A única forma de estar no mundo é habitá-lo. É por isso que quando se procura descrever a problemática da situação do homem no mundo, a temporalidade nos aparece como fundamental, acabando por gerar - quando gera - incongruência. Se o passado e o futuro apenas são conceitos desligados da ordem fáctica das nossas percepções, devemos renunciar a compreender o devir do tempo vivido. Uma sucessão de acontecimentos descontínuos não faz um tempo: presente, passado e futuro devem ser pensados na unidade do seu surgimento e da sua diferenciação. O tempo faz tudo chegar ao presente: este, como campo de presença, liga-se, na sua essência, a um passado e a um futuro.
Logo, faz pressupor reinício, anuncia o tempo vivo, enquanto sucessão de recomeços constantes, o que não agrada a todos, ou por outra, agradará a muito poucos. A espera utópica na transformação, não do mundo mas das circunstâncias, implica fé no homem, logo em si mesmo: mas os que atingiram a idade adulta neste milénio são cínicos: começam por não acreditar em si mesmo, logo não se respeitam, compensando-se no desprezo do semelhante. Se não pensas como eu, és contra mim. Até na fraseologia adoptada temos de ter cuidado: lêem-nos olhos, aparentemente, alienígenas...
Apartemo-nos da hipocrisia: possuir pele branca ainda importa, foi determinante, p.ex., para o fenómeno migratório para a Austrália, na década de 60: «Quem tivesse autorização de imigrar, deveria possuir pele branca e ajustar-se plenamente à imagem anglo-saxónica do mundo». Nesta construção do «outro», em que a xenofobia e o racismo crescem proporcionalmente à debilidade ou à carência da dimensão relacional do homem, amalgamam-se, sob a forma de preconceitos e convicções, generalizações exageradas e simplificadoras, rígidas e inflexíveis, infiltra-se a pretensa incapacidade angustiada de conviver com estranhos no próprio país - que os não integra - irrompe, como natural reacção, o sentimento de superioridade oriundo de um nacionalismo exaltado, acoitam-se sentimentos conscientes ou inconscientes, até semi-conscientes de ódio e de agressão e, de modo especial, uma profunda aversão a toda a miscigenação.
Na construção do bode expiatório do «outro» colabora a aliança entre racismo e nacionalismo selada por extremismos políticos: o outro, para que seja aceite por mim, tem de pensar como eu, tenho de levá-lo a enfrentar a realidade, assim se iniciando um processo de violência abjecto: é para o bem do outro que o sujeito actua... e mata. Acabar com a inutilidade da vida alheia torna-se uma crença, uma espécie de eugenia retardada, mas muito activa, anda é camuflada. Se a tudo isto se juntar o preconceito ideológico, estão criadas condições de intolerância, que não conduzem os indivíduos ao diálogo, na intenção de limar arestas, até de aprendizagem: cada indivíduo é um mundo em si mesmo.
Mas a figura dominante na sociedade moderna é o desprezo e este leva a amordaçar o outro, se preciso for de modo radical e inapelável.
Da percepção deficiente da realidade social, ocorre a deslocação dos problemas para o reino dos instintos, onde impera o perfil biológico cultural da raça superior. O racismo leva a uma desumanização do mundo, a uma realidade distorcida de si mesmo e dos outros. Onera-nos, no entanto, a carga de preconceitos históricos - não, o mundo não começou com o «projecto europeu», pelo que continua tema de reflexão a tese de Baslibar, segundo a qual o esquema colonial e o do anti-semitismo são raízes e alicerces permanentes do racismo na Europa, bastando o terreno de uma conjuntura favorável para produzirem, imediatamente, frutos políticos.
Em Oslo, de súbito, neste Verão, um belo monstro, de feições apolínias, decidiu produzir o contínuo no que ele entendia descontínuo, uniformizando, pela morte - e nada haverá de mais radical - vozes que se lhe opusessem idealisticamente. E, vendo bem, terão os ideais cotação na Moody's?
A partir, de 1775, data da publicação do trabalho de Kant «Sobre as diferentes Raças dos Homens», e não me alargando demasiado, acabou por ser inscrita nas raízes do género humano a existência de dois grandes troncos milenários - o caucasiano e o mongólico, sendo este geneticamente inferior, mais fraco de corpo e de espírito muito mais carecido de virtude. Por seu lado, a raiz caucasiana foi dividida em duas raças, a eslava e a céltica, sendo a primeira a mais rica em dons de espírito e em virtudes que, aliás, transmitiu aos germanos, aos romanos e às nações deles oriundas, como resultado da História Natural. É pois a partir da estirpe mais nobre que está decidida a superioridade e a segurança dos europeus e se explica porque é que uma parte da terra, e apenas determinados povos foram quase sempre dominadores e outros povos simplesmente servos; porque é que «a deusa liberdade» habitou faixas estreitas, dando lugar ao despotismo, levando ainda hoje nações europeias a militar no obscurantismo, tentando sobrepujar todas as outras.
A liberdade radica na desigualdade! Mas, depois das Luzes, em 1838, C.G.Carus reduziu a quatro as raças (caucasiana, etíope, mongólica e americana), sendo a última a que mais subverte: pela mistura que representa, não tem raça... Acredito que os americanos, disso tendo consciência, encontram no motivo especial orgulho: nação feita por todas as raças? Os EUA, of course. Claro que a América não é Portugal (não temos de manipular destinos de nações, para salvaguarda o dólar. Nós? Nem o vintém, quanto mais... Não terá a grande potência, como nós ainda temos, o afecto formidável dos países de língua oficial portuguesa, o que nos leva a sonhar com o devir, por muito mau que o presente seja - o mar que separa, une.
A nossa aliança com a história concreta da terra e dos homens opõe-se a toda a redução fenomenológica, por mais que isto contradiga a nossa ataraxia e serenidade. A nossa aliança com a história concreta da terra e dos homens opõe-se a toda a redução, que seja deserção e fuga, a toda a universalização dos rasgões deixados pelos nossos traumas e fracassos, como se fossem falhas e rupturas insanáveis abertas pelo destino no tecido matricial da natureza e da vida.
A Hermenêutica contemporânea não pode ocultar a suspeição e o perigo, a Ética é, por essência, Bioética, a Ontologia não se deve construir sobre o olvido do processo histórico da natureza, da vida, e do homem, a Antropologia pluri dimensional não deve morrer às mãos da empiria naturalista, do psicologismo, do fundamentalismo idealista ou materialista, nem tão pouco se pode deixar seduzir pela exploração do paradigma biológico, ao gosto dos movimentos racistas contemporâneos que, alargando o espectro, alcançam já aquele que, com ideais de vida e de sociedade diferentes dos nossos, deve ser neutralizado, dê por onde der.
Há todo um paradigma biológico (e ideológico) ao gosto dos movimentos racistas contemporâneos. Sensível à urgência do tempo, a filosofia acolhe as grandes interrogações de hoje, tem consciência crítica das ameaças que nos cercam, vive a responsabilidade pela natureza e pela vida e respeita, na unidade complexa do ser pessoal e da variedade rácica e cultural da humanidade, uma natureza generosa, que difere, mantendo intocável a dignidade do homem diferente, e vivas as suas possibilidades originais de personalização. Por isso, toda a manipulação do outro atenta contra o mistério da criação e, e, no caso do homem, é assalto violento às suas possibilidades mais autênticas: é aniquilação e aviltamento geminados com tragédia e fedor de holocausto.
Logo uma filosofia prática empenhada é universalizante, não exclusivista, sendo uma resposta crítica a todas as reduções contemporâneas do homem que perpetuam, talvez inconscientemente, o modelo racista do Nacional-Socialismo, e a todas as filosofias que se revelam mudas, perante o recrudescimento do biologismo sociológico e incapazes de uma espécie de macroética doadora de sentido às diferenças do género humano, na idade da ciência e da técnica (a sociedade moderna é circense: existe o palhaço rico e o palhaço pobre, a assistência ri deles, mas sabe que poderia estar na arena...)
A derrocada das certezas gera o ponto zero moral, a partir do qual será preciso reconstruir tudo e, por isso, se passa por uma fase apolítica, pelo desaire ideológico - seja qual for - e que, por ser radical, está na raiz da busca de uma fundamentação racional, que se não compaginava com o mero regresso ao passado, implicado na volta à normalidade ou na reabilitação da razão prática tradicional, porque teria de coligir, com os seus concidadãos, algo de especial, no ponto de vista ético, da «catástrofe nacional», algo sem exemplo, mas «potencialmente racional» e não mero objecto de crença.
O drama, o morticínio ocorrido em Oslo remete, de forma exemplar, para a reeducação de Apel, que «viveu a catástrofe nacional do tempo de Hitler». Sem qualquer orientação normativa para a interpretação crítica da sua própria situação, K.O. Apel aplicar-se-ia ao estudo de todas as perspectivas «a fim de tudo compreender». A desconfiança perante a própria tradição e identidade alastrava ao que lhe era oferecido sobre a democracia ocidental, ao «caminho especial» da Alemanha. O mesmo cepticismo coroou a receptividade da Filosofia da Existência (Kierkegaard, Jaspers, Hewidegger, Sartre, Camus, até Cocteau) que, para Apel, retardou e despolitizou a formação histórica e filosófica, gerando « uma certa indiferença consoladora», perante os conteúdos políticos e históricos do passado. É que para a Filosofia da Existência não interessava o conteúdo mas o modo «autêntico» ou não «autêntico» como era realizado. Indiferença consoladora sentida pelo psicopata, no momento em que premiu o gatilho, em que fez estilhaçar o silêncio: a paz sólida de um país dos gelos sofreu quebra superável, será certo, mas o trauma permanecerá.
Há muito que o «querer ter consciência» no sentido de executar a «voz silenciosa do ser», na antecipação das possibilidades mais próprias do «poder-ser», se furtou a toda a possibilidade objectiva de comparação, no sentido de princípios normativos universalmente válidos. Era de uma fonte moral ou da existência de um pensamento comprometido que jorrava a paixão intelectual de Apel - aqui tomado como exemplo - e profundamente avesso a toda a ambiguidade.
Quando prescreve um compromisso com a sociedade, a vida, a colectividade? Creio que ninguém responderia, num dizer plural, considerada improvável a mesma resistência ao tempo, a memória enraizada de tal modo que, ao longo dos anos, o sujeito, iludido, selecciona um tempo de representação ideal, os anos da vida activa, em manifestação de energia dirigida a múltiplos projectos, sem ter noção do tempo que passa. Na juventude ou em maturidade o tempo parece deter-se, pelo simples motivo de que a nossa metamorfose se não coaduna com aquele. Do mesmo modo, toda a filosofia, que não procura responder ao círculo de problemas vitais, que nos comprime e semeia de inquietação o quotidiano, é mais uma figura de cera de um museu imaginário, onde aparentam vida as obras mortas.
Sem ideais não se vive, está-se vivo, o que é radicalmente diferente.