Entre Livros       

Índice:

108 - ONDJAKI A secreta magia dos gritos azuis

107 - A COLINA DERRADEIRA

106 - UM PAÍS IMPREVISÍVEL

105 - POWER AFRICA

104 - DA OCIDENTAL PRAIA LUSITANA

103 - QUE AGORA JÁ NÃO QUERO NADA

102 - UM CONSENSO ABRANGENTE

101 - NEM FORMOSO NEM SEGURO

100 - AMERICA THE BEAUTIFUL

99 - UM PAÍS ENCANTADO

98 - CANÇÃO PARA AS CRIANÇAS MORTAS

97 - FILOSOFIA DA MISÉRIA

96 - OBAMA NA PRESIDÊNCIA

95 - NOBEL DA PAZ DISTINGUE UNIÃO EUROPEIA

94 - RESILIENCE

93 - ÓDIO

92 - TEAPLOT

91 - VIAGEM DOS AVENTUREIROS DE LISBOA

90 - FERNANDO PESSOA / PROSA DE ÁLVARO DE CAMPOS

89 - A FARSA DO INSTÁVEL

88 - FUNDAÇÂO JOSÉ SARAMAGO

87 - OBAMA ON THE ROAD

86 - O FUROR DA RAZÃO

85 - Geografia do Olhar

84 - ESTOICISMO COERCIVO

83 - O TRAMPOLIM DA LINGUAGEM

82 - NO PAÍS DAS UVAS

81 - ODE À ALEGRIA FUGITIVA

80 - A VIRTUDE DO AMOR

79 - ANGOLA - Metáfora do mundo que avança

78 - Clarabóia

77 - Indignados

78 - APRESENTAÇÃO DE "ORNATO CANTABILE" E "MAR SALGADO"

75 - 11 DE SETEMBRO, 2011

74 - OSLO

73 - Viver é preciso

72 - O grito da garça

71 - MORTE EM DIRECTO, NÃO!

70 - ALEA JACTA EST

69 - CONFRONTO - Porto 1966 - 1972 - Edições Afrontamento

68 - PARVOS NÃO, ANTES CRÉDULOS

67 - DA PERTINÊNCIA & DO ABSURDO

66 - MORTINHOS POR MORRER

65 - VENHA BISCOITO QUANTO PUDER!

64 - VERDADE E CONSENSO

63 - LEAKINGMANIA

62 - SESSÃO DE LANÇAMENTO NA LIVRARIA BUCHHOLZ

61 - UMA APAGADA E VIL TRISTEZA

60 - IMPLICAÇÕES ÉTICAS E POLÍTICAS

59 - NO DIA DE PORTUGAL

58 - FERREIRA GULLAR- PRÉMIO CAMÕES 2010

57 - BENTO XVI - PALAVRAS DE DIAMANTE

56 - O 1º DE MAIO / LABOR DAY

55 - BULLYING E KICKING

54 - O AMOR EM TEMPO DE CRISE

53 - FÁBULAS E FANTASIAS

52 - THE GRAPES OF WISDOM

51 - Do Acaso e da Necessidade

50 - deuses e demónios

49 - CAIM ? o exegeta de Deus

48 - Os lugares do lume

47 - VERTIGEM OU A INTELIGÊNCIA DO DESEJO

46 - LEITE DERRAMADO

45 - Casa de Serralves - O elogio da ousadia

44 - FASCÍNIOS

43 - DA AVENTURA DO SABER , EM ÓSCAR LOPES

42 - TOGETHERNESS - Todos os caminhos levaram a Washington, DC

41 - Entrevista da Prof. Doutora Ana Maria Gottardi

40 - ?I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil?

39 - FILOMENA CABRAL, UMA VOZ CONTEMPORÂNEA

38 - EUROPA - ALEGRO PRODIGIOSO

37 - FEDERICO GARCÍA LORCA

36 - O PORTO CULTO

35 - IBSEN ? Pelo TEP

34 - SUR LES TOITS DE PARIS

33 - UM DESESPERO MORTAL

32 - OS DA MINHA RUA

31 - ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS

30 - MEDITAÇÕES METAPOETICAS

29 - AMÊNDOAS, DOCES, VENENOS

28 - NO DIA MUNDIAL DA POESIA

27 - METÁFORA EM CONTINUO

26 - ÁLVARO CUNHAL ? OBRAS ESCOLHIDAS

25 - COLÓQUIO INTERNACIONAL. - A "EXCLUSÃO"

24 - As Palavras e os Dias

23 - OS GRANDES PORTUGUESES

22 - EXPRESSÕES DO CORPO

21 - O LEGADO DE MNEMOSINA

20 - Aqui se refere CONTOS DA IMAGEM

19 - FLAUSINO TORRES ? Um Intelectual Antifascista

18 - A fidelidade do retrato

17 - Uma Leitura da Tradição

16 - Faz- te à Vida

15 - DE RIOS VELHOS E GUERRILHEIROS

14 - Cicerones de Universos, os Portugueses

13 - Agora que Falamos de Morrer

12 - A Última Campanha

11 - 0 simbolismo da água

10 - A Ronda da Noite

09 - MANDELA ? O Retrato Autorizado

08 - As Pequenas Memórias

07 - Uma verdade inconveniente

06 - Ruralidade e memória

05 - Bibliomania

04 - Poemas do Calendário

03 - Apelos

02 - Jardim Lusíada

01 - Um Teatro de Papel


Entendo que todo o jornalismo tem de ser cultural, pois implicauma cultura cívica, a qual não evita que, na compulsão, quantas vezesda actualidade, se esqueçam as diferenças.

No jornalismo decididamente voltado para a área cultural, todosos acontecimentos são pseudoeventos, cruzando- se formas discursivasem que as micropráticas têm espaço de discussão.

Não sendo um género, o jornalismo cultural é contudo uma práticajornalística, havendo temas que podem ser focados numa perspectivacultural especifica ou informativa, numa área não suficientementerígida, embora de contornos definidos.

Assim o tenho vindo a praticar ao longo dos anos, quer na comunicação social quer, a partir de agora, neste espaço a convite da 'Unicepe'.

Leça da Palmeira, 23 de Setembro de 2006

        9 de novembro de 2013


ONDJAKI

A secreta magia dos gritos azuis

Por Filomena Cabral



Fiel à memória dos afectos, desenvolve o jovem autor angolano estórias de espanto e exemplo, recorrendo à ironia, a uma estética do riso, carnavalização bakhetiniana, “a palavra é uma ponte entre mim e o outro”. Pela articulação do tempo, Ondjaki materializa a narrativa e incorpora a História do seu país - a literatura é o modo de discurso político por excelência, no interior do modelo retórico -, convocando episódios e acontecimentos “distorcidos”, o próprio o refere, e só desse modo acede, enquanto autor/narrador, ao registo autobiográfico: sabe que “os dias mágicos passam depressa, deixando marcas profundas na nossa memória”, pelo que as narrativas continuam a corresponder, por intensas e não situadas num mundo atemporal, às intenções de um novo realismo social, nos anos 80/90, em Angola.

Com “Os da Minha Rua”, afirmou-se e integra o grupo de escritores africanos relevantes de língua portuguesa. Procede Ondjaki a um registo polifónico sedutor, em que o risível remete quase sempre para o concreto das coisas, para a amarga realidade da guerra civil angolana, vários os desenvolvimentos, a memória em expansão. A dissonância no tempo, o sentimento de si conduzem ao inevitável registo subjectivo em que o amor e a literatura - a criação – constituem os pilares da existência e do texto, através dos quais o Autor pretende sublimar o imaginário, pela simulação de um itinerário lógico temporal, imprimindo-lhe, com mestria, vários andamentos.

Relendo “A Avó Dezanove e o Segredo do Soviético” (1), a narrativa desenvolvendo-se em catadupa de acontecimentos, diálogos, onde se misturam idiomas, se bem que, em grande parte, eivados de corruptelas, adaptações, sempre servida pela imaginação, pelo viver dos “da sua rua”, vão surgindo novas personagens surpreendentes. EspumadoMar - assim grafado -, o excêntrico, afirma haver dois céus, o dos passarinhos e dos aviões Mig e um outro negro e tão grande como o deserto; a avó Agnette, Nhé, já nossa conhecida - em breve AvóDezanove -, no quintal da casa, na Praia do Bispo, rega com a pouca água disponível a goiabeira e a figueira, vasos com flores, as escadas. Ao lanche, comeriam meia fatia de pão, meia banana, beberiam um copo de água: a ironia, qual gume, retira à observação do mundo pelo narrador/criança, qualquer traço que possa comprometer, no decurso da existência, a evocação de um passado idealizado, quotidiano sob a rotina do poder, da guerra: na relação com a ideologia - o despotismo iluminado -, o escritor é o autêntico oponente ao poder, vê nele, sempre, um adversário, ainda que transitório. Dali a pouco, depois das cinco, chegaria o camião distribuidor de água dos soviéticos, para acalmar a poeira das ruas.

Acredito que haja muito a esperar de Ondjaki - oxalá as circunstâncias se mantenham propícias -, em cujos textos se relaciona a consciência individual com a interacção social; seduzido pela experimentação das formas, a língua portuguesa constitui, para além do enredo, a grande preocupação; crianças e adultos, admoestados, corrigem-se entre si, quando mal articuladas as frases. Desculpavam no entanto Botardov, o soviético (“bótard”, saudava, a qualquer hora do dia); por ter “a casa no tão-longe, poderia dizer o que quisesse e como conseguisse exprimir-se”. Diante da “pele bem enorme do mar”, as gargalhadas das crianças misturavam-se ao palrar dos papagaios azuis: “Um só povo, uma só nação”. E seguia-se um chorrilho de impropérios.

A partir de determinada altura, considerado motivo a mencionar mais adiante, os moradores do bairro antigo, rente ao mar, tornam-se apreensivos. Por então, observam os miúdos a obra do Memorial a Agostinho Neto, comparam-no a um foguetão, ouvem-se comentários jocosos de Pinduca, Pi, a quem EspumadoMar, que “estudara matemática em Cuba até ficar maluco”, explica ser igual a 3,14; Charlita – personagem de “Os da Minha Rua” - continua a usar óculos grossos, os mesmos para cinco irmãs; a outra Avó, Catarina, presente/ausente da vida ou da morte, sempre a fechar as janelas, faz proliferar sentenças ambíguas. «Não assustes os miúdos, Catarina!», pedia a AvóNhé - a grande referência, no mundo afectivo do autor; e ameaçava ir para o frio, para a terra de Bilhardov/Botardov, sem que a levassem a sério: os soviéticos, de farda azul-escura, sempre enroupados apesar do calor, eram objecto de troça e simpatia; constante a impostura da vida: «Uno debe partir cuando no es bien-venido… Ahahah!», sentenciava ainda Espuma, no seu dizer cubano.

Certo diagnóstico sobressaltara os familiares: Agnette teria de amputar um dedo do pé; restar-lhe-iam dezanove; e assim aprendiam a aceitar o inevitável. Perturbante, fora o rumor de que o bairro seria dinamitado, dando vez a urbanização moderna, o narrador/personagem, apreensivo, propendia para actividade futura, a da escrita, cativante e hábil. Adquirira, entretanto, consistência, determinada resolução do grupo de crianças politizadas, desde o ventre das mães, prenhes de palavras de ordem num país independente, que ia optando pelo socialismo democrático.

A carga de dinamite, guardada nos barracões da obra do mausoléu, torna-se obsessão, teriam de fazê-la explodir, para que não destruíssem as suas casas, as memórias dos da rua, as próprias, no devir; circulara a notícia de um bairro social aguardando-os, arredado dali. “Se falam nele, existe”. “E a paz existe? Toda a hora falam nela e ainda não existe”; e assim se alicerçava futura “farsa” textual e política, também de Ondjaki, qual poética paralela: os acontecimentos agregam-se em cadeia, a voz narradora, desenvolta, relaciona acontecimentos, simples anseios ou medos, com estados psíquicos subjectivos “presentes”, relatando situações histórico sociais, observadas ou experimentadas por grupos concretos de indivíduos. Enquanto documentos líricos, os textos do jovem e já reconhecido escritor angolano captam a simpatia do leitor, para a problemática das personagens em geral e do próprio, é sempre mediador na acção, empenhado na dor de crescer (ao longo dos textos), transmitindo-nos as suas provações ou perplexidades de modo emocional, “as palavras têm encanto de magia e forças do invisível”.

O grupo continuara a perseguir Espuma, num misto de medo e fascínio, fazia a síntese da inquietação, qual oráculo. “El futuro está más cerca que el pasado …”- gritava. O Autor, anos depois, “reunindo vozes”, em diferente contexto, discorre sobre a cidade natal, Luanda: “Cresceu no seu caos de tempo moderno. O antigamente continua sendo importante e belo em seus labirintos coloridos”. Sim, tinham feito explodir a dinamite, com a cumplicidade de Botardov, “o mundo está cheio de segredos”. Na noite iluminada por “estrelas de fogo, lindas, para não mais esquecer”, aves canoras aprisionadas, libertas do cativeiro, do mausoléu, rasgavam o ar. As crianças, tentando imitá-las, mergulhavam no mar que sabiam azul, inventavam secreta magia, os gritos dos homens não diferem dos gritos dos pássaros.

Ondjaki, no encalço das grandes figuras da literatura angolana, tem voz própria e contribui, decididamente, para que a Língua Portuguesa refulja no mundo.

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A propósito:

«Quando fizer quarenta anos de publicação, poderei então falar de mim enquanto escritor, até lá …» Ondjaki, descontraído, exibindo simplicidade, emoldurado o rosto límpido pela boina, os pés bem assentes no chão, proporcionava imagem da sua estatura humana: pressente os livros que há-de escrever, a dimensão que poderá atingir. Todavia, o que me leva a editar de novo o texto já publicado em «Os Meus Livros», creio que em 2008, foi um pequeno fragmento de entrevista do Autor, não recordo em que canal televisivo, em que se me deparou o jovem escritor, em atitude descontraída de quem se movimenta por dentro de si com fidelidade ao si mesmo e ao mundo. Tendo a entrevistadora mencionado os doze anos de actividade da escrita, o jovem escritor angolano já uma certeza na Literatura, demonstrou a sabedoria que o espaço imenso africano, obrigando a relativizar a grandeza ou a distância, até o tempo, proporciona; ir-se-ia descobrindo livro a livro, respondeu, dizendo-se «feliz numa terra onde todos falavam com todos - aspecto que privilegia -, sem barreiras partidárias ou outras, Luanda era una e múltipla, inesgotável enquanto tema». Terminaria comentando: «Quando tiver quarenta anos de escrita, então direi eu sou: não há certezas sobre o não concretizado». Optara, instintivamente, pela sabedoria implícita nos textos sedutores que já publicou, em poesia e prosa, quase temi me desiludisse em atitudes arrogantes – a exemplo de outros. Ainda não foi desta, e estou-lhe grata, torna-se-me difícil, depois de tantos textos lidos e escritos, manter, sem recear o desapontamento, olhar afável em relação a uma criatura disposta a correr o risco de trabalhar a escrita até esgotar-se quase, para dizer então: «Eu sou!» Por inesperado, emocionou-me.

(O longo parágrafo acima foi acrescentado ao texto há dois anos, creio. Fui adiando a sua inclusão em «Entre Livros», por ter já aqui publicado um outro texto sobre a sua Obra, em 2007)

Que os gritos azuis da sua terra mágica, e em simultâneo concreta, o incitem na voracidade da escrita. Daqui lhe envio, Ondjaki, felicitações pelo Prémio Saramago, emocionada, acredite, poucas coisas me dariam tamanha alegria. Até breve, num outro livro. Abraço fraterno desta sua admiradora.

Em 6 de Novembro de 2013.