Agora seria a altura de recomeçar, ainda que receando não terminar - sempre se duvida –, o tempo decide do tempo. Todavia, o facto de recear não terminar não seria motivo para não recomeçar, só a incerteza do modo poderia inibir a decisão de recomeço. Enveredar por um novo ciclo que pudesse equivaler a quinze anos de inquietude, qual «ciclo Americano», não me parece sensato: parafraseando Bernardim Ribeiro, «estando o rouxinol no maior canto, caiu o rouxinol morto sobre aquela água que o levou tão azinha…»
A mágoa motivada nisto, a par de outras ocasionadas em desastres pessoais e colectivos, levar-me-ia - assim com Bernardim - «donde eu já não poderia tornar»; a menina moça de Bernardim foi para o vale «aguardar a sua derradeira hora», não a da morte, a da redenção, a qual, eu mesmo, pelo exercício da dor, pela escrita dos próprios livros e no traçado da vida, mágoa a preparar-se sempre longe de mim e no mundo - os seres não mudam nunca -vim realizando.
Neste momento aprazível - terminado um longo ciclo historiográfico -, a meu lado ilustre historiador, Fernando Rosas, a quem agradeço, com veemência, esta e anteriores presenças, por «Oklahoma Blue» e «Os Pavões de Gori»: palavras incentivadoras motivaram perseverança, alguma teimosia reivindicativa, mantive o sentido de responsabilidade para que estivéssemos todos aqui, por «Comédia dos Vivos e dos Mortos – Corvos e Jacarandás», sendo fiel, afinal, ao prometido a Óscar Lopes, há décadas; acredito que o não tenha decepcionado, seres de excepção como ele não desaparecem, permanecem no coração do mundo, é ainda estímulo, pelo compromisso. Aproximou de Bernardim o meu primeiro romance, «Tarde de mais Mariana». Pelo seu lado, Agustina Bessa - Luís chamou-me rouxinol… por retirar ao tempo o seu significado. Sempre lhes fui grata.
Atenta aos acontecimentos, à História - em muitos casos mero indício - desde os anos sessenta, no começo da guerra colonial porque assim teria de ser, ia inscrevendo talvez com perspicácia para uso futuro, transfigurando, a cada vez mais descaracterizada África, a própria Angola, tão diferente da de outrora: a decadência e o ruir das europas fora da Europa, no continente fascinante e complexo, a inquietação das gentes, em estado de emergência, pela positiva ou pela negativa. Se para uns o sonho terminara, para outros chegava do horizonte longínquo.
Se o menciono não é por saudosismo, eu abdiquei de tudo. Angola e Brasil são um roteiro da alma e da experiência portuguesa; também da americana me ocupei por décadas, as mais profícuas da minha vida, motivo pelo qual não será viável idêntica produção por um jovem ou menos jovem escritor, acedendo ao devaneio por imodéstia ou sincero querer, tentando retirar estímulo do tempo que não viveu, descascar fruto que amargou, embrenhando-se em situações que ocorreram no meu tempo activo e no daqueles, poucos, que hoje constituem a guarda avançada - todos temos o nosso o lugar -, não por sermos especiais: o tempo moldou-nos, fez de nós o que pudemos.
Conheço bem a realidade portuguesa, o capricho do galope para a fama, alguns com um cardo sob a albarda, a montada célere: manter-se-ia no mesmo lugar, não fosse a causa afinal gratuita, até brejeira; fazem-se reputações de qualquer modo.
Isto é cruel, sem dúvida, todavia ganhei o direito da não complacência, nem comigo o fui, jamais.
Cruel, do mesmo modo, o que vivemos, enquanto portugueses, confrontam-se a soberania popular e a soberania nacional, sabemos que esta terá de salvaguardar a primeira da progressiva assimilação pela comunidade europeia, desautorizando um povo orgulhoso. Desvie-se o fulcro da questão de malquerenças internas: o centro do tornado é longe de Lisboa, apesar de enredados nos seus efeitos, de que não podemos defender-nos, meramente, pela imposição de vontade tenaz. Não há fúria que nos valha, só persistência. As sereias regressaram ao mito em que nos enredaram.
A literatura, longe de ser um recalcamento do político, está condenada a ser forma de discurso político no interior de um modelo retórico, pelo que poderá ser considerada a linguagem como um todo, em que o saber é uma unidade fundamental obrigando a um horizonte de totalidade, enquanto necessidade. Chegamos assim, creio, à sublimação do contingente no universal, remetendo, inevitavelmente, para a História sempre a fazer-se.
Perdido o sentido de responsabilidade, o presente desvincula-se, cada vez mais, da relação com o tempo, talvez pela ausência de fundamento para pôr em prática a nostalgia de experimentar: de abismo em abismo, indaga a origem inatingível, a negatividade absoluta implica um horizonte de verdade, horizonte perdido, que apenas se apresenta como ausência. Por inseparável, quase sempre, da denegação, a ausência leva a pontos de fuga: nessa construção poderia dar-se a metamorfose, pela sujeição a um sistema de oposições, pela aberração de tentar encontrar no presente, exigindo, a antecipação do futuro desejável que, presumimos, é irreconhecível; o futuro absoluto não é da ordem do garantido nem do calculável.
Quando se inicia um projecto literário ou político, intentando nele encontrar um sentido para a vida ou para a comunidade, é inevitável um jogo de dissemelhanças. A diferenciação das vozes - sempre a mudar - põe em discurso forças desconhecidas, pelo que o dizer se torna pulsação do acontecimento ou inquietação das formas, um movimento em que a deformação assinala a proliferação de tonalidades, uma ferida profunda traçada pelo conflito da desmistificação, enquanto denúncia de toda a ilusão de continuidade, da sedução exercida pelo sujeito do enunciado - aquele que diz «eu» -, tarefa de alguns, seja um poeta ou um político, sobretudo se o emitido parece encontrar-se: o político, quando refém de um enunciado idealista, apedreja-se, do mesmo modo um corvo, o poeta que racionalize.
E, no entanto, «nada, seja acto, palavra, pensamento ou texto, acontece em relação positiva ou negativa com algo que o preceda, siga ou exista, em qualquer outra parte, mas apenas como evento fortuito, cujo poder é devido à contingência do seu ocorrer». Não há passagens, armadilhas, que tornem síncronas a ruptura e a continuidade. Apenas a manifestação da ilusão, susceptível de ocorrer com a análise séria, procederá a inevitável «recuperação estética e histórica». Nenhum grau de conhecimento conseguirá, no entanto, impedir a impetuosidade das palavras, seja em que área for.
Qualquer texto simulará remeter a filosofia para o domínio do ideológico, por processos díspares que incluem tanto a argumentação como as associações inesperadas, desde logo indissociável de um modelo em que o pensamento do mundo, como sistema de relações, se verifica na conjugação da descrição do estado das coisas, pela afinidade necessária com o actual, constituído este pela eternidade do infinitamente possível e pela efemeridade das formas, a mudança histórica como condição da vida, ou da realidade. E nisto estamos:
em períodos críticos da história, a sátira é inevitável, pela ânsia frustrada de elevação, outrora e agora. «Quem caminha pelo tempo somos nós».
Se o progresso é regresso, poderemos ceder à angústia ou ao desejo irracional de moldar o mundo ao nosso pensamento, e, pela repetição, o eterno retorno: depois de uma fase de apogeu, a decadência conducente à ausência de valores, logo à necessidade de o homem se transformar a si próprio. Mas poucos persistem nesse desejo de aperfeiçoamento: a vida incerta, conflituosa, valoriza o debate, invade a literatura, esta apelando, quando apela, ao bom senso, à responsabilidade.
E voltando ao rouxinol mencionado no início, não meu, mas de Bernardim: «estando assim no melhor canto, caiu morto sobre aquela água que o levou tão azinha que o não podia eu ir tomar. Tamanha mágoa me cresceu disto (…) que as mesmas águas me levaram donde me eu também não podia já tornar». Determinado penedo - apesar de tudo - parecia querer impedir o canto do ribeiro, entravar a água de prosseguir o seu caminho, «como as minhas desventuras noutro tempo soíam fazer a tudo o que mais queria», que agora não quero nada – conclui.
«Gastei o meu tempo naquilo para que mo deram» - continuando paráfrase -, enquanto forma de encontrar um sentido para a vida. «Mas as águas do mar nunca estão quedas… e até de terra se muda, com as andanças dele», conclui Bernardim.
Doutor Fernando Rosas: jamais encontrarei modo de expressar-lhe o meu reconhecimento.
Agradeço à Babel, na pessoa do seu presidente, Dr. Paulo Teixeira Pinto, a edição cuidada, num tempo de canseira e alvoroço. Todavia, a dificuldade leva à valorização do feito - assim outrora, em todas as terras achadas; e perseveraremos, enquanto gente das Letras, na valorização da sociedade portuguesa. A Literatura é responsabilidade de cada um.
Muito obrigado pela vossa presença.
Em 07.05.2013, na Biblioteca Nacional de Portugal.
Filomena Cabral