas expectativas. E aqui ficam mais umas possibilidades de encaixe, de puzzling, já agora evitemos tomar por oceano o que permanece em terra…
Por motivos óbvios, ainda que metafóricos, não poderemos ir, enquanto criadores, qual Melville, à caça da baleia branca. A publicação de “Moby Dick” foi um fracasso, e o puzzle, o de Melville, ter-se-á desestruturado. Apesar de tudo, continuou, comprometido consigo e com o mundo. Só em “Billy Budd”, o penúltimo livro, se resigna, reflectindo à saciedade o desespero, a angústia do túmulo, mas, por essa altura, a parte do “puzzling” labiríntico que lhe coubera já encaixara na perfeição:
Viver fora, afinal, portentosa continuidade do descontínuo.
1.Participação em Mesa Redonda, ”Comunicação: da Teoria à Prática”, com Drª. Maria Helena da Nóbrega (USP/Ribeirão Preto) e Prof. Dr. Ricardo Alexino Ferreira (UNESP/Bauru); Mediadora, Drª. Sandra Aparecida Ferreira (UNESP/Assis), em 2008-10-22.
Filomena Cabral
|