«É dever da nossa geração fazer com que a vida,
a liberdade e a felicidade sejam para todos»
Barack Obama, 21 de Janeiro, 2013
Decorreu com o entusiasmo previsto a tomada de posse do Presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama. Dirigindo-se ao seu País e ao Mundo, apelou a valores fundamentais, liberdade, igualdade e fraternidade, «respondendo à chamada da História», e garantiu proteger os mais fracos, atenuar a desigualdade. «O capitalismo é a classe média e a possibilidade de ser igual» -, prosseguiria.
Em Washington, frente ao Capitólio engalanado com o aparato da circunstância, milhares de pessoas aplaudiram no National Mall o seu Presidente, considerado agora não só providencial, mas alguém em quem podem confiar: na memória recente, a pertinácia, a paixão de uma corrida eleitoral extraordinária, enfrentando até os elementos da natureza. Não surpreendeu a promessa, visando o desafio climático: o homem mais poderoso do mundo, presidindo ao destino dos Estados Unidos da América (e do orbe, na sua ausência/presença), reconhecia na Natureza adversário a respeitar, por incontrolável e caprichoso. Presenteou-o, na circunstância, com um merecido dia de sol.
Aliás, um dos aspectos que tornam a personalidade de Mr.Obama fascinante é a atitude dos vencedores por aptidão excepcional; ouvimo-lo e temos a ilusão de que convivemos – quando afinal habita outro universo. A América, dado os problemas europeus, parece-nos, apesar dos próprios percalços, um lugar à parte - sempre o foi -, atenta ao resto do mundo: actuante ou não, é águia que sobrevoa o rebanho - nós - para acautelar-nos de milhafres incómodos, sem ética, não evitando embora que proliferem. Consciente disso, promete Mr. Obama intensificar e promover, no segundo mandato, a democracia na Ásia, na África - que já foi «nossa» e deixou de ser, também por influência dos Estados Unidos da América. A democracia de tipo europeu - que coincide com a americana, nos seus fundamentos – parece não funcionar ali, todavia. Algo terá de mudar, somente o Poder influenciará poderes, Barack Obama e o seu País contêm reserva de sonho e energia suficientes para levar a termo o que se propuserem.
Terá sido a consciência desse poder, da responsabilidade tremenda dos Estados Unidos da América - desenvolvida sobretudo durante o século XX mas vinda já do século XVIII -, a contribuir para que o seu Presidente destacasse a energia dos emigrantes, ao longo dos tempos, incluídos os pioneiros ilustres, no fazer da grande Nação americana; mencionando Jefferson, e celebrando a América, promete melhorar as suas vidas. Noutro ponto do discurso, destacaria a lealdade e a energia da liberdade, escolhido como referência Martin Luther King, a abranger, mais que nunca e de modo explícito, sem barreiras étnicas, os direitos dos homens e das mulheres, as suas escolhas afectivas, numa caminhada que – reconhece – ainda estará longe do fim. «Este é o momento em que recordamos a democracia americana, um País complexo», observa; terá a aguardá-lo, porventura, tarefa árdua, embora seja no plano da dificuldade que a estatura política de Barack Obama se manifesta, envolve-se no desafio da mudança - assim sucedeu no primeiro mandato -, ele sabe que o maior erro político é não tomar decisões e sempre considerou, enfrentando-os, aríetes porventura bem posicionados – assim continuará, talvez. A sua insígnia é a persuasão, pela ingerência da linguagem na condição humana, como peça de um todo orgânico estruturado na retórica, ligando o sensível e o inteligível, sem esquecer o plano moral, a ética: pela argumentação vai desencadeando adesões e permanece, aparentemente imune, neutralizando, quanto possível, a confusão neste domínio. Resistindo à inércia de pensar do mundo de hoje, com intuição extraordinária levará os que o tenham ouvido ao longo dos anos, a situar o seu discurso numa linha de continuidade em que o futuro - que ainda se anseia – seja, de imediato, integrado no encadear de meios e fins.
Em dia memorável, dele escutámos talvez o discurso mais assertivo, centrado na especificidade das questões, deixando clara a responsabilidade abrangente, a contingência americana. Obstinado, prossegue o seu programa, não se pretende salvador de coisa alguma e continua sujeito a vontades opostas à sua. Agitador de consciências e poses tornou-se alguém que, instintivamente, a atenção do mundo procura, americanos e não americanos, simples cidadãos do mundo são cúmplices na sua inteireza: esta ou a realidade sobrepõem-se, tanto quanto a verdade pode ser verdadeira, e jamais será a mesma para todos.
Exemplo superlativo de pertinácia e coerência, tentará conduzir o seu País – o grande compromisso – por caminhos justos: jamais se adaptará ao suficiente. Lenda viva - aqui residindo a crueldade da questão -, não pode falhar, sequer desiludir; o entusiasmo universal por um governante, pelo semeador de sonhos de há quatro anos, justifica-se, enquanto europeus e portugueses, na solidariedade atlântica, ainda um património inestimável.
De facto, o desastre da guerra de 1939-1945 levara os ocidentais a imaginarem-se capazes de organizar um futuro mundial pacífico, apoiados na dura experiência e nos princípios da sua área cultural. Foi com essa visão de futuro, apesar de condicionados pelos conceitos estruturais do antigo sistema de poderes, que redigiram a Carta da ONU: os intervenientes fundadores eram apenas ocidentais, de modo que a realidade veio surpreendê-los, logo que o processo de descolonização foi fazendo crescer na Assembleia Geral, até serem maioria, os Estados nascidos no tal resto do mundo de que se tinham retirado as legiões do poder colonial europeu. Salientemos que os valores comuns da Humanidade puderam ser reverenciados, desenrolando-se uma linha humanista sustentada pela UNESCO, pela FAO, pela OMS, cujos relatórios faziam escutar a voz dos povos desamparados e o apelo dos valores de Cícero. Por outro lado, a crise dos Estados soberanos criava a categoria de estados exíguos, levando ao poder dos sem poder, a autoridades novas, de que destaco Timor.
Desde que Thomas Friedman sugeriu em 2000 que a classificação básica dos Estados seria entre shapers e adapters, pela contribuição respectiva para redes da sociedade da informação e do saber, ou pela decadência para simples utilizadores, a velha invenção cultural que é o Estado soberano parece manter-se firme, na actualidade, apenas nos modelos dos chamados Estado continente, de que os EUA são um dos exemplos.Sem dúvida, o resto do mundo manifestou apetência pelo país americano, uma terra da fortuna, a sociedade civil desenvolveu tendências e estruturas transnacionais e transfronteiriças. Os internacionalistas, desafiados pelo tempo acelerado das mudanças, tentam conservar o modelo da ordem secular, considerando heréticos e ameaçadores determinados estados, entre eles o Irão, um Iraque outro, transformado por uma década de guerra - «que agora termina» - nas palavras do Presidente dos Estados Unidos da América, frente ao Capitólio, embora outros, desistindo da racionalização teórica, temam a anarquia, anseiem organizar o caos que se vai aproximando dos países do arco sul da Europa, Portugal entre eles.
A função do Presidente reeleito tem sido, curiosamente, a de modificar zonas de penumbra, a umas iluminando, persistindo outras na obscuridade, para além da vontade própria ou alheia, como se o seu destino, enquanto governante, fosse o trânsito ininterrupto entre o entusiasmo emocionante e a raiva odienta.
Alguém estaria preparado, em 2008, para uma personalidade esplêndida e, em simultâneo, inibidora, de sorriso desarmante e crueza esporádica? Ao longo dos anos, recolhemos expressões, acontecimentos. Neste dia «de reconciliação e recuperação», sob a égide de Lincoln, Barack Obama, admirável, prometeu incentivar a acção do Povo americano, acrescentando a História. O Mundo, problemático, continuará a admirá-lo e a esperar talvez demasiado, a arcaica Europa revê-se nele, orgulhosa e cúmplice, fruto de um antiquíssimo garbo.
Na sociedade global, a urgência de um acordo ético talvez seja um dos desafios planetários mais relevantes, o que desde logo inclui aprender a valorizar as diversidades culturais, assegurar os direitos humanos e a segurança, a implantação do valor da cidadania mundial, cujo objectivo está intimamente relacionado com comunidades políticas, num multiculturalismo de uma Humanidade sem fronteiras, apesar de a experiência ter demonstrado o predomínio da teologia do mercado, sem controlo sobre as migrações das áreas da geografia da fome, em direcção ao norte do mundo, onde as sociedades são ou eram fluentes, onde desde sempre o trabalho menos qualificado fora destinado aos emigrantes.
Considerando que a geografia da fome alastrou de modo epidémico, as sociedades multiculturais desenvolvem-se vítimas de alguns desvios, uma vez que o mercado atraiu essas populações como se fossem de «torna viagem», considerando as necessidades económicas pertinentes. O efeito dramático da migração é o corte com as origens, sem uma política de integração articuladora das diferentes culturas, sem uma política de assimilação, em regra eficaz apenas na terceira geração, daí advindo a discriminação, a exploração do trabalho, o regresso dos mitos raciais com a versão semântica dos mitos culturais, numa angústia envolvente e viabilizar condutas desviantes, o recrutamento por movimentos extremistas.
O apelo às autoridades, para que os valores da paz sejam respeitados, exercitados, e tidos na presidência dos encontros multiculturais, é um esforço não dispensável para este facto na história da Humanidade, o de todas as áreas culturais falarem com voz própria, qual marco histórico na compreensão da unidade do género humano, e não uma causa da subida aos extremos da conflitualidade quase sem precedentes. O tema dos valores ocidentais, e da relevância que entre eles assume a liberdade de expressão, não suscita dúvidas ou cedências, mas também não dispensa o aprofundamento da temática das relações entre áreas culturais diferenciadas que tanto preocupa a ONU, nem uma atitude de respeito mútuo assumida. Este é um pressuposto mais sólido e mais exigente do que a tolerância, em busca sinuosa de integração funcional, de troca de padrões, da criação de um tecido subjacente da sociedade civil de confiança.
Que a memória dos Povos, solidária, suscite no presente o seu melhor, reimplantando o valor da cidadania mundial, «a paz continua a ser uma inteligente e vívida coragem», no dizer do papa Paulo VI, a angústia sempre nos levará a considerar os valores humanistas: apesar de irados desacertos e entusiasmos voláteis, a Paz tem de ser um valor seguro, para o bem de todos e dos Estados Unidos da América, em cujo continente inscrevemos, orgulhosos, a nossa saga seiscentista, o florescente Brasil.
Que o programa do segundo mandato de Mr. Barack Obama se materialize, cumprindo-se o desígnio do Estadista ímpar, num dia de sol, na imponente Washington. Nele confiamos.
Lisboa, 21 de Janeiro de 2013.