«Que importa a cinza do que ardeu? / - Sou a Verdade, que não morre, /
Sou a Justiça, que não morre, / Sou a certeza e a liberdade»
João de Barros
(contra os que dominavam a Europa em 1940, ameaçando o triunfo da tirania)
Passaram dez anos, sobre o ataque às torres gémeas de Nova Iorque. De qualquer modo, após o acontecimento insólito, o mundo ocidental entrou em mutação perturbadora. E não voltará ao que era.
No entanto, a efeméride, no contexto da actualidade em que acontecimentos funestos acontecem em catadupa, apesar de toda a sua carga simbólica afasta-se do primeiro plano, entrou na História, indo ao encontro de arquivo imenso do terrível, em que a humanidade é pródiga. Hoje, quando pensamos no fatídico dia 11 de Setembro, somos levados a estabelecer prioridades, por inumeráveis as evocações funestas. O choque das primeiras imagens fez que as memorizássemos até ao fim da vida, pelo ineditismo, afinal não eram ficção, cinematografia. Em sucessivo e imparável horror e espanto, verificar-se-ia o processamento individual e colectivo de um acontecimento do qual, no momento, se não teve ideia da alteração que introduziria no mundo, o primeiro privilegiando aspectos mais impressivos para cada um de nós, conforme o historial privado de problemas, dilemas, traumas, o segundo a seleccionar imagens sequenciais e difundido, em contínuo, então e agora, pelos grandes blocos noticiosos. Assim, quando recordamos o dia memorável, não nos ocorre a todos exactamente o mesmo, nem sequer ao nível da emotividade ou enquanto tema de reflexão. E pode acontecer que, submetidos a sucessivos choques emocionais de que somos destinatários passivos, de um modo ou de outro, por acção de uma estratégia activa, intencional e distorcida, acabemos por superar o aterrador acontecimento, a par de muitos outros.
Determinada estética da imagem foi tomando o lugar da «teoria das paixões», confinada às honras da idade clássica, tornou-se teoria da contingência proposicional, susceptível de escapar ao sujeito fechado sobre si próprio. Mas tal como a paixão, a imaginação estética leva ao questionamento, que pode revelar sequência figurativa acrescida, representando uma reflexão maior do que a ambiguidade, esta a tornar-se, no limite, o seu próprio objecto. Todavia, a sequência figurativa da tragédia nova-iorquina permanece arrepiante, abominável, o desabar dos edifícios, carbonizando milhares, destruindo famílias, agredindo a maior democracia do mundo de súbito enlutada, continua a indignar o ocidente e mais além. Todos, enquanto europeus, doa a quem doer, devemos àquele país norte-americano setenta anos de efectiva solidariedade atlântica, desde o término da Segunda Guerra. Todavia, o tempo que passa, passa para alguma coisa: ao longo de dez anos, sucessivas resenhas retiraram carga à efeméride, e tudo se cingirá, cada vez mais, ao trauma de familiares, de compatriotas. Os cidadãos do mundo, seja qual for a nacionalidade, mergulhados, actualmente, em problemas inumeráveis, tendem ao comedimento emocional, por uma questão de defesa do eu, apesar de continuarem homens e mulheres compassivos.
O literal reduz o questionamento, não vivemos num mundo exemplar, muito pelo contrário, piorou deveras, nos últimos dez anos, a comunidade mediática comprova-o também pelo contínuo «leaking» de várias procedências, promovendo inquietação e intriga, deturpação. Abandonados ideais, ninguém crê em alguém ou coisa alguma, sendo cada vez mais problemático submeter o nosso destino, refira-se Portugal ou qualquer país do sul da Europa - e mais além - ao critério nada auspicioso de corporações de interesses.
Assim, o dilema talvez resida em mudar a situação política e económica, de uma forma tal que a melhoremos, de modo a atingir um patamar em que se torne possível resolver conflitos, através de um discurso argumentativo e consensual. Mudar os factos? Não, por evidente, se já ocorreram; mas teremos de arriscar, em relação ao que vai acontecendo e, sobretudo, pelo devir. Uma sociedade ideal, no sentido da resolução de conflitos, dilemas, através do discurso nas suas variantes, em vez da negociação estratégica, é impraticável, no entanto a negociação implica sempre violência sobre parte do todo. Enquanto exercício pragmático, seria interessante averiguar a relação existente entre certos argumentos e outros tantos prognósticos não considerados destrutivos, sequer perniciosos, apesar de paradoxais, permitindo estranhas previsões assentes no controlo.
Para além disto, a necessidade de apelar à ética. De um modo geral, assim que um fundamento ético realiza uma profecia reflexiva, esta torna-se, por evidente, bem-vinda, desde que subordinada à exigência da validação da argumentação. De facto, a palavra é uma lâmina de múltiplos gumes.
«De novo a normalidade, ou outra coisa pior?» Os consensos mudam. Andámos anos a pensar na guerra no Iraque. Entretanto, a Líbia - e outros focos - apela à responsabilidade do mundo. Após inúmeros distúrbios, conflitos seguintes à tragédia em Nova Iorque - enquanto acontecimento descomunal - relativiza-se a crença no mundo, chegados quase a um estado filosófico miserabilista, segundo o qual o ideal é matéria a contornar: Quixote e Sancho, hoje, afogados em pragmatismo, nem sequer iniciariam a aventura, impossibilitado o cavaleiro de atacar, espadeirando, moinhos de um imaginário moribundo.
A distância reflexiva é necessária, não é possível que dissertações, argumentações, escritos sejam independentes da retórica. Usa-se, claro, pois existe diferença entre persuadir e convencer (através de argumentos), em todas as línguas europeias e não europeias, o que se vai perdendo é a capacidade de acreditar no que se ouve, quanto mais no que se lê. Tornámo-nos amargos, somo-lo cada vez mais, vamos militando no cinismo, para que nos não destruam demasiado depressa.
A partir de 11 de Setembro de 2001, a ilusão do mundo que nos restava desvaneceu-se. Adquirimos certezas irrefutáveis: nada nem ninguém é inexpugnável. Da noite do tempo, atinge-nos a nostalgia da muralha, do cerco, da ponte levadiça, sobretudo da crença na perspicácia posta ao serviço do bem, em qualquer continente, ao lado do «entendimento puro» e da intuição da sensibilidade, a sagacidade qual garante de compreensão, a justificar, de certo modo, a administração de territórios, outrora e agora.
As décadas de concórdia de após a Segunda Guerra Mundial; de recuperação económica, pelo plano Marshall; de solidário convívio com quase toda a Europa, depois da queda do muro de Berlim; o redesenhar de um mapa europeu alargado, mas inevitavelmente contido; até o convencimento de uma aldeia global, onde todos os meninos e meninas poderiam andar de carrossel pela vida fora, até serem avós jogando a sueca pela noite dentro, constituíram, até certo ponto, um teste à persistência.
Ou talvez não: a «contabilização das persistências no mundo», de Leibniz, se transposta para a linguagem heideggeriana, leva à eliminação do valorativo nas dimensões mundana, subjectiva e comunicacional. Entretanto, foi-se criando determinada imprecisão, pelo facto de não se ter considerado a diferença entre a realidade lógica e a técnico-científica, na genealogia do «logos» - linguagem mais razão -, que talvez tenha contribuído para que o mundo esteja de candeias às avessas.
Fizeram ruir, atacando, para futura memória, um símbolo de Nova Iorque, à revelia da estátua gigantesca da Liberdade. E o paradigma do mundo mudou. Aqui residirá o drama; ulterior, e não gratuita, a retaliação sobre o antigo reino de Nabucodonosor, embora a queda de um tirano consista no derrube da prepotência. A sabedoria teria evitado a guerra? Que sei eu? Para além de vidas poupadas, ter-se-ia acautelado, por certo, futuro dispêndio descomunal, devastador, a conduzir ao desabamento não metafórico do mundo. Como augurar tal, em 2001? Nem o oráculo de Delfos se manifestou, aliás hoje pelas ruas da amargura. Amargura europeia e americana, agora nada acontece num recanto do ocidente sem que o sino toque a rebate, alvoroçando multidões nostálgicas de um tempo ausente, o da autenticidade vivencial nascida da experiência, numa síntese feliz.
Ainda terá pertinência a saudade do futuro? Por vezes, neblina súbita e densa, a atrapalhar o sentido, desvanece-se tão inesperadamente como havia chegado. A saudade do futuro está em nós, sobretudo quando o presente é ingrato.