«Mais de 200 anos depois de uma Colónia ter ganho o direito à
autonomia, o nosso país avança porque cada um de vós irá
perseguir os seus sonhos.»

Discurso da vitória, no Centro de Convenções de Chicago

Terminada uma das eleições mais disputadas nos Estados Unidos da América, uma vez ainda a arbitrariedade foi vencida, e quando tal acontece o mundo parece-nos melhor, mais justo, embora continue problemático. Afinal, a credibilidade não se compra e as convicções do Presidente reeleito, firme na mensagem - no propósito, creio, de influenciar uma Europa social, contribuindo para nova abordagem do problema da austeridade -, acabariam por reconduzi-lo no cargo.

O espectáculo, com audiência global, proporcionado pela corrida eleitoralista, findava, espectáculo com trama e suspense, dado que, feita a contagem dos votos, Mitt Romney parecia recusar a evidência: incorporada, com antecipação, a figura presidencial, foi-lhe doloroso abandoná-la, o que se compreende, embora se rejeite o laivo prepotente do candidato. Acabaria por felicitar o seu Presidente - apesar de ter escrito o discurso da vitória -, agradecendo a toda a equipa, aos que haviam ajudado a levantar os fundos (exorbitantes) necessários. «O País está num ponto crítico e não podemos entrar em contradições partidárias, tanto republicanos como democratas devem colocar as pessoas à frente da Política.» Assim se cumpra.

Multidão fremente de entusiasmo antecipara a vitória dos democratas, milhares de pessoas ocupavam o Centro de Convenções de Chicago, ainda no clima emocional que se arrastara por longas semanas. Reiniciar-se-ia ali, pela simbólica, novo mandato. Pela espera longa, explodira em delírio, ao escutar o discurso presidencial: comparecia Barack Obama, recuperavam-se momentos de uma outra madrugada inolvidável, em que o mundo, incrédulo, aderira, com entusiasmo, a um novo ciclo presidencial nos Estados Unidos da América, país ainda a tentar refazer-se de traumas, destacando-se, na actualidade, a fúria da natureza devastadora. Para homens e mulheres de etnia, crença, origem, nível económico distintos, suspensos das palavras do Presidente reeleito, a América reduzira-se, por instantes, àquele lugar, os dissabores da História e da natureza eram afastados, a voz inconfundível remetia-os, uma vez ainda, à esperança:

«Mais de 200 anos depois de uma Colónia ter ganho o direito à autonomia, o nosso país avança por vossa causa, crença, porque cada um de vós irá perseguir os seus sonhos! Nesta noite, vós, o Povo, recordastes como o caminho foi longo para os Estados Unidos, o melhor está ainda para acontecer, e agradeço a cada americano.»

Endereçados cumprimentos a Mitt Romney, pontua contar com ele para melhorar a América. Agradece a Joe Biden, à equipa de voluntários, os melhores de sempre - diz -, alguns novos, outros consigo há muito: o que haviam conseguido juntos terá sempre o agradecimento do seu Presidente, era ali graças ao seu empenho.

E não deixa escapar a oportunidade, declara que «as campanhas políticas, dando terreno aos cínicos, proporcionam a exibição de egos: numa democracia de 300 milhões, são intensas e levam à discussão do sentido da realidade americana. Apesar das diferenças, a maioria partilha o desejo de um País onde os nossos filhos cresçam, não enfraquecido pelas desigualdades ou pelos problemas do aquecimento global.»

«Acreditamos numa América tolerante - enfatiza -, nos sonhos dos jovens, tal avanço não se faz em linha recta, teremos de resolver os desafios que temos pela frente».

E prossegue, destacando que o País votara pela mudança, que as apostas do futuro seriam enfrentadas e resolvidas em conjunto: «O vosso trabalho não terminou com a eleição (...), somos a nação mais multicultural do mundo. O Amor e o patriotismo são o que fazem grande a América: todos puseram de lado as suas preocupações para se voltarem para a desgraça comum».

Aproximando-se do final, declara: «A América quer ser um país radioso (...), não me refiro ao optimismo cego nem ao idealismo que marginaliza: a esperança é a teimosia que nos leva a acreditar, e eu acredito manter a promessa dos nossos fundadores. Não interessa de onde viemos! Na América, se tentarmos, podemos conseguir, não estamos tão divididos como os políticos dizem: somos - mais que um conjunto de estados azuis e encarnados - uma Nação».

Cientes da investida da natureza - havia escassos dias -, da perda de vidas e bens, lugares, fora admirável o espírito de sacrifício dos americanos na campanha eleitoral, do mesmo modo o facto de, apesar do atordoamento pela catástrofe, tantos deles, não terem possibilitado espaço de manobra aos avatares do descontentamento aguardando, há quatro anos, altura propícia para voltarem à carga, atitude que revela saúde democrática, note-se; destaquemos, sobretudo, o capital de apreço e entusiasmo pelo Presidente Barack Obama.

No cenário político, a grande dúvida, o dilema terá sido a escolha entre uma política de reconciliação com os republicanos, o mesmo com o seu partido, ou enveredar pela confrontação, para que a sua agenda se concretizasse. Para já, o confronto directo com os republicanos foi evitado, até porque o resultado republicano foi digno. Tal como no primeiro mandato, terá de ouvir os adversários políticos. E na agenda do Presidente reeleito, até à tomada de posse, a pirâmide fiscal terá de ser negociada, tanto com democratas como com republicanos - especula-se.

Em determinado passo do discurso, evoco alusão irónica aos sinais do desgaste pela governação e campanha eleitoral, na sua pessoa - um guerreiro sem estigmas seria ridicularizado, na terra de seu pai. Ainda que perdidas ilusões, persiste todavia o compromisso, o povo americano continuará a acreditar nele, a reverenciar os fundadores da maior democracia do mundo. Rejubila, do mesmo modo, o Ocidente, tem, uma vez ainda, em Barack Obama, o Presidente que mais o entusiasmou, desde Kennedy.

Em Comunidade de sonhos, poderemos persistir na esperança, enquanto necessidade primordial; pelo carácter da conjuntura, todo o conflito, hoje, é potencialmente mundial, criando-se tensões arriscadas. Num clima de paz instável, a competição comercial e a guerra monetária são expressões de recusa de acomodamento a interesses da comunidade mundial. A competição militar directa cede perante a estratégia indirecta, animada pela mística do desenvolvimento, enquanto se vão multiplicando centros de decisão públicos e privados. No entanto, o princípio da convergência - apelemos à sensatez - levaria a um só povo no planeta, pelo que parece impraticável.

O excesso dos blocos noticiosos, durante a campanha eleitoral, motivou, nos mais atentos, cansaço estimulante: numa época em que a imagem é eficaz no processo político, em resultado do alto poder condicionante dos media, a falta de apego à veracidade dos factos nos relatos informativos - seja onde for - pode alimentar a opinião corrente e conduzir a decisões de pleitos editoriais. A identidade política autónoma da Europa - motivo de interesse de várias presidências americanas, afinal com ascendentes na mesma Europa - tem por base um escrito de Adam Smith, de 1776, com a independência dos Estados Unidos da América. Amigo de D'Alembert, Helvatius, Rochefoucauld, entre outros, procurou demonstrar que o Ocidente governava o mundo e tinha a sua sede geográfica na Europa, sede de governos em expansão que aparecia «como um grande país», identificado pela função e pelo comportamento. Tratava-se de definir uma agressão que haveria de fundamentar «o direito à revolta» proclamado pelas treze colónias. Ninguém o expressaria melhor que Thomas Jefferson, a Europa passara a ser tratada na terceira pessoa. Mas, para além da teoria política, ali continuaram a herança da matriz originária, nas instituições privadas, na família, na propriedade, nos costumes. O Ocidente em que se encontra a Europa ainda é associado, do exterior, com o mundo que durante séculos subordinou, de etnia branca, agressor e rico, quando a vocação do mundo se desviou de nós, europeus, depois de 1945: as elites tinham sido eliminadas, a Europa foi-se esvaziando de poder, ausente das grandes decisões mundiais, para além de que sempre houve mais que uma Europa na Europa, que agora parece expandir-se pela Euro-Ásia.

A tradição europeia é, de facto, a diversidade, estabelecida empatia imediata com os Estados Unidos da América. Também ali o idealismo vence, quando vence, o despotismo: da raiz às folhas, a árvore original - ai de nós, ou por nosso bem - mantém-se.

Por agora, resta-nos aguardar a cerimónia da reeleição, em 15 de Janeiro, data de nascimento de Martin Luther King. Se este marcou o século XX, Barack Obama é figura indelével do século XXI, na História dos Estados Unidos. Permanecem, na memória de todos, imagens da sua tomada de posse: por um dia, Washington foi o centro do orbe, todos fomos americanos, a estima pelo país de Barack Obama recrudescera consigo.

Por admirarmos a pertinácia - repudiando do mesmo modo o autoritarismo -, enquanto europeus vibrámos com a sua reeleição, embora voguemos num pragmatismo oscilante entre a resignação e o desconsolo.