Entre Livros       

Índice:

78 - APRESENTAÇÃO DE "ORNATO CANTABILE" E "MAR SALGADO"

75 - 11 DE SETEMBRO, 2011

74 - OSLO

73 - Viver é preciso

72 - O grito da garça

71 - MORTE EM DIRECTO, NÃO!

70 - ALEA JACTA EST

69 - CONFRONTO - Porto 1966 - 1972 - Edições Afrontamento

68 - PARVOS NÃO, ANTES CRÉDULOS

67 - DA PERTINÊNCIA & DO ABSURDO

66 - MORTINHOS POR MORRER

65 - VENHA BISCOITO QUANTO PUDER!

64 - VERDADE E CONSENSO

63 - LEAKINGMANIA

62 - SESSÃO DE LANÇAMENTO NA LIVRARIA BUCHHOLZ

61 - UMA APAGADA E VIL TRISTEZA

60 - IMPLICAÇÕES ÉTICAS E POLÍTICAS

59 - NO DIA DE PORTUGAL

58 - FERREIRA GULLAR- PRÉMIO CAMÕES 2010

57 - BENTO XVI - PALAVRAS DE DIAMANTE

56 - O 1º DE MAIO / LABOR DAY

55 - BULLYING E KICKING

54 - O AMOR EM TEMPO DE CRISE

53 - FÁBULAS E FANTASIAS

52 - THE GRAPES OF WISDOM

51 - Do Acaso e da Necessidade

50 - deuses e demónios

49 - CAIM ? o exegeta de Deus

48 - Os lugares do lume

47 - VERTIGEM OU A INTELIGÊNCIA DO DESEJO

46 - LEITE DERRAMADO

45 - Casa de Serralves - O elogio da ousadia

44 - FASCÍNIOS

43 - DA AVENTURA DO SABER , EM ÓSCAR LOPES

42 - TOGETHERNESS - Todos os caminhos levaram a Washington, DC

41 - Entrevista da Prof. Doutora Ana Maria Gottardi

40 - ?I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil?

39 - FILOMENA CABRAL, UMA VOZ CONTEMPORÂNEA

38 - EUROPA - ALEGRO PRODIGIOSO

37 - FEDERICO GARCÍA LORCA

36 - O PORTO CULTO

35 - IBSEN ? Pelo TEP

34 - SUR LES TOITS DE PARIS

33 - UM DESESPERO MORTAL

32 - OS DA MINHA RUA

31 - ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS

30 - MEDITAÇÕES METAPOETICAS

29 - AMÊNDOAS, DOCES, VENENOS

28 - NO DIA MUNDIAL DA POESIA

27 - METÁFORA EM CONTINUO

26 - ÁLVARO CUNHAL ? OBRAS ESCOLHIDAS

25 - COLÓQUIO INTERNACIONAL. - A "EXCLUSÃO"

24 - As Palavras e os Dias

23 - OS GRANDES PORTUGUESES

22 - EXPRESSÕES DO CORPO

21 - O LEGADO DE MNEMOSINA

20 - Aqui se refere CONTOS DA IMAGEM

19 - FLAUSINO TORRES ? Um Intelectual Antifascista

18 - A fidelidade do retrato

17 - Uma Leitura da Tradição

16 - Faz- te à Vida

15 - DE RIOS VELHOS E GUERRILHEIROS

14 - Cicerones de Universos, os Portugueses

13 - Agora que Falamos de Morrer

12 - A Última Campanha

11 - 0 simbolismo da água

10 - A Ronda da Noite

09 - MANDELA ? O Retrato Autorizado

08 - As Pequenas Memórias

07 - Uma verdade inconveniente

06 - Ruralidade e memória

05 - Bibliomania

04 - Poemas do Calendário

03 - Apelos

02 - Jardim Lusíada

01 - Um Teatro de Papel


Entendo que todo o jornalismo tem de ser cultural, pois implicauma cultura cívica, a qual não evita que, na compulsão, quantas vezesda actualidade, se esqueçam as diferenças.

No jornalismo decididamente voltado para a área cultural, todosos acontecimentos são pseudoeventos, cruzando- se formas discursivasem que as micropráticas têm espaço de discussão.

Não sendo um género, o jornalismo cultural é contudo uma práticajornalística, havendo temas que podem ser focados numa perspectivacultural especifica ou informativa, numa área não suficientementerígida, embora de contornos definidos.

Assim o tenho vindo a praticar ao longo dos anos, quer na comunicação social quer, a partir de agora, neste espaço a convite da 'Unicepe'.

Leça da Palmeira, 23 de Setembro de 2006

       
Completaram-se 5 anos de colaboração regular de Filomena Cabral na página da UNICEPE.

Chamamos a atenção para a efeméride e para o facto de ter demonstrado que não há temas ou situações da actualidade, ou outros, que não possam ser abordados com seriedade e isenção.

Destaque-se que desde setembro de 2006, data de início da rubrica «Entre Livros», a Autora publicou mais 5 obras: «A Noite Transfigurada», 2006; «Ornato Cantabile» , 2007; «Vertigem», 2009; «Ardor Selvagem» e «Os Pavões de Gori», ambos em 2010. Com cerca de 30 títulos publicados, terminou há semanas mais um romance, «Comédia dos Vivos e dos Mortos», e ultima uma peça de teatro.

Trazemos hoje ao conhecimento dos nossos leitores os textos de apresentação de dois dos seus romances historiográficos, «Mar Salgado», 2002, e do já mencionado «Ornato Cantabile», respectivamente pelos historiadores, Prof. Doutores António Pedro Vicente (UL) e Francisco Ribeiro da Silva (UP).

A Filomena Cabral apresentamos os agradecimentos da UNICEPE.

A direção,

Porto, 2011-10-08

(Lembramos que temos à venda todos os seus livros ainda não esgotados)


8 DE OUTUBRO, 2011




FILOMENA CABRAL, ORNATO CANTABILE.

Sessão de apresentação do livro pelo Prof. Doutor FRANCISCO RIBEIRO DA SILVA (UP), na Livraria Books & Living, em 27.2.2008, na cidade do Porto.





Saudando os presentes, agradeço o convite, com prazer aceitei estar presente neste acto. O que se pede ao apresentador de uma obra? Que sublinhe e destaque alguns aspectos, figuras ou cenas que, na sua perspectiva, mereçam referência e devam suscitar a curiosidade do ouvinte e que, eventualmente, lhe desperte interesse em conhecer a obra mais de perto. Não certamente substituir-se ao leitor ou dispensar o potencial leitor do prazer (que também é trabalho) de a ler.

O que é este livro, «Ornato Cantabile»?

Como a autora declara, trata-se de uma narrativa historiográfica de carácter epopeico em que a expansão portuguesa dos sécs. XV e XVI é o fio condutor da mesma narrativa, mas onde se misturam o real, o maravilhoso, a lenda e a imaginação criadora da Autora. Ou seja, Ornato Cantabile é um aliciante poema épico, redigido em prosa harmoniosa e cuidada, sobre a expansão de Portugal pelo mundo, sobretudo para a metade ocidental do globo terrestre, nos alvores da época moderna. Poema épico mas não em estilo hiperbólico ou de glorificação fácil e monocórdica de um qualquer herói. O herói é Portugal. E o ambiente em que a narrativa decorre é polifónico, com notas de altura, de euforia e de arrebatamento, mas também com sons que brotam da tragédia e da tristeza.

O desejo e a frustração caminham a par. Curiosamente, a acção termina na evocação da desgraçada batalha de Alcácer-Quibir. Mas nessa mesma década, precisamente em 1572, Os Lusíadas, «nosso testamento de glória», como lhe chama a Autora, era editado. Em certo sentido, o livro desenvolve esse paradoxo contido na justaposição cronológica de Os Lusíadas e da batalha de Alcácer-Quibir ou na tão bem representada figura de D. João II o qual, segundo a Autora, «era um déspota» e, em simultâneo, «o maior rei português do século XV e um dos maiores de sempre da história nacional» (pág.77).

Ao contrário de Luís de Camões, não são as terras orientais da pimenta e das especiarias nem o Oceano Índico que preenchem o espaço da narrativa e são palco da glória lusa, mas antes o Novo Mundo, o Brasil e o oceano Atlântico em ligação estreita com esta cidade do Porto. Pode mesmo afirmar-se que, tendo como pano de fundo a história de Portugal, a acção decorre entre o Porto e o Brasil, animada por algumas figuras bem mais reais como é o caso de Brás Cubas, o portuense que fundou a cidade de Santos.

Devo acrescentar que tanto no contexto do livro como na lição da História como aliás, na actualidade, o Porto não se esgotava nos limites estreitos da cidade, isto é, no espaço dentro de muros, mas abarcava também o seu Termo, ou seja, Matosinhos, Leça, Maia, Aguiar de Sousa, Gondomar e Gaia e ainda o Alto Douro, com o qual a cidade manteve historicamente uma relação fortíssima entretecida de complementaridades e cumplicidades. E os Brasis aqui considerados são fundamentalmente dois, o do recôncavo da Baía e o de S. Paulo, com a extensão a Santos. Tal como se escreveu no texto do convite para esta sessão, Portugal e Brasil aparecem no livro num díptico que não só foi bem conseguido como assenta numa história partilhada por ambos os países. Como em todos os dípticos, neste aparecem dois painéis interligados e complementares que correspondem às duas partes do livro: a primeira, o Porto de Portugal - «Terra de Ventos e Bruma» e a segunda, o Brasil, «Terra de Azul e Harmonia».

É justo que a narrativa confira lugar de relevo ao Porto: é justo porque embora não se trate de um livro de História, a História alimenta-o em grande parte e quem o ler fica a saber mais, nomeadamente os aspectos mais polémicos dos reinados de D. Afonso V e de D. João. E a História garante-nos que a ligação do Porto (e do Norte em geral) aos diversos Brasis foi fortíssima, não só no já longínquo século XVI, mas nos seguintes. E não assentou apenas em bases comerciais mas também no intercâmbio de pessoas e até na transplantação de instituições, das quais, como escrevia Charles Boxer, ressaltam os Senados Municipais e as Confrarias da Misericórdia. Não se esqueça, por outro lado, que foi no decorrer do século XVII, poucos anos após a Restauração, que o Rei de Portugal concedeu aos cidadãos de Rio de Janeiro, Salvador da Baía, S. Luís do Maranhão, Belém do Pará e São Paulo de Luanda, os privilégios da cidade do Porto.

Tal como em outros livros que constituem a sua extensíssima bibliografia, a Autora soube misturar bem a ficção com a lenda e com a História, de uma forma que considero não só criativa e inventiva, mas também honesta, uma vez que o leitor atento quase sempre vai sendo informado velada ou claramente sobre o que é história e o que é ficção ou lenda. (Ler 2º parágrafo p.79): Adversus e Silfo, personagens da ficção, tal como Teresina, na 2ª. parte do livro. Outro exemplo: para falar da Inquisição no Porto e do lamentável evento que foi o auto-de-fé de 1543, a Autora provoca o regresso ocasional de Brás Cubas à cidade (e a Viseu, onde compra um castelo em ruínas) e dá-nos conta da desilusão e da revolta íntima que lhe causou a visão daquele espectáculo de intolerância. Ou seja, de uma assentada, a Autora faz regressar à Memória dos portuenses um vulto real e importante da sua história, Brás Cubas, e ficciona a sua viagem de retorno à cidade natal para demonstrar, pela sua reacção, quanto os cidadãos esclarecidos lamentaram e lamentam aquele auto-de-fé que foi tão real quanto dramático.

Voltando a mencionar a seriedade da Autora, entendo igualmente nesse sentido o facto de, repetidamente, se assumir na 1ª pessoa do singular, não só para exprimir a sua opinião pessoal sobre algum assunto mas também para sossegar o leitor quanto à continuidade, mais à frente, de determinado enredo aparentemente interrompido por outro episódio.

Achei muito interessante o recurso à 1ª pessoa do singular para introduzir na narrativa uma espécie de voz off que guia o leitor ou o espectador ou o visitante pelos caminhos, às vezes inesperados, que a narrativa percorre.

Há outras notas de leitura que a meu ver tornam o livro sedutor e entusiasmante. Quais?

1.O título. O título, à primeira vista, surge como um enigma. Ornato Cantabile que, aliás, a autora ajuda a decifrar logo nas páginas iniciais. É talvez inspirado na ópera ou em substractos artísticos e musicais em que a Autora de resto se mostra versada, texto este em que não há apenas uma personagem ou uma só história. Muitas histórias interligadas que, por vezes, obrigam à interrupção de uma sequência para a apanhar e prosseguir mais adiante. Mas nenhuma fica suspensa, sem fim.

2.A constante relação Porto - Brasil, com penetrações a Norte, para a Galiza, Entre Douro e Minho, Guimarães, mas também para sul. Lisboa e Évora são assíduas. Mas também a África, o Oriente, o oceano, o cheiro da pimenta e da canela, como que a condimentar as sucessivas histórias.

3.A fina análise psicológica que faz tanto das personagens históricas como das que são criadas pela sua fértil imaginação é outra nota que gostaria de enfatizar. Caracterização dos Reis: D. Afonso V; D. João II, corajoso e maquiavélico, no assassinato do Duque de Viseu e marcado pelo dramatismo pungente da morte precoce do filho e herdeiro, D. Afonso; D. Manuel I e a súbita paixão pela noiva do primo; D. João III e o seu ódio a D. Miguel da Silva; D. Sebastião; os Bispos D. Miguel da Silva, D. Frei Baltasar Limpo; entre os nobres destaco os duques de Bragança e de Viseu; Brás Cubas.

Destaco ainda as suas personagens de ficção: Adversus e Silfo, os demónios da criação, que, com Teresina, Antónia e Tiago Fonte Nova, os senhores de Padim, Gualter e sua mulher, suas filhas Caetana e Josefa, entre outros, fazem a ligação entre as duas partes do livro. Mas também muitos outros - Garboso, o corsário apaixonado e que, por amor, engendra o modo eficaz de raptar a jovem que iria ser sua mulher; o comovedor frade Félix; Inácio, o amante que desaparece quando faz falta e reaparece depois de resolvido o imbróglio, Tiago, o falso cúmplice dos que conjuraram contra a vida de D. João II e, perseguido, tem de fugir para o Brasil. De ressaltar, Gualter de Padim que, mercê de intrigas e perseguição inquisitorial tivera que mudar de nome, Pêro Miragaia, e restabelecer-se no Brasil, num destino pouco glorioso. O anão, servidor de Berengária...

A descrição pictórica dos ambientes naturais, sobressaindo, pelo que ao meu gosto diz respeito, o Douro e as paisagens do Brasil. Não irei ler aqui nenhum parágrafo, que os leitores o comprovem por si mesmos, - são ainda a destacar, do mesmo modo as sucessivas histórias de amor, todas diferentes, que vão interessando o leitor, uma ficcionadas outras nem tanto: Garboso e Valentina; Inácio e Leocádia; Antónia e Tiago de Fontenova; D. Manuel e D. Isabel de Aragão; a mesma Isabel e o Infante D. Jorge. Por alguma razão, o livro chegou a ter outro título ou subtítulo pensado: Farsa de Amores.

Outros aspectos entusiasmantes: a cuidadosa e aturada investigação histórica que teve que fazer ao longo de anos para escrever este livro. Cronistas (Rui de Pina, Garcia de Resende de quem declaradamente se serve para recordar a festa de casamento do infante D. Afonso; Damião de Góis). Conhece em pormenor muitos episódios e personagens da História medieval e moderna do Porto, da História do Brasil (inícios da colonização), da História de Portugal. Investigação não apenas da história política mas também da história cultural da Europa o que lhe permite introduzir na narrativa, bem a propósito, autores e pensadores do Humanismo e do Renascimento, tais como Erasmo, Lutero, Rabelais, Thomas More, Francis Bacon (este um pouco posterior), Gil Vicente, Sá de Miranda e outros.

Neste contexto, gostaria de sublinhar o a propósito e a lógica com que temas da pirataria e da peste perpassam e sustentam muitas páginas.

A forte e bem caracterizada presença feminina, sobretudo da ficção, de que lembrarei, rapidamente, Berengária, a cosmopolita, autoritária e manipuladora; Leocádia, a mulher que padeceu por causa de amores proibidos; Antónia, a neta de corsário, falso menino cantor, esposa dedicada e estratega da imaginosa fuga de seu marido, Tiago de Fontenova aos esbirros de D. João II; Candide, a meretriz, que trata com arrogância alguns elementos do alto clero mas que se enternece com o amor inocente de um humilde frade; Teresina, a cortesã sensual e aventureira que tem de fugir para o Brasil, onde se torna empresária e sesmeira, impondo-se como uma amazona e recusando o regresso a Portugal.

Caetana e Josefa, as duas irmãs nobres, filhas de Gualter de Padim, muito prendadas mas perseguidas injustamente pela Inquisição, atestam a capacidade da Autora para criar e desenvolver enredos de intenso dramatismo.

Finalmente, sublinharei a intervenção cívica que esta obra traduz. Todo o escritor é, pelo próprio acto de escrever um interventor, um fazedor de opinião. Aqui, Filomena Cabral, mesmo falando dos séculos XV e XVI, arranja forma de colocar-se no tempo presente para emitir opiniões e pontos de vista sobre temas actuais. Mas, sobretudo, deixa entrever as suas próprias paixões, entre as quais estão o Porto, o Brasil, a História, a Música, a Beleza, o Mar, a Poesia, o Sonho, ainda que sabendo que muitas vezes o sonho é contraditado pela realidade.

.....Em conclusão: se exprimi o meu apreço por esta obra, após breve leitura e em diagonal, para a pré-apresentação em 23 de Novembro passado, no Casino da Figueira da Foz, agora que tive mais tempo para me debruçar sobre ela, posso reafirmar com convicção reforçada que da mistura doseada entre ficção, lenda e realidade histórica resultou um belo livro, pelo que felicito a Autora, o «Primeiro de Janeiro» e as «Fólio - Edições».






FILOMENA CABRAL, MAR SALGADO, Sessão de Apresentação do Livro, pelo Prof. Doutor ANTÓNIO PEDRO VICENTE (UL), na Livraria Bertrand, Lisboa, em 12.03.2002.

Perguntei-me porque é que a Filomena Cabral me escolheu para apresentar o seu novo livro. Não sou romancista, ensaísta, ou poeta, muito menos dramaturgo.

Sou um simples historiador que procura nos finais do século XVIII e inícios do século XX algumas justificações para a compreensão do presente. Daí que pense:

1) A História é Mestra da Vida como estou seguro que é,

2) por essa razão muito me constrange pensar como seria benéfico que os governantes e dirigentes nela aprendessem algumas lições. Governariam melhor.

- Concluo, desde já, que Filomena Cabral pensou em mim para esta apresentação, precisamente porque viu em mim o que realmente sou - historiador.

- Mas de África pouco ou nada conheço. Não vivi aí. Fui e recordo, desde os primeiros contactos, que o ambiente, o clima humano a paisagem que é propícia ao fascínio, é susceptível de "agarrar" um cidadão para sempre.

- Contactei recentemente com a obra de Filomena Cabral - conheci esta autora no Brasil num certame da maior importância ligado à expansão do livro - a "Bienal Internacional do Livro" - e aí constatei uma pessoa sensível, inteligente e culta. Nascida no Porto, onde vive, aí desenvolveu um extenso curriculum literário no campo da poesia, da ficção e do romance. Um excerto da sua vida vem na badana do livro que agora apresentamos, basta salientar os êxitos que tem tido no Brasil que tanto a acolhe e no seu país. Curiosamente somos confrades na «Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes», em S. Paulo no Brasil.

« Mar Salgado», o trabalho que agora nos ocupa, surge na sequência de um Díptico - Ouro, Honor, Corsários, Ilusiones e Viagem, Memória e Sertão, dois romances históricos ( publicados em 2000), que têm como palco Portugal e o Brasil, a Europa e a América e nos quais as personagens se inter-accionam nas paisagens e acontecimentos e que partindo dum quotidiano fazem a história dos séculos passados, da antiga colónia e dum país independente. A acção das personagens é desenvolvida num clima em que os incógnitos, geralmente esquecidos, são os verdadeiros personagens de uma saga, os obreiros da verdadeira história de grande parte do império colonial português.

- O relacionamento entre 2 povos, o americano e o europeu, é feito não nas vias oficiais, entre poderes estabelecidos e instituições dependentes, mas na história das famílias que atravessando o Atlântico construíram o Brasil, a sua independência e o espantoso fenómeno da sua unidade - bandeirantes e sertanejos edificando um país portentoso. Reflectindo a todo o momento, a autora apoiada em dados concretos, históricos, liga gerações numa complexa teia de relacionamentos numa escrita naturalmente não fácil, porque Filomena Cabral quer, a todo o momento, compreender os horizontes mais profundos de personalidade dos intervenientes, das variadas e múltiplas personagens do seu romance.

- Os dados concretos da história oficial estão sempre implicados na sua reflexão. Os ingredientes - humanos - do romance surgem e dissipam-se, por vezes; nunca esquecidos são relembrados noutro contexto, noutra época ou espaço, reinventando a história que é pesquisada com minúcia e acerto prodigalizando-nos uma temática realista e assumindo-se como um acto pedagógico de esclarecimento histórico.

- História e ficção apesar da profunda intensidade reflexiva desta autora, ou talvez por essa razão, acabam sempre por nos esclarecer e nos ensinar a epopeia de um povo que uma língua comum uniu e projectou.

- Portugal no Brasil, Portugal em Angola, em África, uma sequência lógica do tríptico completado pelo Mar Salgado. Os portugueses de Pernambuco atravessam novamente o Atlântico, Recife, Luanda - o caminho mais perto da pátria, e vêm edificar Moçâmedes, paisagens similares, costumes idênticos irão recair na sua relativamente fácil adaptação ao novo continente. Aqui a 'trilogia luso, afro, brasileira' consubstancia-se para nos oferecer um panorama esclarecedor do estar e do viver dos portugueses em África.

- A acção de Mar Salgado integra pois as personagens expulsas do Brasil e que irão integrar um outro Portugal tentado em Angola. Germano, um descendente desses emigrantes é o andaime sempre presente de que se serve a narradora para nos dar um panorama lúcido desta outra epopeia que foi a colonização de Angola.

- Demonstrando um conhecimento muito profundo da realidade vivencial da colónia, tão abandonada até quase ao limiar do século XX, Filomena Cabral na esteira de autores hoje desgraçadamente esquecidos: Augusto Casimiro, Julião Quintinha, Henrique Galvão, Castro Soromenho - é uma conhecedora de África e também aqui apoiada em amplos conhecimentos históricos. Situa as personagens no contexto que culmina com a Independência de 1975. Germano exilado em Trás-os-Montes volta ao local da partida dos seus ancestrais. Triangulado o Atlântico e após séculos de ausência está de volta, depois de ser brasileiro e de ser angolano. Aí, em Trás-os-Montes, desenrola a saga dos seus antepassados. A ruptura, o corte, culmina uma trajectória em que a tragédia e a melancolia se sobrepõem aos êxitos efémeros de um percorrer de gerações a todo o momento lembrada pela autora - o 'apodrecimento das raízes do coração' - nas palavras de Filomena Cabral que discorre, narrando, com perspicácia e profunda cogitação, sobre os fenómenos vivenciais a quase dicotómica situação do natural anseio autonómico dos naturais da terra - os africanos - e a também justa ilusão dos portugueses que, como Germano, eram também angolanos, não eram torna-viagem, deixando Portugal em tempos muito idos para aí se fixarem, sem veleidades da pátria primitiva, sem saudades de Trás-os-Montes, mas que se vêem obrigados a cortar com tudo e com quase todos. Germano e tantos outros ficaram agora só com os seus pensamentos e recordações de uma tragédia que, ornamentada com a dura guerra colonial nem mesmo assim lhes fizera arredar pé da sua pátria.

- Dizia François Mauriac que os heróis do romance nascem do casamento que o romancista faz com a realidade.

- Parece-nos não poder definir este romance como uma simples narrativa em prosa de uma acção fictícia a servir de encarnação sensível ao conhecimento psicológico dos seres humanos. Enquanto o historiador verifica os factos, o Romancista cria-os; se o historiador, interpretando os conhecimentos, descobre e reconstitui os tipos humanos, o romancista cria os tipos humanos a encarnarem em acontecimentos possíveis (ou impossíveis). Filomena Cabral apresenta-nos, em Mar Salgado, a simbiose do romance e da História. O poder fundamental do romancista, que lhe advém da imaginação psicológica, está presente.

- A sua imaginação permite-lhe efabular uma "intriga" verdadeiramente reveladora de uma concreta situação humana.

- O seu romance, narrando os factos, apresenta como característica fundamental uma certa objectividade que lhe advém, precisamente, do recurso aos dados concretos, históricos.

- Uma vez determinadas as personagens, as circunstâncias e o cenário de acção, Filomena Cabral perde os poderes sobre os seus heróis; entrega-os à própria liberdade, deixando-os evoluir. Submete-se a eles e deixa-se conduzir na elaboração do romance, não impondo intrigas pré-concebidas, mas fazendo com que elas nasçam face à realidade, das reacções da vida que pôs em movimento.

Muito obrigado.




NOTA INTRODUTÓRIA DE «ORNATO CANTABILE »

ORNATO CANTABILE é uma narrativa historiográfica de carácter epopeico; ao relato da grandiosidade da nação portuguesa em plena expansão, nos sécs. XV e XVI, misturam-se o maravilhoso, a confundir-se com o real, a lenda e a história.

O local privilegiado da acção é a região do Porto (Gaia, Gondomar, Leça, Maia), dali irradia; das digressões alusivas aos restantes países europeus, no contexto da época, destacam-se questões diplomáticas e acordos na defesa de políticas económicas, incluídas as diligências da pirataria internacional ao serviço das respectivas coroas.

Aqui se possibilita a ideia da formação da sociedade portuguesa da época expansionista com figuras tipo, entre elas o cavaleiro idealista que, terminadas as cruzadas, se dedica à exportação de "bens essenciais", embora sem abdicar da memória familiar e da própria, do rememorar de façanhas várias, o tempo a condicionar - como sempre - o comportamento, os alçapões da vontade, a forma de ver o mundo e de nele nos situarmos.

A sobreposição à realidade da época faz transitar a narrativa por determinados lugares para torná-la abrangente. Numa primeira parte do livro - Terra de Ventos e Bruma (
a terra portuguesa) -, vão-se destacando, em simultâneo, o retrato do país e os relacionamentos mais próximos com a restante Europa e África. Na segunda parte - Terra de Azul e Harmonia (a terra brasileira) -, estabelece-se nexo com a futura América Ibérica, nomeadamente o Brasil, entretanto descoberto; e Brás Cubas, cavaleiro nascido no Porto, no século XV, fundador da que viria a ser a cidade de Santos, constituirá, ele próprio, motivo.

De qualquer modo, o texto, a partir do décimo capítulo, estabelece passagem constante entre Portugal e o que viria a ser o Brasil como hoje o conhecemos; apesar de ter escrito já um "Díptico" sobre a formação daquele país (sécs. XVII-XVIII e XIX-XX), assiste-se, em Ornato Cantabile, aqui residindo também o grande investimento na progressão da narrativa, ao "relato possível" do que teriam sido as primeiras décadas da exploração do território vasto - então confinado ao espaço conhecido, o recôncavo baiano -, ainda anterior ao registo da história oficial e da chegada a tais lugares dos Jesuítas, em meados do séc. XVI.

A lacuna entre a descoberta e esse tempo é aqui preenchida: Fernão de Noronha parte para o Brasil em 1501, data do primeiro consórcio estabelecido em Lisboa para importação da madeira das matas brasileiras. Este cristão-novo, cujo nome seria dado no futuro a uma ilha, constituirá pretexto dinamizador da narrativa, naquelas paragens, Portugal a motivar a gula das restantes nações europeias e objecto de arremetidas da pirataria, na costa da nova colónia, constituindo-se assim
um painel de época com factos ainda não tratados, a incluir, entre outros, o pormenor de ter sido Brás Cubas integrado na primeira leva de colonos, por volta de 1530-32.

O livro, todo ele, é balizado pelo desejo, seja o relativo à cortesia do amor, seja o de D. Afonso V, o Africano, que sonhara, no séc. XV, unir a Península Ibérica sob a mesma coroa, ou o de D. Sebastião, cem anos depois, que se não conforma com o ditame dos tempos - os da sua época - e pretende Portugal ainda lançado na expansão pela fé, na aventura da conquista.

A frustração desse desejo do jovem Sebastião conduzir-nos-ia a Alcácer-Quibir e ao domínio pelos Filipes: a Península unir-se-ia, enfim, pela negativa.

O registo é irónico, assistimos ao ímpeto dos portugueses, à coragem, ao desafio e à tendência atávica para a "apagada e vil tristeza", numa sociedade de transição, entre o final da Idade Média e o Renascimento; enfraquecido o poder feudal, o soberano reinaria sobre todos os súbditos, tornando-se D. João III o primeiro monarca absoluto.

Acontecimentos como a visita de D. Afonso V e seu séquito à cidade do Porto, de onde tencionava partir ao encontro de Luís XI, o Valois, na tentativa de convencê-lo a aliarem-se contra Castela, ou o primeiro e único auto de fé ocorrido na mesma cidade, ainda a peste que a infestara, no séc. XV, são narrados com expressividade e fidelidade aos grandes cronistas, onde fui beber, e à muita pesquisa de minha iniciativa: ainda não tratara,
ficcionalmente, da fundação de Santos por um portuense (provedor da Fazenda Real e loco-tenente do donatário, ali instituiu Cubas a primeira Misericórdia), entre muitos outros factos, de ordem económica.

As personagens e os episódios são múltiplos - assim o exige a epopeia -, porém todos ligados, formando trama onde as pontas dos diversos fios estão bem presas, sem velas rasgadas a conduzi-la ao abismo das boas intenções, enquanto Adversus e Silfo - entidades da criação, dominando o tempo e o espaço - possibilitam a mobilidade da narradora entre os vários planos, cientes de que os simples mortais tendem a imaginar o mundo em mudança, tantas as transformações, anseios, enleios; todavia, para ambos, tudo seria tédio e repetição.

A abordagem da memória colectiva, quanto a mim, deve situar-nos no plano da impossibilidade prática, há muito a história se constituiu fábula. Se chorávamos, nesse tempo, seria por eflúvios da pimenta, deliciados com a canela.

Na cidade do Porto, o ouro, as madeiras exóticas, a abastança, o requinte: os mercadores - uma nova classe - rodeavam-se de luxo, exibindo riqueza, os mesteirais em grande azáfama. Da Sé Catedral, das igrejas, dos conventos emanavam linhas melódicas, em
ornatos subtis, imorredoiros.

ORNATO CANTABILE, narrativa polifónica e polimorfa, constituiu para mim um desafio, representa um mundo em acção, a inquietação e o sonho em muitas vozes, actos, uma epopeia, enfim, onde o herói é Portugal, evidenciando-se - disseminada por novos mundos - a energia dos portugueses das Descobertas.



A Autora





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