Filomena Cabral
De certo modo, na mitologia do povo português aconteceu fenómeno idêntico ao que surgia ao olhar dos gregos, na Grécia antiga (e parece que na hodierna), quando o mythos proporcionava aquilo que ainda hoje é para nós belas fábulas - uma mitologia; a compreensão do mundo e dos homens tornava-se, pelo mito, problemática. E parece perdurar, os dois países são, na actualidade, castigados pela mitologia, sem modo de saber o que é justo e verdadeiro. A possibilidade de ter pontos de vista múltiplos, pela retórica, ainda que pobre, num país outrora reino abastado (nós, parece mentira) de soluções naturais, levaria, em tempos, ao surgimento da lei da aceitação de convenções; e as soluções, factícias, deslocam o problema, não o resolvem, o homem a tropeçar no artifício, pela arte da resposta, condenado para sempre, todavia, à retórica de que não poderá apartar-se: o que engendra a necessidade é o seu contrário. O logos, linguagem mais razão, pela natureza múltipla do ser, levaria a vários enunciados, pelo que a lógica é o discurso da verdade necessária, a par do que pode, pura e simplesmente, ser.
Portugal, perdido aparentemente do princípio da não contradição, teima em alternativas, levando a que os problemas não sejam opções mas questões disfarçadas. A não contradição excluiria alternativas, revelando-se limitadora da razão. A alternativa da contradição seria o silêncio, mas este é ambíguo, pode ser interpretado de maneira contraditória. Enquanto solução filosófica é niilista, e sabemos que temos ou devemos marcar bem a diferença entre uma retórica do silêncio - como estratégia de interacção - ou silêncio perante a majestade do ser heideggeriano.
Todavia, vejamos:
Foi bem longe do poder que, de Ceuta, nas Praças d´África, em pleno séc. XV, se atreviam a exigir: «Venha biscoito quanto puder!», logo o quebra-cabeças actual, se atentarmos no escrito de um capitão de Arzila a D. Manuel, onde o queixume surge em letra de forma, «estamos falecidos de todas as coisas que necessárias são: pólvora, carvão, setas e pregadura, disto não há nada. Não há vinho nem azeite, venha biscoito quanto puder». Isto muito depois das escaramuças pelo sal, não queriam pagá-lo à Sé do Porto, a mesma cidade apresentando queixa nas Cortes (sem sal não haveria biscoito), uma das barcas transportadoras chamada, significativamente, “Santa Maria d´África”, destinava-se a transportar mantimentos para o norte daquele continente. Enfim, sempre leváramos daqui para fora; deslumbrámo-nos, dois ou três anos após, com o Brasil – agora surge qual farol de esperança e prosperidade, com uma Mulher na Presidência, país, enfim, que deixou de “pedir biscoito”, antes o distribui: «Milagres do Brasil são!», no dizer do setecentista Correia Garção, brasileiro oriundo de Guimarães, poeta insigne, aqui com todo o cabimento, chamemo-lo então à liça.
Quando da independência do país agora entre os mais fortes do mundo, de onde jorra até petróleo, «país abençoado por Deus e bonito por natureza», tudo ali permanecera; nós começáramos, sem adivinhá-lo, a descer a ladeira, não do morro mas da desdita, demasiado longa, percorrendo séculos, pelo que tivemos a ilusão de que não teria termo, mas fora engano e parece estar a acabar. Vários nos prometem biscoito; ah, temos a costa, a plataforma atlântica: venha então biscoito quanto puder! Enquanto não chega, vai-se fazendo difícil! De certeza, será duro de roer, mais ainda de engolir.
A proximidade do mito – continuamos nele, apesar de tudo, enquanto País - tem os seus problemas, mais ainda o olhar benévolo dos deuses, não creio que nos abandonem, por muito os termos vindo a incensar, todavia com alto preço de colecta. De início, um poder mais alto que o nosso levara-nos pelos mares. No final – ainda longínquo, a actualidade é um susto talvez benéfico e a curto prazo –, um poder de igual modo inexorável nos traçará o destino, «morrem cedo os que os deuses amam» – diz-se. Ora o nosso país, velho de séculos, perdido na sua teimosia proverbial, recusa-se a alienar o apoio dos deuses e faz muito bem. No entanto, para quando uma economia florescente, a ambicionada felicidade dos europeus, do seu projecto? O devir é o resultado do Ser e do Nada (Hegel), tendo surgido curiosamente a definição do homem pelas suas necessidades, no século XVIII, o seu, definição resultante de uma economia política e da utilidade, pois «é para se vestirem, em vista da satisfação das necessidades físicas, que o artesão e o camponês pensam, imaginam e trabalham» (Helvétius).
Façamos um pequeno desvio:
A necessidade de sal, na medida em que objectiva um desejo, redefinia utilidades, e, sobretudo, a troca. A memória das emoções vai alimentando um desejo satisfeito e a necessidade de satisfazê-lo, infinitamente, ainda que transfigurado noutros desejos. Tal necessidade é, antes de mais, uma busca de concórdia, de estabilidade, de tranquilidade, de paz interior, mas sempre tem por fundamento o desejo de ser o desejo do outro.
Se bem atentarmos, por sabido, a história dos acontecimentos económicos, desde o início do século XX aos nossos dias, é a da industrialização. No sistema capitalista, por uma economia de mercado, um certo número de países acumulou um capital técnico cada vez mais importante e eficiente. Esta acumulação foi praticada, como sabemos, num e noutro sistema, com sacrifícios impostos aos consumidores. O presente parece mostrar que a liberdade individual da primeira revolução industrial não tinha qualquer realidade: enquanto o capitalismo assegurava uma produção futura, o colectivismo sacrificava o consumo no presente?
A luta e a corrida pela industrialização, isto é, pela riqueza e pelo poder, não interessaram, até determinada altura, senão um pequeno número de países. A tomada de consciência universal do subdesenvolvimento do mundo levou a que as mais altas autoridades morais e religiosas fizessem ouvir a sua voz, convidando os países ricos a acabar com a desigualdade. Tal foi defendido há décadas, quando ainda havia um Terceiro Mundo, que hoje ninguém sabe já delimitar, disseminou-se pelo planeta, vem fisicamente até nós, entra-nos pelos olhos dentro, qual grupo de romenos rejeitados pelo seu país, que os considera vadios a evitar. No entanto, velha dicotomia entre capitalismo e colectivismo parecera esbater-se em 1985, quando Portugal passou a fazer parte da União Europeia, pelo que a independência, qualquer que fosse, terminava; mais ainda com uma moeda única, pela rede de interesses e também obrigações, responsabilidades de todo o mundo; sem esquecer que a coesão económica entre o Norte e o Sul da Europa sempre fora problemática.
Durante o século XX, protegera-se o mito económico até ao impensável, pois sempre a estabilidade estará ligada a uma continuidade material, os movimentos “cíclicos” e as “crises” têm lugar de relevo na teoria económica, as controvérsias a tal respeito estavam ainda longe de esgotar-se com o século XX, consideradas as variáveis de custo e produção: seguindo-se a períodos de prosperidade e de expansão, os de depressão e de desemprego. No século XIX, houvera quem tivesse tentado estudar o fenómeno, até que no primeiro quartel do século XX, Kondratieff estabeleceu a existência de “vagas” sucessivas, com a duração aproximada de cinquenta anos, compreendendo uma fase alta e uma fase baixa na economia, um ciclo de longa duração, embora outros analistas, Juglar e Kitchin tenham fundamentado as suas teses em ciclos menores, de três anos e meio a sete anos, não estando isto arredado da renovação demográfica no após guerra, períodos de reconstrução activa. Oxalá nos caiba a teoria dos segundos.
A história económica é estimulante, embora constitua quase sempre uma armadilha, e jamais agrade a gregos e troianos. Tratei o tema, consultando prémios Nobel da área, num texto (1) satírico que preconizava, em 1997, certo “colapso” europeu, dali a uns tempos. Era tal o entusiasmo com a União Europeia e o euro que de nada me valeram os cabreiros doutos contidos no “corpus”, em plena crise e regressando no tempo, ao modo de Sá de Miranda: haviam chamado a si a salvação da economia portuguesa, regressara o velho país ao amanho da terra, as nossas Marias e os nossos Manéis, procriando alegremente, faziam queijos, levavam os animais ao pasto. Pescava-se, muito depois da arruaça pela “palmeta”. Haverá quem se recorde? Aconteceu há pouco mais de uma década; na mesma altura, “a lei da rolha”. Anda por aí, o livro, claro, nos fundos da editora, porventura, talvez haja quem reedite o retrato de uma Europa holográfica, em que tudo aparenta ser, quando deixara de ser há muito; um mundo ilusório, uma armadilha, enfim. Os pastores, parodiando os navegantes, abandonavam a serra da Estrela, em demanda da Europa e dos euros. Ai de nós, iué!
Os políticos - voltemos à realidade -, segundo o modelo da tragédia de Ésquilo, forçados a actuar, são os “actores”, o “coro” é a multidão, e só aqueles, enquanto indivíduos, devem ser vistos em luta contra o destino. Pelo que, sem de tal termos consciência, actuamos segundo o modelo de tragédia antiga: o actor, o político, entra em cena, na agora, revela-se a situação geral; em seguida, a tensão aumenta; o actor (nós, individualmente, o coro na nossa humanidade) enfrenta a crise, toma uma decisão. O resultado leva à necessidade de alguém que seja a voz plural, sendo possível que Ésquilo conhecesse uma solução que o libertasse de limitações do naturalismo, algo porque haveriam de lutar, entre outros, Strindberg, num futuro longínquo (2).
E como enfrentou o velho mundo grego o crescimento da pobreza das massas, em relação a uma minoria de prósperos? No século III, Esparta continuava mergulhada na crise, a questão do endividamento era particularmente grave, levando a que as cidades adoptassem medidas de moratória ou mesmo de supressão de dívidas, de modo a evitar a constante ameaça de revoluções. O abandono e o despovoamento dos campos, que Políbio descreve no século II, relaciona-se com o crescimento da miséria que obriga populações inteiras a emigrar para as cidades, onde vão aumentar as fileiras de massas urbanas mais ou menos assistidas. Os enriquecidos no Oriente, regressavam carregados de despojos, erguiam grandes casas, rodeando-se de objectos preciosos. E maior seria a sua influência na cidade.
De onde conhecemos nós isto?... Também do nosso Passado. Então como agora (mas muito menos já), floresciam as associações, as fundações. Que, apesar de tudo, a Comédia mantinha-se activa, na época, aliás em todas as épocas. Assistira-se, sim, à morte da Oratória; a biblioteca de Alexandria obrigara à fixação de grandes textos, objecto de comentário e ensaio, pelo que chegou a literatura grega aos nossos dias, ainda que através do pastiche, da imitação, tantas vezes. As parecenças ultrapassaram, no entanto, uma mitologia.
Logo, proponho aqui e agora, tentando travar dependências múltiplas futuras, que nos imitemos a nós próprios, em tema prosaico: façamos biscoito. Temos água e sal com fartura; para a farinha, há que trabalhar a terra. Campos de espigas maduras, ondulando com a brisa da tarde são uma imagem poética, mas foram a realidade comum.
Haja biscoito, meus caros, haja biscoito! E que chegue a tempo.
(1)