Surge quando o dia se recolheu na sombra, a capa parece refulgir no escuro, o firmamento cravejado de estrelas. Após ausência breve, reaparece, o olhar azul fita-me, diretamente. E falamos. Todavia não saberia fazer a síntese do discurso quebrado: se umas vezes parece humano, noutras as pupilas escurecem, o frémito de asas invisíveis anuncia afastamento: qual ave antes de levantar voo, basta ligeira distração para que a figura se desvaneça.
O que vos confidencio tem-me dado que pensar, o meu fascínio por anjos é de sempre: na literatura ou não, a representação de anjos impõe-se-me; e nem sequer suponho o que os leva a surgir. Serei eu quem os chama ou eles a procurar-me? Esquivando-me ao devaneio, acabei por concluir: se isto ocorre comigo, deve acontecer com muitos outros, «vivemos um tempo que morre», só a velocidade poética permite a ilusão de situações idênticas.
Todavia, seria de espantar que os Céus, inquietos, enviassem mensageiros à nossa imagem e semelhança? Talvez não. Recordam-se do filme de Fassbinder? Todos os anjos seriam iguais em capacidades, alguns deixando-se seduzir pelo nosso mundo: anjos caídos despenhavam-se, certos de que a morte se afastaria deles, pretendiam experimentar emoções, pelo que teriam de descer até nós, tornar-se frágeis, avaliando assim o temor da morte e a exaltação do amor. No entanto, desde a exibição do filme até agora decorreu o tempo suficiente para que a mística se esfumasse, hoje seriam as personagens angélicas de Fassbinber, se reais, tomadas por alienígenas, perder-nos-íamos em luta desigual: o medo devora a alma. Sem alma, anjo algum nos solicitaria.
E começo a preocupar-me com a resolução deste texto, numa altura em que o mundo inquieto parece precisar de novo da Corte Celeste para amparo da alma aflita; tantos os acontecimentos nefastos, a incompreensão, os falsos sonhos e promessas, a humanidade sedenta de Amor… Por momentos, gostaria de voltar a ser menina, cobrir os cabelos loiros com o véu alvo, assistindo à missa todos os dias; o Padre Archer, alto e magro, circunspecto, dirigia-se para o altar: entre as alunas do antigo Colégio de Nossa Senhora do Rosário, esperava o momento em que o capelão colidisse com o pingente do lustre sumptuoso… Erguendo a cabeça, o altar enfeitado de açucenas, em Maio, era de perturbante beleza; a Segunda Guerra Mundial terminara havia poucos anos, ainda se conservava o rememorar piedoso do terror; dos caídos em combate, a memória do mundo sofria, e muitas de nós haveríamos de incorporar, por diferentes caminhos, o sussurro dessa angústia.
E o mundo continuará inquieto, mais e mais. A inteligência e a vontade de homens e mulheres serão postas à prova em cada dia que acaba, o tempo passa sempre para alguma coisa, não é estático, o rosto do tempo é a projeção da energia do humano, tanto na coragem quanto na vilania. Nada é o que aparenta e, por demasiadas vezes, nos envergonhamos da credulidade, por associada à estupidez; e coramos de pejo. No ato de destacar os acontecimentos da massa informe, terá de verificar-se o momento decisivo que faz deter o fluxo de qualquer frase, procurando sempre fragmentos da verdade, qual consciência de uma identidade metafórica, tantas vezes.
A coisa histórica ilumina-se pela repetição, e ressuscitam-se cadáveres em gaiolas de vidro, poupando assim o original. A reinterpretação metafórica do tempo perdido, nem sempre se subordina ao que ficou para trás, mas também ao que estará para chegar. As palavras não tilintam no vazio, são antes um meio de interrogar o desconhecido. Quanto mais dor mais riso, só este nos afasta do animal infeliz, que não cria, procria, e não ri, uiva.
Prometo-vos: se o suposto anjo surgir, perguntar-lhe-ei, diretamente, quem é, apesar de não ser tal o mais importante, sim o facto de a sua presença aliviar a minha angústia infinita.
Feliz Natal.