«Os factos pertencem ao problema, não à solução»
Wittgenstein
O homem, enquanto sujeito da história não dominada por factos,
relatos, anseio de Marc Bloch morto pelos nazis durante a Segunda
Guerra Mundial e combatente activo da Grande Guerra, de que se
comemora o centenário - iniciador, com Lucien Febvre, de estudos
acerca da crónica de mentalidades, problematizando documentos
-, levá-lo-ia agora a eleger projecto bem mais incerto: os factos,
em catadupa, inibem o sujeito, embora contribuam para uma
arqueologia, alargando o espectro da «história das mentalidades»
subsidiada pela apreensão, pelo pavor, pela fobia.
Na parte que nos cabe, enquanto portugueses, sempre
demonstrámos coragem: se combatemos na guerra de 1914-18
(ocorrendo-nos de imediato a batalha de La Lys), no tempo da
ínclita geração, Fernando, o Infante Santo, fora penhor da honra de
Portugal, consumir-se-ia, no cativeiro em Fez, durante a expansão
portuguesa na costa de África, por recusar seu irmão, Henrique,
o Navegador, devolver a praça de Ceuta - por óbvio no século
XV. Em todas as épocas o sacrifício fratricida, ainda que usando
a insídia, sem grandeza, sem honra, em proveito próprio - ao
contrário de Henrique.
Abnegados, somo-lo, não sei se por natureza ou à força, e
não exigimos heroicidade, por obsoleta; aliás, tornámo-nos
provocadores, enquanto portugueses, em tempo de cólera e
medo, a actualidade. Apreciaríamos a constância: andamos num
tropel alucinado, as vozes digladiam-se, todos pretendem ter
razão, acrescentando o estado de pasmo que percorre um país
a transbordar de desapontamento, raros se sentem obrigados a
compromissos, levando outros a resvalar, consumidos. Atentemos
que a consumição não é mera apreensão - a inquietação
prolongada devora o sujeito que se consome qual vela, gastando-se
irremediavelmente: a apoquentação corrói até ao osso.
Deveria haver em qualquer promessa o comprometimento,
não o mero espasmo narcísico, quantas vezes, levando a que
outros se iludam e se comprometam com o mundo que lhes está
mais próximo. Estruturamo-nos em círculos, o círculo familiar a
expandir-se no dos afectos, o círculo social, o das apetências,
das aparências, segundo a disponibilidade do outro em relação
aos outros, nós, ou a eles – o trânsito é nos dois sentidos –, o
conhecimento prévio do sujeito a condicionar olhares, sendo
que, na maior parte das vezes, o corpo olhado já não decide da
apreciação decorrente, sim de uma imagem nossa (se formos
olhados) cristalizada na retina do sujeito observador, apesar de a
nossa imagem e atitudes não serem as mesmas, ao longo do tempo
- correremos então o risco de representar para uma plateia ausente,
a exemplo do que sucede no decorrer das épocas, em relação aos
lugares cuja leitura foi feita e catalogada: repete-se a tentação de
refazer imagens pretéritas, idealizando-as, o elemento memória
está sempre presente, temos uma ideia de períodos, expressões,
atitudes e actualizámo-los, em contínuo, o próprio Wittgenstein
denuncia tal tendência, quando afirma que, em qualquer rosto,
procuramos uma expressão particular, como se existisse um molde
mental a que deveria ajustar-se, qual duplo da expressão: o rosto
de Munch tem uma expressão ou é uma expressão? Esta funde-
se no representado, no desenho, está para além dele: caminhando
até nós, à nossa angústia, apela à solidariedade dos povos e das
nações; «o grito» de Munch é o nosso grito, o vosso e o deles.
Todavia, no zumbido das vozes, qual enxame de vespas, procura-
se a reprodução do verbo de figuras que, apesar de ainda
presentes, se receia desapareçam. O resultado é a angústia
tremenda em que todos nos envolvemos; quando algumas
personalidades nacionais e emblemáticas – afinal o sustentáculo
de estruturas partidárias ou outras – desaparecerem, a tendência
será, intuímos, tentar fazer valer a caricatura, dado que o modelo,
ausente, levará a que, a exemplo de Wittgenstein, indaguemos
de um molde mental inviável, procurando o duplo da expressão.
E na medida em que o nosso mundo afectivo é variável, múltiplo,
complexo, as vivências afectivas participam da corporeidade.
No desagrado perante situação inesperada, entram em cena
sentimentos psíquicos, alguns comuns às pessoas e aos animais:
se a alegria e o ódio são inequivocamente humanos, o mesmo não poderá dizer-se do medo.
Da ínclita geração resta o eco trazido pelo sopro da História,
apesar de sermos um povo comprometido com a Pátria, uma
pátria decaída, quando asseguramos ao poderoso estrangeiro -
subjugados - que aprendemos a lição. Afinal, a apologia do medo
vem até nós desde a infância, na figura da bruxa criada pelos
irmãos Grimm: numa casa de chocolate, atraía cândidas criaturas,
comeriam, até fartar-se, engordá-las-ia, com elas haveria de
banquetear-se. No conto, os inocentes, assustados, acabam por
fugir, regressam para junto do pai e vivem felizes para sempre.
Na realidade dura, a nação portuguesa, entorpecida pelo estado
de alerta permanente, já atingiu o máximo da escala, o pavor ou
a fobia. Certas figuras geram em nós repulsa incontrolável; se
bem o lermos, o conto surge-nos cruel. Quais Hansel e Grettel
hesitaremos entre perder-nos na floresta de enganos europeia
ou esperar que nos tornemos apetecíveis e não necessitados de
cuidados alheios, agradando, finalmente, aos descendentes dos
Grimm - e não mais teremos de reiterar desculpas.
Quando da ínclita geração, a força do braço e de ânimo teriam de
aliar-se, o homem era frágil, no mundo de então, agreste e ainda
dominado por rituais a separar os fortes dos cobardes. Morreríamos
aos milhares, assim mais tarde: por estes dias, deslocaram-se os
nossos governantes a Richebourg, homenageando os combatentes
portugueses de há cem anos, na mencionada guerra de 14-18, num
tempo em que havia ainda impérios e as sociedades permaneciam
fortemente estratificadas.
A cartografia mudou, o redesenhar de fronteiras estabeleceria
rancores e cumplicidade nascentes. Mas o processo ainda
não terminou, até porque da Segunda Guerra Mundial, conflito
farto em acontecimentos, se comemorou, recentemente, um
historial de sacrifício e heroísmo trazido para o presente, resíduo
incómodo: porque se imolaram tantos, defendendo valores,
rechaçando a perfídia, para, decorridos sessenta anos, a Europa
acordar estremunhada com o problema ucraniano - entre outros
-, verificando que seria impossível à união europeia continuar
rotinas de cedência e constrangimento: o urso erguera-se nas patas
traseiras, esplêndido; sacudindo-se, urrou. A natureza circundante,
que quase o esquecera, reverenciou-o, o mundo, que o supusera
domesticado, estarrecera. Na sua caverna magnífica revestida
a ouro e pedrarias - assim se exprimiriam talvez os Grimm -,
aguardaria sucessivas embaixadas dos bichos das florestas do
mundo.
E deixando a fábula de lado, acabamos de saber - no decurso da
Cimeira de Líderes - que Vladimir Putin comunicou, do
mesmo lugar prodigioso, o Kremlin, dédalo de terror e antagonismo
pretéritos, que não tolerará banhos de sangue na Ucrânia. Apesar
de tudo – considera – «a Ucrânia deve retomar o caminho da paz,
do diálogo e da reconciliação (...) O mais importante é proporcionar
um regime prolongado de cessar-fogo.»
Por sua vez, em Bruxelas, o Presidente ucraniano, mencionando
acordo histórico, consideraria o dia de hoje, 27 de Junho, o mais
importante, desde a independência de 1991: a Moldávia e a
Geórgia também farão parte de uma zona de comércio livre. (Em
Gori, os pavões continuam esplêndidos, pelo prisma do filósofo
austríaco impulsionador de temas da filosofia da mente, ao analisar
conceitos, como a compreensão, intenção, dor e vontade.)
Na medida em que procurou estabelecer, Wittgenstein, as
condições lógicas a que o pensamento e a linguagem devem
atender para que se possa retratar o mundo, ensina-nos estratégias
mentais de resistência. Todavia, não resistiremos sempre e para
sempre, não por medo, mas por renunciarmos ao desempenho.
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