Entre Livros       

Índice:

91 - VIAGEM DOS AVENTUREIROS DE LISBOA

90 - FERNANDO PESSOA / PROSA DE ÁLVARO DE CAMPOS

89 - A FARSA DO INSTÁVEL

88 - FUNDAÇÂO JOSÉ SARAMAGO

87 - OBAMA ON THE ROAD

86 - O FUROR DA RAZÃO

85 - Geografia do Olhar

84 - ESTOICISMO COERCIVO

83 - O TRAMPOLIM DA LINGUAGEM

82 - NO PAÍS DAS UVAS

81 - ODE À ALEGRIA FUGITIVA

80 - A VIRTUDE DO AMOR

79 - ANGOLA - Metáfora do mundo que avança

78 - Clarabóia

77 - Indignados

78 - APRESENTAÇÃO DE "ORNATO CANTABILE" E "MAR SALGADO"

75 - 11 DE SETEMBRO, 2011

74 - OSLO

73 - Viver é preciso

72 - O grito da garça

71 - MORTE EM DIRECTO, NÃO!

70 - ALEA JACTA EST

69 - CONFRONTO - Porto 1966 - 1972 - Edições Afrontamento

68 - PARVOS NÃO, ANTES CRÉDULOS

67 - DA PERTINÊNCIA & DO ABSURDO

66 - MORTINHOS POR MORRER

65 - VENHA BISCOITO QUANTO PUDER!

64 - VERDADE E CONSENSO

63 - LEAKINGMANIA

62 - SESSÃO DE LANÇAMENTO NA LIVRARIA BUCHHOLZ

61 - UMA APAGADA E VIL TRISTEZA

60 - IMPLICAÇÕES ÉTICAS E POLÍTICAS

59 - NO DIA DE PORTUGAL

58 - FERREIRA GULLAR- PRÉMIO CAMÕES 2010

57 - BENTO XVI - PALAVRAS DE DIAMANTE

56 - O 1º DE MAIO / LABOR DAY

55 - BULLYING E KICKING

54 - O AMOR EM TEMPO DE CRISE

53 - FÁBULAS E FANTASIAS

52 - THE GRAPES OF WISDOM

51 - Do Acaso e da Necessidade

50 - deuses e demónios

49 - CAIM ? o exegeta de Deus

48 - Os lugares do lume

47 - VERTIGEM OU A INTELIGÊNCIA DO DESEJO

46 - LEITE DERRAMADO

45 - Casa de Serralves - O elogio da ousadia

44 - FASCÍNIOS

43 - DA AVENTURA DO SABER , EM ÓSCAR LOPES

42 - TOGETHERNESS - Todos os caminhos levaram a Washington, DC

41 - Entrevista da Prof. Doutora Ana Maria Gottardi

40 - ?I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil?

39 - FILOMENA CABRAL, UMA VOZ CONTEMPORÂNEA

38 - EUROPA - ALEGRO PRODIGIOSO

37 - FEDERICO GARCÍA LORCA

36 - O PORTO CULTO

35 - IBSEN ? Pelo TEP

34 - SUR LES TOITS DE PARIS

33 - UM DESESPERO MORTAL

32 - OS DA MINHA RUA

31 - ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS

30 - MEDITAÇÕES METAPOETICAS

29 - AMÊNDOAS, DOCES, VENENOS

28 - NO DIA MUNDIAL DA POESIA

27 - METÁFORA EM CONTINUO

26 - ÁLVARO CUNHAL ? OBRAS ESCOLHIDAS

25 - COLÓQUIO INTERNACIONAL. - A "EXCLUSÃO"

24 - As Palavras e os Dias

23 - OS GRANDES PORTUGUESES

22 - EXPRESSÕES DO CORPO

21 - O LEGADO DE MNEMOSINA

20 - Aqui se refere CONTOS DA IMAGEM

19 - FLAUSINO TORRES ? Um Intelectual Antifascista

18 - A fidelidade do retrato

17 - Uma Leitura da Tradição

16 - Faz- te à Vida

15 - DE RIOS VELHOS E GUERRILHEIROS

14 - Cicerones de Universos, os Portugueses

13 - Agora que Falamos de Morrer

12 - A Última Campanha

11 - 0 simbolismo da água

10 - A Ronda da Noite

09 - MANDELA ? O Retrato Autorizado

08 - As Pequenas Memórias

07 - Uma verdade inconveniente

06 - Ruralidade e memória

05 - Bibliomania

04 - Poemas do Calendário

03 - Apelos

02 - Jardim Lusíada

01 - Um Teatro de Papel


Entendo que todo o jornalismo tem de ser cultural, pois implicauma cultura cívica, a qual não evita que, na compulsão, quantas vezesda actualidade, se esqueçam as diferenças.

No jornalismo decididamente voltado para a área cultural, todosos acontecimentos são pseudoeventos, cruzando- se formas discursivasem que as micropráticas têm espaço de discussão.

Não sendo um género, o jornalismo cultural é contudo uma práticajornalística, havendo temas que podem ser focados numa perspectivacultural especifica ou informativa, numa área não suficientementerígida, embora de contornos definidos.

Assim o tenho vindo a praticar ao longo dos anos, quer na comunicação social quer, a partir de agora, neste espaço a convite da 'Unicepe'.

Leça da Palmeira, 23 de Setembro de 2006

        11 de agosto de 2012



Por Filomena Cabral

VIAGEM DOS AVENTUREIROS DE LISBOA



Texto base da palestra que deveria proferir na Universidade de São Paulo, USP, durante a Bienal Internacional do Livro de São Paulo que ora decorre e onde será lançado livro de minha autoria. Agradeço, no entanto, novo convite da Profª. Doutora Lílian Jacoto para 2013.

Fora já elucidativa uma história recolhida por célebre geógrafo árabe, o marroquino Idrisi que, no ano de 1154, terminara obra significativamente intitulada Diversão para aquele que deseje percorrer mundo, quando a fronteira do rio Tejo constituía a retaguarda da fronteira lusa com o Islão hispânico. Por essa altura, a faina marítima contemplava o labor da agricultura e do pastoreio, o oceano era mais, muito mais, que o registo assustador de um mundo caótico e maléfico. Para os «camponeses pescadores» de aldeias e vilas do litoral atlântico, o mar, realidade integrada no quotidiano, definia um meio de subsistência, explorado, como bem sabemos, pela extracção do sal, para além da pesca. A mutabilidade e perigosidade desse elemento natural não impediam a navegação costeira e as práticas de cabotagem. Seria, se praticado na costa de Lisboa, um desafio à (a)ventura, propiciando fama, proveito, riqueza, conhecimento.

É, precisamente, da obra indicada acima, que se retira o episódio que confere título a esta nossa interlocução, também contado na mesma época por Abu Hamid de Granada, letrado representativo do género literário do tempo, em voga no Al-Andalus, o dos relatos de viagens.

Ora, segundo Idrisi, pouco antes da conquista portuguesa da cidade, ou seja, antes de 1147, oito varões, os aventureiros, todos aparentados entre si, teriam partido do porto de Lisboa rumo ao oceano, abastecidos de água e víveres. Ao fim de vários dias de viagem encontraram uma ilha onde apenas viram carneiros. Depois, metendo-se de novo ao mar, acabariam por encontrar outra, essa habitada, onde, depois de peripécias, vários foram feitos prisioneiros e conduzidos junto do rei local. Interrogados, apenas responderam que pretendiam conhecer os limites do mar, por entenderem que o nele contido devia ser espantoso, anseio que o monarca em presença compreendera. E assim foram soltos e devolvidos ao mar numa embarcação. Ao fim de três dias e três noites acabariam por atingir a costa atlântica marroquina, aportando a Safim, a todos contando a sua portentosa aventura. As ilhas visitadas remeteriam para os arquipélagos da Madeira e Canárias, que constituíam o vértice de um triângulo oceânico cuja base corresponderia às costas atlânticas e marroquina. No fundo, esta primeira aventura fora a sobreposição de muitas outras levadas a cabo por marinheiros muçulmanos, durante os séculos XI e XII, quando os actuais Sul e Centro de Portugal se incluíam nos territórios hispânicos submetidos ao poder dos imperadores de Marrocos, os almorávidas.

A ocupação cristã da cidade de Lisboa, em 1147, leva ao desmantelamento dos circuitos económicos e mercantis que ligavam a antiga cidade islâmica, por via marítima, à Andaluzia mediterrânica e ao Magrebe, destruindo assim o fundo civilizacional que fizera possível e atractiva a circulação de histórias, como a da Viagem dos Aventureiros. Mas, se o encontro e o contacto com o Islão urbano e mercantil trouxe consigo a possibilidade de um novo modo de ver o mar, como que cristalizada até aí a que fora herdada pela Cristandade da Alta Idade Média, o processo fora ainda assim lento e gradual, continuou pelo século XII e primeiro quartel do século XIII, a servir de via para expedições militares punitivas, organizadas pelos novos senhores do Islão hispânico, os marroquinos imperadores almóadas.

Logo, será a partir da segunda metade do século XIII - Portugal rural e guerreiro a ocupar o actual Sul do país, o Alentejo e o Algarve, passando a dominar as populações portuárias e litoral meridional atlântico -, que as novas representações do mar se tornarão mais significativas, impondo-se à medida que a realeza fazia das cidades, do comércio e da moeda, as bases da afirmação de um poder centralizado e centralizador, acima dos poderes regionais detidos pela nobreza e pelo clero do Norte senhorial. Começam então a tornar-se visíveis diversas práticas e crenças que procuravam encontrar no sagrado cristão protecções e rituais propiciatórios, para neutralizar as forças negativas e maléficas, tradicionalmente associadas ao mundo marítimo oceânico.

No Portugal medieval posterior à «Reconquista», a escultura dos templos românicos e góticos começa a escolher representações de peixes, um antigo símbolo do cristianismo mediterrânico, então reaparecido em embarcações de vários tipos, a pretexto da iconografia de temas como o da barca dos justos e a barca dos pescadores. Simultaneamente, com o retorno de seres fabulosos do bestiário clássico, reapareciam as sereias, um motivo que fora muito trabalhado na arte figurativa da Antiguidade urbana, e que de novo se revela na pedra esculpida dos templos, quando as actividades marítimas retomavam alento e suscitavam vontades de protecção dos poderes sagrados.

Enquanto visão do mar, a presença de seres míticos e lendários com que os antigos povoam o oceano não deixa de ser ambígua. De facto, a figura da sereia fora o produto do encontro de tradições culturais muitas vezes antagónicas. Tanto se associam, no quadro da tradição grega e oriental, a um ser tentador e maléfico que, n’A Odisseia de Homero procura provocar a morte e a destruição de Ulisses, como remetem, no âmbito da cultura latina, para símbolos de abundância do mar, apropriando-se de atributos próprios das nereidas e tritões.

Ora, se na arte da Cristandade em geral as sereias surgem, maioritariamente, como emblema das forças malignas e pecaminosas que os poderes do tempo deviam exorcizar, na iconografia portuguesa aparecem quase sempre associadas ao peixe representativo do supremo bem da cristandade, remetendo para valores ligados à salvação e redenção - pelo que apontam para a prodigalidade do mar, sendo a função esperada do lugar sagrado onde se exibem, a de contribuir para o assegurar da sua permanente fecundidade.

Em simultâneo, os templos do Portugal litoral, tanto paroquiais como monásticos, tendem de igual modo a acentuar o culto dos santos patronos dos viajantes, todos os que protagonizassem deslocações assombrosas, como Cristóvão, eficaz não só em jornadas que implicassem grandes negócios, mas na travessia de rios caudalosos, passagens temidas e arriscadas, numa época de escassas pontes, patronos sempre chamados em socorro de marinheiros e navegantes, em tempos e circunstâncias oceânicas aterradores. Menos lendário, S. Telmo depressa se expandiu pelo litoral da Península Ibérica. Em Portugal dos séculos XIV e XV, organizaram-se várias confrarias de gentes do mar, dedicadas à celebração da sua memória, e muitos barcos de pescadores e mercadores foram baptizados com o seu nome em busca de sagrada protecção.

Já nos finais do séc. XIII, a lírica trovadoresca galaico-portuguesa expressa-se acerca do mar, em contextos totalmente afastados de referências a tragédias ou catástrofes mortíferas e aniquiladoras. Tome-se por exemplo as canções de João Zorro, acerca das barcas novas que o soberano luso mandou lavrar no estuário do Tejo e no mar as mete - o oceano representa-se como um espaço dominado e disciplinado, apenas evocado porque a ausência prolongada dos seus frequentadores criava saudades de casa e também àqueles que os amavam, ou seja, no caso dos poemas de João Zorro, em que certa donzela lamenta a partida dos amigos nos navios do rei. A antecipada saudade da moça não traduz todavia qualquer cuidado pela vida de um amado cujo destino era o oceano, uma vez que este não era visto enquanto lugar de faina e de trabalho, mas como pretexto de uma lamentada e chorada ausência.

E será na motivação da ausência, do perdido - anteriormente achado -, seja o lugar - o Brasil -, o amado, ou o orgulho de uma nação - a portuguesa -, que viria a estruturar-se o «ciclo Americano» na sua quase totalidade. De minha autoria, constituído por seis romances historiográficos - em cerca de 3000 páginas e que COMÉDIA DOS VIVOS E DOS MORTOS encerra - no conjunto será também, em alguns aspectos, a continuidade da gesta, em diversos tempos, lugares, oscilando entre Portugal (Porto) e Paraty, nos séculos XVII/XVIII, em «OURO, Honor. Corsários. Ilusiones», o único romance de autor português cuja acção decorre em Paraty, desde o início, percorrendo a «rota do ouro». «VIAGEM - Memória e Sertão» forma com aquele Brasil.Díptico (ed. em 2000 e apresentado na Bienal de S. Paulo), abrange os séculos XIX/XX. Começa VIAGEM com um jantar no Consulado do Brasil, no Porto, em 1917,em plena Grande Guerra e no eco da Revolução Russa, termina com a Primeira República em Portugal e no Brasil, chegam ao poder Salazar e Vargas. E como as palavras, no dizer de Montaigne, são vasculares e vivas, os textos são impregnados de sangue, suor e lágrimas - júbilo -, no fazer da grande nação brasileira pelos aventureiros de Lisboa e outras partes de Portugal, onde se falasse português; ainda do restante mundo. Tais aventureiros navegadores, misturando a trama da lonjura, sempre em trânsito entre a metrópole e a América de língua portuguesa - desta feita privilegiada a cidade do Rio de Janeiro - não desprezam, muito pelo contrário, os Estados Unidos da América, em dois momentos diversos do Ciclo. Em «Viagem», determinada brasileira próspera ali se desloca, nos anos vinte, a trama política a estender-se qual teia pelo mundo, onde mulheres e homens seriam apanhados, quer quisessem quer não. O Díptico incide na América Latina. O mundo transformar-se-ia; e transfigurou-se. Hoje, estamos certos disso como jamais.

Assim, em MAR SALGADO, séculos XIX/XX - lançado na Bienal de S. Paulo de 2002 -, abrangendo já a guerra colonial, a narrativa dá oportunidade aos brasileiros de acertarem, em África, a sua energia com a dos portugueses. Após a revolução praieira, no Recife, em 1849, portugueses/brasileiros são expulsos de Pernambuco. Irão reproduzir em Angola - ainda colónia portuguesa até 1975 - o virtuosismo sociológico do Brasil, país independente havia escassas décadas. Sentir-se-iam ali mais portugueses que anteriormente e impediriam a gula de povos estrangeiros que cobiçavam o «hinterland»; os seus descendentes viriam a combater na guerra colonial, perderiam a vida, eram, afinal, portugueses. Após 1974, o Brasil tornar-se-ia o lugar de esperançoso anelo - descendestes, tantos deles ainda, dos orgulhosos pernambucanos que D. Maria I impedira que aportassem a Lisboa, destinando-os ao deserto de Moçâmedes: eram prósperos, perturbariam interesses estabelecidos na capital do império. Ergueriam a cidade de Moçâmedes. Muito do sul de Angola reproduz, aliás, o traçado das cidades brasileiras - já o afirmei noutros momentos -, em alguns aspectos, mormente as do interior do Estado de S. Paulo, Assis, S. José do Rio Preto; que Olinda, deles, era incomparável. Do mesmo modo, as grandes cidades brasileiras remetem, no meu lembrar, para as grandes cidades sul-africanas e da antiga Rodésia: o europeu, tentando fazer «europas» fora da Europa, atribuía-lhes desígnio, energia a propagar-se a um futuro utópico.

E, quem, sendo português, não se deixa arrebatar, pisando o Cabo da Boa Esperança, lá na ponta de África! Pelo continente africano fui acumulando emoções, sensações, experiência, apercebi-me de que o mundo se transformava, os impérios desabariam. E se quiser remeter este deambular para o lugar das emoções não sentidas, logo perfeitas, poderei retomar, num exercício delirante, certa deambulação por Durban: um rapazinho, magro, circunspecto, de óculos de lentes redondas, caminhava indiferente ao ladrido do setter que segurava pela trela. Parecia falar com alguém, eu, aqui e agora, pretendo ver nele uma imagem oblíqua de Pessoa: «Em mil novecentos e qualquer cousa (... ) Portugal era um mar de idiotia sobre que navegava um batel de piratas. Navegavam, porém sem rumo; os piratas nem sabiam navegação (... )»; conversaria por então, ainda em Durban, com «le chevalier de Pas», regressaria a Portugal, sina a bem dizer de todos os portugueses, o caminho de regresso, abandonando os lugares do seu orgulho de navegantes ou os do acaso da vida, como Pessoa. No ir e no voltar, deixáramos de atemorizar o Adamastor, pela simples menção de D. João II, e Portugal acabaria num beco de que ignoramos por ora a saída. Mas avancemos para outros aspectos:

Em Oklahoma Blue, séculos XIX/XX, quarto livro, pontua a família Álamo - voltemos ao «ciclo Americano» -, cujo antepassado, natural do Minho, por sugestão da narradora se enganara na rota, alcançando a margem de Red River - bem longe do rio Tietê; o caderno das suas memórias estimularia gerações, rememoravam Plínio Álamo, em aventuras inestimáveis na pradaria: tivera oportunidade de dialogar com o mundo, em discurso directo, mundo em mudança, a caminhar, entretanto, para a Segunda Guerra. Oklahoma Blue traça o retrato fiel da primeira metade do século XX português. Enfim, «ciclo Americano» ainda, pela influência de nova nação, no século XVIII, os Estados Unidos da América, de onde irradiou movimento perturbador de todo o Ocidente, entre 1770 e 1850. Anterior à Revolução Francesa, a Revolução Americana foi, afinal, a primeira rebelião colonial dos tempos modernos. A simpatia da nação americana pelos movimentos revolucionários da América Latina é um dado adquirido, pela ajuda aos movimentos independentistas, os próprios insurgentes sul-americanos solicitavam-lhes auxílio, imitando os rebeldes brasileiros buscando orientação na sua experiência constitucional. A independência dos Estados Unidos, a dos países ibero-americanos foram essencialmente movimentos de independência dos colonos, a iniciativa pertenceu a grupos de ascendência europeia, pouco ficou a dever-se às populações indígenas. E assim se autonomizaria a América Ibérica.

ORNATO CANTABILE, uma epopeia abrangendo os séculos XV e XVI, irradia do Porto - a minha cidade natal -, e pretende retratar as relações diplomáticas, a imensa malha de cumplicidades, traições ilusões, entre os países europeus colonialistas, em estratégias de poder - nele se traça também esquiço do Brasil do século XVI -, curiosamente os mesmos países que agora, no século XXI, se deixam obcecar pelo vizinho: anuladas fronteiras, descobrem entre si aspectos pouco lisonjeiros.

Depois da expansão a contracção, um mundo míope, mesquinho, incapaz de perder-se na lonjura salina: outrora um novo reino peninsular que, no início do século XII - logo nos começos da história medieval portuguesa -, se afirmava como o mais ocidental das fronteiras da Cristandade rural, o mar conceptualizado enquanto caos e desordem, lugar de um anti-mundo cuja ameaça constante permitia valorizar e reforçar a sacralizada união do espaço cristão. E volto ao tema, pois é tempo de chamar de novo ao texto as sereias: quando os cónegos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra redigiram a biografia do seu primeiro prior, D. Teotónio, antigo conselheiro do monarca fundador do reino, D. Afonso Henriques, insistem nos perigos e temores do mar, exaltando a heróica santidade do seu pai espiritual, recordando como o prior, numa das suas viagens oceânicas, fora capaz de afastar certo monstro marinho, diabólica besta. Teria um dos monges visionado Teotónio numa eira no meio do mar, defendendo do prodígio o mosteiro e a cidade de Coimbra, então o principal centro político-cultural do reino, das salgadas e amargas águas do mar que era o mundo: ao mar e aos disformes seres nele contidos, só um santo podia neutralizar e esconjurar: tratava-se de imagens nascidas e difundidas durante a Alta Idade Média, quando o litoral europeu fora progressivamente invadido e ocupado, para além dos muçulmanos, pelos escandinavos. O mar era a sua estrada e, de certa maneira, o seu modo de vida, que passou a comungar da destruição e da impiedade que lhes eram atribuídas.

A grande estrada do mar, o longo caminho do ignoto, o terror, a audácia, e o portentoso, o perigar da vida para um melhor aconchego de vidas, o enfrentar de tempestades, a resistência a seduções vãs, para se não desviarem da rota, os portugueses! Teriam fito preciso? Saberiam porque iam e para onde iam? Não. Os portugueses, povo de aventureiros, descuidado e crente ou no Altíssimo ou em si próprios, ou por mera façanha, afastavam-se da firmeza continental. De velas desfraldadas, em frágeis embarcações, comendo alfarroba, dois ou três suínos foçando no bojo da nau, garantindo torresmos, a rede pesada no arrastar, tal a abundância; o excesso, deixado à torreira do sol, acabaria por atingir os abismos marinhos, o domínio mítico das Fúrias. Os navegantes dormiriam de dia, a luz sempre afastou o terror da imaginação, e depois de lutas infindas, ainda que imaginadas, chegariam a bom porto, pequena enseada no labirinto: a um Porto Seguro.

«Ó mar Salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal... » Este o primeiro poema que decorei, continuo sem saber o motivo, e nem recordo quem mo indicou. Neste momento, acreditem, talvez ria para dentro, pois as lágrimas, caso me comova, serão de riso, assim quando decidimos troçar de nós: o povo português, demasiado confiante no seu destino, aparentemente fadado para que se repetissem histórias de espanto e exemplo, continua a dar azo a tais histórias de pasmo, na actualidade, só o fadário mudou.

Prosseguindo todavia antiga pendência, as Fúrias - seres temíveis afastados da teogonia helénica - quase sempre submetidas, ao que constara, pois tanto descobrimos - decidiriam, no século XXI, agora, compensar-se de séculos nos desfiladeiros marinhos, mundo ignoto, abissal, sem préstimo, o mar outrora português desprovido de rotas desconhecidas, sem crença ou descrença - abúlico.

Outrora, o mar chamava, como que respondendo a todas as crises, marcava destinos, em emaranhado de mistérios. Mas sempre Portugal fora obrigado a olhar para dentro de si. O som do mar ecoava nos pinhais e os lenhos traçariam rotas de comércio, na guerra marítima ou em actividades de pirataria e corso. Um mar que rodeava a terra, espaços do desconhecido sombrio, inconcebível como vazio, mas, porque desconhecido, um mar povoado de ilhas e monstros. Na cartografia, à semelhança do mar interior que é o Mediterrâneo, coberto de ilhas, assim o Atlântico é o mar exterior, povoado também de ilhas, monstros e sereias. Mercadores, marinheiros ou corsários conheciam bem esse mar que bordeja a Península Ibérica e se estende para norte até à Inglaterra e Países Baixos. Sempre se avançava no mar, em tempos de grande perturbação interna no reino. Externamente, vai-se retomar a conquista sistemática de Marrocos, Alcácer Ceguer, em 1458, mais tarde, 1471, Arzila e Tânger, Larache... Enfim, basta consultar compêndios, que a minha intenção não é trazer para aqui, nem para os meus livros, o roteiro da aventura sem par dos Portugueses - embora a não rejeite, muito pelo contrário -, mas o modo de estar, de ser ou não ser dos mesmos portugueses, nessa vara oscilante em que num extremo está o melhor e no outro o pior, nós, lusíadas, querendo fixar-nos no meio, no equilíbrio da vida, do devir, mas nada nos prende à rotina, à coisa certa. O que nos atrai é ainda a aventura, mesmo que saturados dela, por nela viciados «... Se não fora o capitão /eu trouxera o meu quinhão/ hum milhão vos certifico».

O Humanismo só se desenvolve em Portugal, a partir de finais do primeiro quartel do século XVI. O país, voltado para o Atlântico, lançado na aventura das viagens marítimas, esforça-se por conseguir aperfeiçoamento técnico dos seus limitados meios, aptos, no entanto, a dar-nos o domínio das navegações. A técnica, de início, rudimentar, torna-se, com a experiência, rigorosa. Os conhecimentos experimentalmente adquiridos são disciplinados pela razão, tornam-se sistemáticos, transformando-se, deste modo, em ciência. Surgem textos em que esta ciência se constrói, coerente, embora na sua génese, fundamentando-se numa observação primária. Mais tarde, aparecerão obras literárias e filológicas. Nada disto fruto de uma curiosidade gratuita. Em primeiro lugar porque o país tem, à época, as suas vias no campo e no mar, e também porque os seus habitantes procuram os tráfegos, adaptando-se a outros climas, transformando-se, fundindo-se noutras humanidades. Da experiência ao saber metódico, do contacto com o real à ciência rigorosa, eis como poderia enunciar-se uma definição exacta dos Descobrimentos portugueses que são historicamente o Renascimento em Portugal, precedendo o Humanismo renascentista.

Pioneiro, com a Espanha, dos Descobrimentos marítimos, Portugal, antes de ser culto e letrado, foi camponês, viajante e marinheiro. Nos temas que ilustram a sua vocação, o mar foi o caminho invariável da sua história; nos textos literários que os portugueses escreveram já polidos pelo Humanismo renascentista europeu, e mesmo mais tarde, respira-se o aroma de flores campestres, dos pinhais, o odor acre das fortes marés atlânticas. «Ai, flor, ai flor do verde pinho... »

Logo, quem melhor recordará um modo de ver o mundo e de lhe avaliar a força que nós, portugueses? Seremos todavia - ai de nós - já incapazes de relembrar senão em narrativas de espanto, apelando, no inconsciente do colectivo, a seres míticos enovelados na epopeia, convocando as filhas de Nereu, todas as forças do mundo aquoso, num velho exercício de cumplicidade, em comédias da vida e da morte!

Decorridos séculos sobre a aventura do mar, reduzidos ao torrão de onde irradiou tanta coragem, afoiteza, somos obrigados a percorrer a memória, prisioneiros dela, quase a odiando, mas necessitando dela como de água doce em distantes dédalos salgados. É bem certo: só recordando o passado cheio de alçapões e passos incertos, mas também de audaciosa aventura, mestres na arte de tecer a imensa tapeçaria oceânica, poderemos encontrar no âmago uma semente de esperança, qual lenho plantado, para a quimera de navegar, sempre:

Ei-las, as filhas de Nereu, «de amor dos Lusitanos incendidas, / Que vêm de descobrir o novo mundo/ Todas numa ilha juntas e subidas / - Ilha que nas entranhas do profundo / Oceano terei aparelhada, / De dons de Flora e Zéfiro adornada (...)». Num pacto comovedor, as nereidas acorrem à costa portuguesa, reverenciando a memória, a pátria de Luís Vaz. Este é também o pretexto de COMÉDIA DOS VIVOS E DOS MORTOS, e terá sido em memória do seu estro, da nossa phala que, tanto quando Lisboa quase perecera, em meados do século XVIII, em 1755 - data que nem a da Revolução Francesa, 1789, obscurecera -, arrastadas para a costa portuguesa pelo maremoto que se seguira ao sismo, quanto agora, no final da primeira década do terceiro milénio, revisitam as nereidas Portugal velho, orgulhoso e insultado, pretendem que não sofra, ofertam agora, como no Renascimento a marinheiros cansados, uma ilha de primores, onde os cuidados e a incerteza terminem, metáfora de sossego levada ao excesso, a tranquilidade da morte, pois para levar os portugueses consigo para Lusofrenia, ilha fora de todas as rotas - onde teriam acumulado, ao longo de séculos, tesouros inimagináveis -, no agora da acção teríamos de abandonar a vida, lançar-nos ao mar, sem lenho, bandeira, espadim, impedidos de adormecer no ranger da nau - a nação portuguesa a pique.

E não mais direi, cansando-vos, todavia, em «Comédia dos Vivos e dos Mortos», o tributo das filhas de Nereu, o reconhecimento dos sempre valorosos portugueses e, já se vê, dos valorosos de todos os lugares por onde andámos e que continuamos a amar, o Brasil, qual âncora anímica, ainda que a maior parte dos portugueses não o conheçam, trazido pela Corte portuguesa um tesouro móvel, a inestimável biblioteca de D. João VI; o mesmo Brasil, que soubera conservar a língua portuguesa trazida pelos mais antigos, em efeito mágico, eleva-nos o ânimo abatido, recordando o pretérito que jamais regressa, sequer fragmentado: o passado da nação portuguesa assemelha-se a magnífico espelho de cristal estilhaçado, reflectindo a paisagem do mundo. E será em tais fragmentos iridescentes, sedutores - Tétis cúmplice na salvação de «Os Lusíadas» - que, recordando o que fomos, buscaremos ainda e sempre a nossa imagem perdida.

O tom é irónico, por vezes sarcástico, no livro à vossa frente. Encerra o «ciclo Americano», é uma edição Babel, para a Bienal Internacional do Livro de 2012: o riso, na desgraça, desorganizando o pensamento, conduz à comédia da vida e até à comédia da morte.

Lisboa, Agosto de 2012.


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