Por Filomena Cabral
«Ó meus Amigos! Todos nós falhámos…/Nada nos resta. Somos uns perdidos.»
António Nobre
A raiva diluiu-se, andáramos coléricos, as previsões eleitorais não iriam ao encontro do anseio deste ou daquele partido, todos conscientes de que teríamos contribuído, em grande parte, de forma activa ou passiva, para o exacerbamento incomum. No dia seguinte às eleições, nós, portugueses, acordámos, acredito, atordoados, disfóricos, apreensivos, somos um povo fatalista. O infortúnio, excessivo, desfeando o retrato, submergir-nos-ia em melancolia. A seguir ao acto eleitoral, eis-nos cabisbaixos, não pelo resultado, para muitos terá correspondido à moderada expectativa, mas por recearmos - não sem motivo - desconhecer, exactamente, quem somos: da opulência antiga à penúria actual, se bem atentarmos, caberíamos nas epanáforas e apólogos dialogais de D. Francisco Manuel de Melo.
O episódio da queda do parlamento seria tema excelente para o setecentista insigne, mormente pelos diálogos carregados de sentido, qual o da Fonte Nova (Terreiro do Paço) e da Fonte Velha (Rossio), a estátua de Apolo e a sentinela que vão classificando os transeuntes, segundo os seus vícios, palavra puxa palavra; ainda pelo diálogo entre o dobrão, o ducado e o vintém, agora acrescentado o euro, naturalmente. Em «A Triunfante», o tema a restauração da soberania portuguesa no estado de Pernambuco, que culmina com a expulsão dos holandeses, por altura da Restauração em Portugal. A similaridade hodierna com a última terá de ficar para daqui a alguns anos, quando nos livrarmos da troika, do triunvirato, do que for. Mantenhamos, no entanto, a ironia do ilustre homem de Letras, tanto mais que as enormes moedas de ouro maciço - «portugueses» - ocupando a palma da mão, no séc. XV, acabaram humilhadas, decorrido mais de meio milénio, pelo cúpido euro, moeda de todos e de ninguém, o eixo franco-alemão (e não só) a querer, ainda e sempre, abocanhar-nos: basta recordar Napoleão, só não levou o que não conseguiu, e o seu sucessor ainda hoje tenta, apoiando-se no salto reforçado, deitar mão ao que pode. Afinal, vejam, a Alemanha acabaria por ganhar a guerra, mais de meio século decorrido, vitória económica óbvia e impensável, no fim do conflito.
E agora?
Agora, que não temos - até ver - um bode expiatório nacional, parecemos um grupo de enjeitados dirigindo-se, ajuizadamente, ao colégio europeu dos órfãos, de roupinha domingueira e cabeça baixa. Há que reformular o futuro próximo, caros compatriotas. Se servisse para alguma coisa, talvez usássemos o coiro para tambor, a alegrar a festa, celebrando a troika e a viagem ao centro europeu - mas já nem coiro temos -, resta-nos a pele sobre o osso, o próprio esqueleto: bem moído, não daria excelente produto? Tal já aconteceu, no século passado, quando a ossada semítica - e não só - serviu de adubo. Agora, que constituímos hordas a alimentar, o ideal seria que, reduzindo o investimento e o gasto, fossemos auto suficientes, aproveitando até arcaboiços sem préstimo; uma recolha por aí, a eito, daria excelente safra e impressionaria bem os mensageiros da alta instância pecuniária.
A inveja foi crescendo, caros compatriotas - de tal há registo -, ao longo dos séculos: arcas portuguesas, pejadas de oiro, afirmando poder e abastança, alimentaram, já no século XIX, os bancos ingleses com o oiro do Brasil. E nós, povo piedoso, agradecíamos ao Altíssimo tamanha ventura, edificando templos esplendorosos, por todas as terras achadas. Jamais fomos mal agradecidos, uma garantia para a troika. A trama da História tudo levou, a adesão ao euro, em nome da cumplicidade europeia, congregando interesses, a crise mundial actual, acirrando ânimos, conduziram ao presente. E assim, ingratos, porém impotentes, relegámos aos arquivos - enquanto existirem - os nossos pais fundadores, iam surgindo no papel-moeda, recordando aos mais novos, de modo despretensioso, o percurso de uma nação merecedora de figurar entre as mais dignas.
Já os intelectuais da geração de 90, refiro-me aos «neogarrettianos», se supunham movendo-se num mundo destroçado, apesar de subjectivo - as ruínas viriam com o século XX. Ter-se-iam apercebido de um processo acelerado de transformações materiais da sociedade: por uma questão sentimental, vendo-se a si próprios quais vítimas inocentes desse mundo abandonam-se ao desespero ou ao sarcasmo. Atentemos no fragmento da profecia de Alberto de Oliveira, sobre o futuro de uma paisagem que amavam: «Amanhã, daqui a dez ou a cinquenta anos, talvez já as serranias da Beira estejam povoadas de hotéis ingleses, e as viris e altivas florestas portuguesas (…) se achem terraplanadas e penteados os bosques de chaminés de fábricas. Quem nos assegura que em meio século, as noites de luar não se poderão ver senão através dos fios telegráficos que tornem internacional e prestável à Europa este bom partido geográfico que nós somos, noiva com nome ilustre destinada a cair nos braços do primeiro (…) milionário? (…) Há algum pacto que nos assegure, por um século ao menos, os olhos pretos das nossas mulheres, a virgindade das nossas árvores, a inviolada cor azul do nosso céu meridional?»
Sobre os olhos pretos das mulheres, permaneçamos tranquilos; quanto às florestas, têm vindo a arder; prestáveis, enquanto país, à (restante) Europa e bom partido geográfico, sem dúvida. Resta-nos, talvez por defesa, glosar o tema do fracasso, até onde a imaginação puder alcançar, surpreendendo o eterno no transitório, fórmula do decadentismo francês, adoptado pela pequena burguesia literária oitocentista. Havia que retratar o "velho cadáver da pátria», em tal consistia o programa das Conferências do Casino. E parafraseando ainda o portuense Alberto de Oliveira:
«Que estimulante, que imortal e grandiosa obra era essa de uma geração de rapazes que deliberasse, neste poente da pátria, antes que ela morra, tirar-lhe a máscara, como se usa com os grandes cadáveres!"»
- «Caramba! Que belo fim de povo!» -; imagino a frase extravasando de um texto, na voz de personagem de Eça. Por outro lado, a passividade nacional, face ao Ultimatum, seria mais tarde considerada de modo objectivo: afogado na angústia, ao ponto de só ver a sua desgraça pessoal, o sujeito refugia-se na desdita. Eis o nosso estado de alma, hoje: o desígnio de solidariedade implica, em primeiro lugar, que o que legitima o nosso discurso seja aquilo que nela encontra justificação, numa troca de evidências.
Conceber a razão como capacidade para aceitar o melhor argumento é reconhecer necessariamente a insuficiência do consenso, pois este, como livre acordo, também deve ser abertura em relação àquilo que o pode alterar. Logo a totalização dos interesses de uma comunidade terá não só que justificar ser a melhor hipótese, mas aceitar do mesmo modo o confronto com alternativas que pretendam também corresponder ao melhor para a mesma comunidade. Os últimos anos lançaram-nos numa sucessão predatória de energia, tantos os cuidados, lutas políticas, ânsias e decepções. Sentir-nos-emos frágeis como poucas vezes: somos humanos, não títeres.
Daí a legitimidade dos sonhos, ainda que inviáveis de imediato, e a probabilidade do sorriso, ainda que triste, enquanto modo de romper barreiras sufocantes: a instância de decisão pode, eventualmente, assentar na precariedade: importa a «lealdade recíproca». Evoco pastores, muitas vezes - hoje escaparam por um triz -, na tentativa de fugir à racionalidade pura, apresentando um argumento persuasório, para aproximar-me da inocência perdida, porém numa disponibilidade assente na relação com o passado, numa ética da interpretação que conceda espaço à tradição. Precisamos de algo «sobre que nos apoiarmos para forçar e deslocar». Desde Kant que fundação e limite (ou fronteira) convergem, tornando central a questão do direito.
Neste caso, puxando para onde me convém, para a essência portuguesa, irei ao encontro de preocupação do colectivo: estupefactos após quase novecentos anos de história, amarfanha-nos a vergonha, por não sabermos o que fazer do que fomos, sem parecermos patéticos; as nossas raízes sociais estão no passado, as desilusões do presente devolvem-nos ao mesmo passado, enquanto indivíduos, com uma força irresistível. Os reflexos da actualidade serão perceptíveis com a distância, o tempo atrás do tempo vem, implícita pois a necessidade de transfigurar o «mundo da vida».
Tudo o que vem de fora, logo estrangeiro, qual fautor da crise, na sua variável, pôde ser mais ou menos insólito, para os oitocentistas, o ultimatum inglês fora de molde a provocar toda a gama de atitudes. Nessa época, o estrangeiro era a suposta causa de todos os ressentimentos de homens cujo lar fora invadido por intrusos. Compreendia a indústria, a finança nacional e internacional, as transformações materiais, a mentalidade objectiva do mundo dos negócios, o parlamentarismo comprometido até à raiz dos cabelos e que, no seu descrédito, arrastava a democracia e provocava a náusea da multidão. Fora o insulto brutal do ultimatum a desempenhar essa missão. O país, o nosso país, quando sujeito às maiores humilhações - embora o espaço do insólito, nessa ocasião, ficasse na África então portuguesa - tende a exacerbar o nacionalismo, o que nem sempre traz os melhores resultados. Mas que devemos respeitar o nosso passado e puras glórias, neles encontrando motivo acrescido de respeito por nós, será facto, pois acabamos de perder, no ano de 2011, a soberania económica e política, mas só por algum tempo, acreditamos.
Vejamos: o heroísmo moderno é feito de «factos múltiplos e dispersos», no que se distingue da memorialização unificadora, indo ao encontro do messianismo benjaminiano, caracterizado como promessa de felicidade que reside no passado, no que nele se não realizou, mas persiste como um dos seus possíveis. A perda da aura decorre do "choque" enquanto perda do presente, criando tensão entre o que se não realizou (a nossa frustração) e a promessa que nele se encerra: é nas ruínas, no fragmentário que reside a possibilidade de redenção. E a nossa ilusão de portugueses só não soçobra porque temos a ventura de uma memória múltipla, por esse mundo largo que fala a Língua Portuguesa: «Com peitas, ouro e dádivas secretas/ Conciliam da terra os principais, / E com razões notáveis e discretas / Mostram ser perdição dos naturais, /(…)» (Luís de Camões, Canto Oitavo).
Vivência é experiência finada, trabalhamos a recordação qual memória outra, memória do que se esquece: pela memória involuntária, o passado ganha vida e pode aquecer-nos a alma, qual escalfeta simbólica. Todavia, «o conhecimento e a verdade nunca são idênticos; não existe nenhum conhecimento verdadeiro nem nenhuma verdade conhecida».
Por agora, acreditemos, profundamente, em nós, pois somos e seremos os que mostraram mundos ao Mundo. Dêmos brilho à altivez: viver é preciso.