Por Filomena Cabral
ANGOLA - Metáfora do mundo que avança
A tragédia existencial pode revestir-se de contingências dissemelhantes e, na actualidade, o mundo, de um modo ou de outro, alia-se, em coro, recitando o desespero: o coro é o actor. Será cada vez mais raro, no entanto, o gesto de concórdia, cada qual obcecado pela sua circunstância.
Nesta atmosfera de desacerto, sucessão de incongruências, os estadistas procuram o consenso, convictos do perigo como jamais no mundo contemporâneo. Se após os conflitos mundiais, mormente a Segunda Guerra, a carência fora encarada patamar inevitável para que a existência voltasse à normalidade, obedecendo à lógica de reconstrução, agora o descalabro leva a que os governantes e uma infinidade de mentores se agitem em contactos, estratégias de recobro, sentindo o chão fugindo-lhes sob os passos, num modo de estar abrangente, em atoleiro comum.
Enquanto portugueses, só poderemos encontrar verdadeira estima nos lugares onde aplicámos a nossa energia, países entretanto mais ou menos florescentes onde deixámos know-how, estruturas, se bem que o tempo - este flui qual rio e tudo arrasta - acabasse por transformar o apego em conflito: como evitar aludir à guerra colonial, à descolonização? Permanecem qual vaga, na sociedade portuguesa, ora parece afastar-se ora nos submerge. Se a actualidade leva a que nos reconsideremos enquanto nação, nas duas últimas décadas voltámo-nos para os lugares do nosso afecto em África, houve de tal prova. Desta feita, o nosso Primeiro-Ministro está em visita a Angola, por horas escassas, todavia intensas e profícuas, acreditamos.
Ainda em 2009, ali chegara do mesmo modo - embora as circunstâncias não fossem tão dramáticas - uma embaixada de homens de negócios acompanhando Sua Excelência o Presidente da República, objecto de entusiasmo genuíno das populações do Huambo, pela visita do mais alto magistrado da Nação portuguesa. De súbito, no auditório da universidade, numa cidade que já se denominou Sá da Bandeira, irrompeu, chegando até nós através dos noticiários televisivos, o hino nacional português cantado por angolanos. Vestiam de amarelo, a tonalidade do oiro, do próprio sol; a História, em tropel, atingia-nos, voltáramos a ser heróis do Mar, nós, velho povo entretanto amarrado a desígnios do mundo anglófono e teutónico. Comovemo-nos - por mim o digo -, continuamos valentes, embora nos deixemos tentar pela indecisão, de quando em vez, e seremos, acredito, imortais, pois prevaleceremos na memória do mundo: Portugal continua a ser metáfora coerente de cumplicidade pluricontinental, decorrido mais de meio milénio.
Sem nos permitirmos candura demasiada, em patriotismo sensato, acredito que a portugalidade se acentuou com os sucessivos desaires do presente, se bem repararem reaprendemos a cantar o hino nacional, não será necessário mudá-lo, o combate é inerente ao nosso destino de portugueses, e prosseguirá: no passado, enfrentámos canhões e o Adamastor, agora as armadilhas económicas, numa federação de estados. Perante os asiáticos e outros que em Angola se instalaram, até dos que nunca de lá saíram, confiemos que a memória dos portugueses e o próprio mito que nos constituímos prevaleçam, enquanto afirmação de algo que se situa para além do imediato ou da vontade: todos precisamos de um passado a que prender a nossa âncora, e a história de Portugal e Angola foi comum durante séculos, até ao último quartel do século XX, nenhum de nós o ignora. E também estamos cientes de que o tempo tudo dilui, o positivo e o negativo, numa espécie de equação a duas incógnitas de que resultará o interesse.
Apesar de exauridos os portugueses e o mundo ocidental, acredito que estando o nosso Primeiro-Ministro naquele País, algo incentive um relacionamento feito de aceitação: quando percorremos a América Latina, a África de língua oficial portuguesa, a Oceania e pedaços da Ásia, palmilhamo-nos por dentro da memória ancestral; e o tempo fracciona-se para que nos não desorientemos, deixa-se gotejar ou marcar nos quadrantes dos cronómetros, todavia é uno, quem caminha pelo tempo somos nós, o tempo é inesgotável. Esta familiaridade universalista reflecte-se no modo como nos deslocamos ao encontro de soluções, afinal somos velhos cidadãos do mundo.
Tem sido turbulento o nosso relacionamento apaixonado com África: para não nos afastarmos demasiado, vamos até ao séc. XIX, em que ilustres políticos e homens de letras defendiam a alienação das então colónias portuguesas naquele continente: de que serviriam se pouco teriam rendido? De facto, fora necessário que o Brasil se tornasse independente para atentarmos no trópico restante; em Angola, para além do simples "funanço", transacções comerciais com os naturais da terra vindos da profundidade da mata ao encontro dos portugueses, pouco mais: não nos aventurávamos para além da costa. E só a partir da directiva de Weimar, segundo a qual os territórios abandonados em África seriam, a partir dali, de quem deles soubesse retirar proveito, as coisas começaram a tomar outro rumo, Angola cresceria, nela permanece a raiz do memorável, não nos desligámos, somos um povo fatalista. A adversidade, no entanto, desfeando o retrato, leva-nos agora a exacerbar a melancolia, jamais andámos tão tristes: para onde quer que olhemos, na rede dos lugares que palmilhámos, depara-se-nos o que deixámos de ser.
Nos últimos 20 anos, sucederam-se visitas ao mais alto nível a Angola, não nos tem faltado motivo. Logo após os acordos de Bicesse, ali chegou o então Primeiro-Ministro Cavaco Silva, acompanhado do jovem Ministro dos Negócios Estrangeiros, José Manuel Durão Barroso, um dos mais respeitados políticos portugueses. A seguir, com a guerra civil, iniciada em 1992, o rumo de Angola definiu-se. O nosso foi-se complicando, voltáramos costas aos lugares da expansão, focado o nosso anelo na Europa, onde sempre estivemos. O Mar! Ora, o Mar!... Hoje, acabrunhados, mas de cabeça erguida - jamais estaremos de outro modo -, arriscamo-nos num trilho que poderá conduzir-nos à queda, como em tempos à expansão: foram as dificuldades que fizeram as «europas» fora da Europa, contratempos comuns aos restantes países outrora colonialistas, com que hoje constituímos a União Europeia: fomos grandiosos, opulentos, agora caímos num emaranhado de estratégias económicas mesquinhas. Mas a nossa combatividade de portugueses, a qualidade humana, prontas a surpreender das mais variadas formas, talvez conduzam à possibilidade de compensação do presente amargo, num futuro muito próximo. Se assim não for, resultados incoerentes, constantes manifestações de impotência, de sobejo conhecidas, repetir-se-ão até esgotar-nos. Viver na incerteza, cansa; viver sem esperança, mata.
Ao absolutismo negativo quase não temos modo de escapar-lhe, sejam quais forem as estratégias da inteligência, até a violência de conclusões, conduzindo como que à abdicação em negação, mas não devemos anular a possibilidade, se bem que as decisões, em grande parte, não dependam de nós, condicionando os nossos governantes: por agora, temos a certeza do seu empenhamento, da responsabilidade imensa.
Concentremo-nos, apesar de tudo e por isso mesmo, na viagem que se iniciou agora, se bem que, enquanto portugueses, desconfiemos do poder, qualquer que seja, num estado de espírito inquietante, não sei se para nos evitarmos decepções, o que resulta injusto no caso presente: de mãos quase atadas, resta aos dirigentes a decisão de deslocarem-se ao encontro da possibilidade. E sempre assim foi connosco, como que procurando lugar fora do nosso espaço geográfico, não temos por vocação restringir o mundo.
Pensamos em Angola e supomos conhecê-la ainda. Todavia, tal como as pessoas que deixámos de ver há décadas, o relacionamento com o lugar mudou. Angola é a metáfora do mundo que avança, Portugal a de um mundo europeu que parece estagnado. Se não somos os mesmos, os angolanos também são outros, evoluíram, desligaram-se da imagem do passado. A comitiva portuguesa não estará, no entanto, liberta de emoção, o nosso Primeiro - Ministro revisita a antiga cidade de Luanda, onde cresceu.
Assinale-se, em concreto, na oportunidade, o poder de atracção de Portugal pela aplicação de capitais angolanos, representando Angola uma saída para a realização laboral de grande número de compatriotas. Pelo seu excesso de liquidez, o próspero país africano leva o Primeiro - Ministro, Pedro Passos Coelho, a investir na possibilidade de ali encontrar solução para a realização profissional de quadros nacionais, não sendo menos certo ter admitido José Pedro Aguiar Branco, Ministro da Defesa, na última terça-feira, em Lisboa, a possibilidade de discussão da viabilidade do interesse angolano em produtos de estaleiros portugueses. Segundo recordo, o Brasil estará do mesmo modo interessado no nosso produto naval, como que cumprindo-se a gesta. A esperança aquece a alma.
Pelo seu lado, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Portas, defendeu em Lisboa que, pelo facto de Luanda presidir, actualmente, à CPLP, tem falado a uma só voz em matérias relevantes de política internacional, sobretudo de âmbito regional. O chefe da diplomacia portuguesa salientou que existem 250 milhões de lusófonos em quatro continentes, número que poderá ascender a 350 milhões, até meados do século. Também pela facilidade de obtenção de vistos, nos dois sentidos, será incrementado o reconhecimento mútuo ou o simples, porém precioso, reencontro com a raiz, contam-se em dezenas de milhar os angolanos a residir em Portugal.
Esta noite, o Primeiro-Ministro demonstrava segurança, em entrevista televisiva, porventura por efeito de sortilégio benéfico, os assuntos de Estado decorrem, segundo parece, em plano ascendente, José Eduardo dos Santos, Presidente da República de Angola, afirma que Portugal poderá contar com ele (Angola), para tudo. Noutro plano, Portugal, ainda e sempre crente na força da lusofonia, parece considerar a nossa língua universal mais que uma questão cultural, um muito importante projecto, uma questão de estratégia política.
E assim nos vamos tornando um país sequioso de ilusão.
17.11.11.