Jamais, desde a devastação efectiva da Europa pelo conflito armado de 1939-1945, guerra civil europeia, se transitara do eventual desgaste do património comum de bem querença para a delapidação compulsiva do propósito firme de não agressão, ainda que psicológica, entre pares, após o conflito medonho. O ano de 2012 assinalou o fim do equilíbrio instável que diversos orgulhos nacionais manifestamente faziam questão de salvar. As máscaras caíram - tudo cansa -, o salve-se quem puder tornou-se a ordem do dia, diz-se por dizer, neutralizando a tensão momentânea com falsas expectativas, e o interlocutor, para manter o bom nível do relacionamento institucional ou outro, encarna a figura do imbecil, evitando o conflito.
Todavia, se nada dura para sempre, a contenda, ainda que adiada, conduzindo à exasperação, ultrapassa o filtro da inteligência, do bom senso, já que o sujeito, quem quer que seja, terá de defender o que lhe é intrínseco do extrínseco, apresentando-se este em múltiplas facetas.
Nos últimos meses - é bem certo -, temos tido dificuldade em reconhecer o colectivo segundo a ideia que se consolidara de que somos, os portugueses, gente ordeira e prudente: a acumulação de frustrações torna irreprimível o estado de raiva, parece termos voltado a meados do século XIX, em que o tumulto poderia constituir o primeiro passo de uma revolução que agora ninguém pretende, sequer Mário Soares, acredito, personalidade incontornável, o maior estadista português vivo, respeitamo-lo, conhecemos as suas opções políticas, a sua experiência, pode permitir-se tudo, até avisar o Primeiro-ministro dos perigos em que incorre, principalmente quando teme pelo estado da Nação - e tem fortes motivos -, pois conhece a trama da História que ele próprio integra.
Permito-me evocar, dado a actualidade, e sem misturar as coisas, algumas teses defendidas outrora, noutro contexto: foi a necessidade de destruir completamente o Estado (burguês) que sustentou a necessidade de o aniquilar. Entendia-se que o quadro nacional servia os meros interesses dos privilegiados, pelo que os não privilegiados exortavam à união de outros nas mesmas circunstâncias:
Lembremos que, em determinado momento, as forças sociais de produção material entraram em contradição com as relações produtivas existentes, estas não passavam de uma expressão normativa das mesmas com as relações de propriedade que as condicionavam. Modificadas as bases económicas, começara a crispação social, a definição temporal das forças produtivas determinava as relações de produção, isto é, as relações estabelecidas entre os indivíduos, motivando a divisão dos mesmos em classes sociais, já que uma dada estrutura social implica um sistema de crenças, valores, regras e formas políticas, o sistema político é sempre o resultado do sistema de produção, estabelecendo-se um sistema de relações entre os homens, as chamadas relações de produção ou instituições sociais, organizadas no sentido de preservar uma hierarquia humana, na qual os que adquirem o domínio das forças de produção são também os donos do poder político.
Sendo verdadeiro que a capacidade científica e tecnológica evoluiu, no sentido de exercer a capacidade de controlo das instituições, mudar a estrutura dos que adquirem o domínio das forças (de produção) implicaria novo ciclo (utilizo vocábulo suave), na intenção de mudar a composição da estrutura, a composição da grelha dos que detinham o poder e dos que o acatavam.
Adaptado o quadro acima - repito - à sociedade capitalista do século XIX, teses proclamadas e ensaiadas na acção iriam ter importância maior na evolução do materialismo e pesaram, de imediato, como dogmas ideológicos, não como conclusões racionais ou científicas - assim sucedera com as teses de Lutero. Há quem defenda que o talento de Marx e Engels foi o de ensinar a síntese de todo o pensamento crítico do século XIX, relacionando os legados da filosofia alemã, da economia inglesa e do socialismo francês. Recusando a linha utópica, a fuga à realidade, assentaram em que a crítica do Céu deve transformar-se em crítica da Terra, que a crítica da Religião deve transformar-se em crítica do Direito e que a crítica da Teologia deve transformar-se em crítica da Política. Tal critério implicaria o rompimento com Hegel, pelo repúdio de que o Estado e o Direito sejam a encarnação de uma ideia absoluta.
Enunciava-se que «assim como não é a religião que cria o homem, mas ao contrário é o homem que cria a religião, também não é o Estado que dá origem à sociedade, é esta que cria o regime do Estado e o seu direito». Na tentativa de racionalizar a evolução social, tendo especialmente em vista a situação da Alemanha, concluía-se que os proletários constituíam a classe que até então nada representara na via do Estado, sendo no entanto a que poderia modificar a realidade social e política - de acordo com Marx - em artigo publicado na 'Gazeta Romana', sobre a Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito. Expulso do periódico, em 1845, fixa-se em Paris e define, em contradição com Proudhon, as vias de acção revolucionária. Este publica, em 1846, a famosa Filosofia da Miséria, declarando-se adversário da violência e do totalitarismo estatal. Marx responde com a Miséria da Filosofia, onde sustenta que a contradição entre o proletariado e a burguesia teria como resultado «a ditadura do proletariado». Todavia, Engels adquirira em Inglaterra a experiência do socialismo inglês, publica um livro histórico, A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, onde se encontra o primeiro incitamento claro em organizar o proletariado numa classe revolucionária.
Em breve síntese definia-se as massas populares como agente da História, começando a perfilar-se o pensamento da sua missão. No entanto, com Ideologia Alemã, completar-se-iam as teses do materialismo histórico: repudiando a passividade política e preconizando a luta de classes, o comunismo científico opunha-se à utopia.
Será talvez contra um poder político de novo tipo de sinais contraditórios, que Mário Soares se insurge, num mundo em mutação inquietante, dado que a transformação de um tipo de sociedade noutra, explicada na Crítica da Economia Política, apontava já, enquanto princípio destruidor, a lei da margem de lucro decrescente, residindo o cerne da questão no pormenor de ser o lucro o motor do sistema capitalista. Rodeando minúcias - meramente especulo, estabelecendo nexos -, os «capitalistas» procurariam desenvolver a racionalização da empresa, conduzindo à eliminação dos débeis pela concorrência, e à concentração do poder económico em cada vez menor números de pessoas, com o consequente empobrecimento da sociedade, aspecto este que conduz à teoria que subsiste, a designada «teoria do coveiro»: o facto de concentrarem-se as empresas, tornando-se cada vez maiores, centralizando o capital, parece ter contribuído para fazer alastrar manchas de pobreza. No século XIX, os expropriados tornaram-se nos expropriadores, por razões sociais, precisamente.
O estado actual das coisas, a revolta sufocada pelos próprios descontentes para evitar males maiores, excessos, talvez (com toda a reserva) tenha justificado o protesto do ex-Presidente Mário Soares, cerrando fileiras, numa atitude idealista embora agressiva, só ele pode assumir gestos idênticos - actuou, desde que se conhece -, tentando chamar a atenção do Governo. Ele sabe, melhor que ninguém, pela malha do tempo, que só o excesso, por vezes, pode convencer, faz-se ouvir, ciente de que os tambores de ressonância da media se encarregam do resto. Assim sucedeu.
Pelo desequilíbrio entre os Estados e as populações, a contenda ininterrupta do longínquo Manifesto comunista alcança a actualidade, estados democráticos como de facto são - na Europa deixou de haver regimes autoritários -, mas, ainda assim, bem diferentes entre si, nós - graças a Deus -, contestatários mas sensatos; ficou-nos o gosto anarquista, será verdade, a ânsia antiga de espadeirar: a aniquilação do conde de Andeiro, motivada na crise política de 1383, punha em causa a independência de Portugal. E gostamos menos de nós, pois deixámos de respeitar-nos: o outro - país, instituição ou indivíduo - é espelho inevitável, o nosso orgulho de portugueses tem sofrido duro revés, Mário Soares reage, o próprio Governo, que tem de acatar orientação externa e, por outro lado, evitar que caiamos em descrença total, tem talvez hesitado demasiado - evito meandros -, sem a robustez política dos velhos republicanos que, em boa verdade, não poderá ser-lhe exigida. Propõe formulações novas em catadupa, obcecado por resultados compensadores, tem de acreditar nas suas capacidades, na eficácia das suas formulações: se duvidar de si ninguém crerá nele, sabe que há de colher o que semeia.
Se bem pensarmos a História, concluiremos que todos os movimentos históricos foram levados a cabo por minorias em benefício de minorias. Só o movimento dos trabalhadores foi um movimento espontâneo da imensa maioria em benefício da mesma maioria, o Estado parecia desnecessário, a idade de oiro prometida pelos milenarismos parecia ter chegado. Não chegara.
Apesar de o sonho das sociedades novas não ter sido abandonado - a raiz firme da Utopia alimenta-o - a experiência da falência de sistemas incentivou, contudo, a racionalidade: o capitalismo selvagem de meados do século XIX evoluiu para um capitalismo esclarecido (parece ter vivido já a sua melhor época); o ambiente económico hoje é circunstância adjuvante, o Estado nunca foi eliminado por inútil em nenhum modelo político conhecido. Certa é a tendência dos povos de estarem de acordo com os profetas ou atentos às demonstrações dos sábios, na corrente da História. O «decisionismo» político terá sido o motor da mudança, mas, de certeza certa, continua, no seio de sociedades moderadas ainda que crispadas, constituindo factor de preocupação, de meditação.
Na segunda década do século XXI, a tese da «revolução permanente», defendida por Trotsky, para quem uma revolução nacional se assemelhava ao início de uma revolução generalizada, parece jogar à cabra cega com o estado das coisas, tal a inquietação, o vórtice angustiante que tomou a Europa - e o mundo na generalidade. A sociedade igualitária prometida pelo ideólogo, por implicar a dissolução do Estado, foi afastada para um futuro longínquo, até o comunismo necessitava de uma base económica pela construção de uma sociedade industrial, com a agricultura colectivizada e formação ideológica dos trabalhadores, para que correspondessem a esse tipo de sociedade. Deste modo, o Estado soviético acabou por fundamentar a sua ideologia de acção no patriotismo exacerbado - evidente na provação da guerra de 1939-1945, conflito que tornou possível o domínio dos partidos comunistas em países então ditos «satélites», Moscovo assumindo o projecto nacional antigo de ser a Terceira Roma do Ocidente.
Atentemos - a História fascina-me - nas palavras de Theophilus de Pskov, dirigidas no século XVI ao grão duque de Moscovo: «A Igreja da Velha Roma caiu por causa das suas heresias; os portões da Segunda Roma (Bizâncio) foram derrubados pelos machados dos infiéis turcos. Mas a Igreja de Moscovo, a Igreja da Nova Roma, brilha mais luminosa do que o sol em todo o Universo…Duas Romas caíram, mas a Terceira mantém-se firme. Não pode haver uma Quarta.» A morte de Stalin marcaria um período de instabilidade; Kruchtchev optaria pela «coexistência pacífica» - que ficou conhecida pelo espírito de Camp David, o lugar onde Eisenhower, em Setembro de 1959, em simultâneo afirmava a sua presença na ONU e nas capitais ocidentais. No interior, a partir do XX Congresso de 1956, Kruchtchev inicia uma política de liberalização cultural, descentraliza a gestão económica, anuncia a desburocratização.
Evitando expandir-me: regressar-se-ia, no país das estepes, aos velhos conceitos ocidentais do bem comum e do interesse geral, o Estado deixara de ser instrumento de uma classe para se tornar no «Estado do povo inteiro»; a substituição por Brejnev inauguraria uma época, a nova Constituição, aprovada pelo Soviete Supremo, em 7 de Outubro de 1977, aceitaria o novo conceito de Estado. Hoje - abreviando o enredo da História - continua ou voltou a ser um Estado do povo inteiro. Ainda em 1872, Marx, discursando em Amsterdão, afirmara: «Sabemos que temos de ter em conta as instituições, os usos e os costumes das diferentes regiões, e não negamos que há nações como a América, a Inglaterra, em que os trabalhadores podem conseguir os seus objectivos por meios pacíficos. Mas não é esse o caso em todas as nações.»
De facto, o Passado parece informar melhor do presente que a própria actualidade. Com Gramsci, a chamada de atenção para a autonomia e importância de superstruturas deslocaria o acento tónico das infra-estruturas económicas, numa nova estratégia. Creio útil destacar que os chefes comunistas ocidentais que se mantiveram na direcção activa dos partidos, desde Togliatti a Berlinguer na Itália, a Marchais na França, e a Santiago Carillo na Espanha, adoptaram conceitos gramcistas, acabando por renunciar aos dogmas da tomada violenta do Poder, oferecendo a alternativa das alianças possíveis, desde os católicos aos comunistas, na via parlamentar para o socialismo.
Em declarações sucessivas, os partidos comunistas italiano, espanhol e francês alinharam, em 1975, pela mesma orientação. No Ocidente, só o Partido Comunista Português - cujo XIX Congresso ocorreu há uma semana - se manteve verdadeiramente firme na linha leninista estalinista, adaptando-se às circunstâncias peculiares da Península.
Todo este deambular textual demonstra não haver uma cronologia na vida das ideias, antes flutuação na hegemonia das correntes. Passam gerações e, de súbito, avulta Platão, retornam Aristóteles, Santo Agostinho, demonstrando-se eficazes, presentes na unidade convergente da cultura onde pareciam desaparecidos. A teoria dos valores não ignora o ponto de arranque constituído pela crítica da economia de mercado. Entre os méritos reconhecidos na actual Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU (1948), e as declarações e comissões regionais (Europeia, 1950; Americana, 1948; Árabe, 1968, provavelmente obsoletas), está o essencial, representam uma tentativa de fazer convergir, no mesmo texto, tradições, correntes ideológicas, filosofias, que presidiram no passado a conflitos devastadores, e que arduamente procuraram acomodar-se a novas realidades, contribuindo para um sentimento de unidade do género humano. Trata-se sempre de uma necessidade de «salvação» a partir de uma «indigência».
O valor essencial do homem consiste em que, cada um é um fenómeno que não se repete, capaz de desenvolver um projecto de vida.
Tudo residiu, sempre, no problema de saber se a liberdade existe quando o homem não tem participação no poder do Estado, assim surgiu a revolução que está nas origens das Declarações dos Direitos do Homem. Admitindo que a evolução levou o Poder a mudar de mãos de cada homem para o Estado, a solução foi procurada em várias alternativas: pela interferência, directa ou indirecta, de todos no Poder (Espinosa, Locke, Montesquieu, Rousseau, Kant); pela interferência, directa ou indirecta, de apenas alguns estratos sociais no Poder (Aristóteles, Gobineau, Marx, Engels, Lenine); pela manutenção do Poder independente da interferência dos destinatários (Séneca, São Paulo, Maurras, Mussolini); pela destruição do Estado (Proudhon, Bakunine, Kreopotkine, Grave).
Recentemente, o chanceler Gerhard Shroder opinava, em entrevista televisiva, que a União Europeia deveria abrir-se à Turquia e à Rússia. Ainda que não de forma explícita, haverá consciência de que a perturbação actual poderá ser de certo modo diluída com a abertura a esses países - antes que a China assegure talvez para si vantagem, em relação a Moscovo.
Na Casa Comum Europa, se bem virmos, o Poder sofre, por um motivo ou outro, a influência de velhas filosofias incorporadas, determinados genes tentam sempre impor-se a outros de sinal contrário, numa espécie de eugenia fatalista, mas logo a razoabilidade impera: estamos, afinal, todos à deriva, sejamos solidários. E recordemos, foi-nos concedido o Nobel da Paz. Honremo-lo.
Portugal vive circunstâncias difíceis, calamitosas, o futuro, tenhamos esperança, conduzirá ao equilíbrio, num mundo forçosamente diferente daquele que conhecemos, que coabitámos. No entanto, a voz da experiência, manifestando-se, será escutada, assim acontece com Mário Soares, combativo, esperemos que por muito tempo ainda - acaba de vencer mais um ano de vida.
Bom ano de 2013.