Sobre o livro Gente, Terras, Dia a dia
De MANUEL AMARAL

Por Risoleta Pinto Pedro


Este livro de Manuel Amaral poderia, numa linha de pensamento radical, quero dizer, essencial, como por exemplo, o do professor Agostinho da Silva, ser utilizado como um manual para uso numa universidade realmente universal, aberta, em que a linguagem, mesmo para as ciências, seria a da poesia. Veja-se o excerto:

A Ursa no ar, faz ainda trapézio.
O que a distância tece.


onde em dois versos se relaciona, poeticamente falando, astronomia, geometria e astrofísica.
Aqui estão as ciências, mas também a história, porque esta poesia vai convocar personagens do nosso património cultural, algumas já ausentes, como Bento de Jesus Caraça, Pascoaes e outros; dos nomes que são, aparecem recuperados nas pessoas que foram, nas almas vivas que sempre serão.
Mas nestes poemas estão também aspectos da actualidade, mesmo na sua vertente quotidiana mais recente:

Apesar da bandeira azul, de doze estrelas

E temos lições de história, lições de história da literatura, lições de cultura.
Assim sendo, será legítimo perguntar se estamos perante poesia lírica... Haverá poesia lírica quando o poeta não fala de si? É um facto que em muitos poemas ele não fala do “eu”. Como aliás Cesário e muitos outros. Mas esta é poesia lírica, não porque a de outros também o foi, mas porque a vida poética deste sujeito poético se faz da vida dos outros. Porque ele tem a grandeza e a humildade (o que é o mesmo) necessárias para o assumir. Assim, falando dos outros, de si fala, porque fala da humanidade. É lírica, esta poesia, uma lírica ampla, não apenas individual mas humana, e não apenas humana mas também animal (ele sente como o cão, como o galo), e não apenas animal mas também vegetal (ele sente como a árvore), e não apenas vegetal mas total (ele sente como o tudo). Como veremos.
Esta poesia, não o parecendo às vezes, está centrada no emissor, porque o emissor está sentado no coração daqueles de quem fala e daí nos fala. O emissor emite sinais morse ou de amor a partir de corações vivos de homens mortos. O canal é a recordação. E esta viaja no espaço, vai até Angola, França, Galiza, Barcelona, umas vezes arrastada pela personagem, outras pelo sujeito poético.
Ora, se estamos perante poesia pura, não estamos perante pura poesia, porque o regaço destes textos é generoso e neles cabe, não apenas o esperado lirismo, mas também a narrativa, que inclui a própria descrição e que acolhe também os diálogos.



onde ele se mostra como um elegante e brilhante herdeiro de uma modernidade coloquial nascida com Garrett, retomada por Cesário.
É pois, uma escrita ágil: é narrativa, conta; é drama, representa; é lírica, sente. Porque na realidade, às vezes, estamos perante lirismo puro:



Ou então:



Líricos, ainda, poemas como “Margem” e “As mãos esquecidas”. Este é portanto um livro entre o lírico, por vezes o épico, o dramático e o narrativo, sem nunca perder a subtileza da poesia. É poesia grande que não limita nem se limita nem poupa verbo, modos ou estilos.
O que me leva a pensar que este livro poderia desdobrar-se em dois, ou uma espécie de dois em um:
Um livro de poemas lírico/narrativos relativamente longos com alguma contribuição do dramático, como por exemplo “Memória para Bento Caraça” e os que se seguem.

Outro, de poemas curtos, absolutamente líricos, como “Carlos Paredes, diz-me...”.

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Embora estes dois grupos convivam perfeitamente neste volume, seria também possível separá-los.

O primeiro contacto que tive, a leitura silenciosa que para mim fiz destes poemas foi fluente, a linguagem é muito viva, é uma poesia de abundantes palavras, generosa e farta que conduz o nosso ritmo e não nos deixa parar.

Às vezes, é de um “eu” que se trata:



mas na maioria das vezes é uma poesia de 2ª pessoa em que se dá mais relevo ao “tu” do que ao “eu”, o que parece um contra-senso dado tratar-se, em princípio, de poesia lírica. O que acontece é que estamos perante a voz de um homem, um poeta ou um sujeito poético, como vos agradar mais, em suma, de alguém que interpela, que interroga, que, afinal, necessita de interlocutor:



e que, ao trazê-lo, a esse interlocutor, para o poema, esse espaço íntimo, o incorpora. Esta voz fala de si quando fala dos outros, e fala deste país quando, em França, escreve longos poemas-cartas. Há aqui um processo de transferência, ou uma projecção em espelho.

Quanto à linguagem, ela concilia de uma forma natural o arcaico, onde cabe vocabulário específico da lavoura, em vias de desaparecimento, com o regional, o rural e o familiar:



Isto, que para um moderno citadino parece quase uma língua estrangeira, coexiste com uma linguagem culta, cuidada, moderna, melhor dizendo, intemporal; não se trata de uma poesia nostálgica de um tempo, embora esse tempo também lá esteja referido muitas vezes com ternura.

Na generalidade a linguagem usada é coloquial, na tradição de Garrett, de Cesário, já anteriormente referidos:



temperada por vezes pelo melhor tom satírico que herdámos dos nossos trovadores:



Encontramos por vezes uma linguagem concreta para apresentação de abstracções, outras vezes brilhantes considerações abstractas acerca de factos concretos. Há pelo menos um trecho magnífico, em que no mesmo verso se concentra o facto, a reflexão e o sentimento:



porque nesta poesia as abstracções e os sentimentos são feitos de coisas concretas:



como noutro trecho em que está presente uma surpreendente relação entre linguagem, religião, história, arquitectura, civilização, evolução e geometria:



Apesar de tudo, esta poesia não é alheia a preocupações metafísicas:



assim como à presença do actual e quotidiano:



Os temas são muito diversos, vão desde as pessoas aos lugares, aos conceitos, às coisas, à política (porque há um olhar muito lúcido), à própria linguagem, como é o caso do poema “Olá” já aqui referido.

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Este olhar lúcido está especialmente presente em poemas como “Triste canhestro”, na série “Barcelona” e em outros; os olhos do poeta são os que não apenas olham, mas realmente vêem.

No poema “Barcelona 2”, um poema extraordinário, a ideia chave, ao contrário do que sucede na poesia mais convencional, na tradição do soneto, que vem no fim, surge logo no início do primeiro verso, é, aliás, a primeira palavra: “Cuidado”

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A cidade aparece aqui como uma metáfora do que esconde: o verde não é relva, é semáforo, a zebra não é animal mas é ainda mais perigosa do que se fosse, a cidade aparece perfurada por brocas como monstros espiralados afundados em angústia, o perigo cerca e já nem nos apercebemos disso a não ser em poemas que, como este, denunciam o óbvio que não vemos. Este poema é de um lirismo total e apesar de tudo comprometido com a realidade, lúcido, e na sua lucidez, combativo.

Isto é tanto mais curioso quando a cidade escolhida para fazer a denúncia do monstro urbano é Barcelona, a cidade estética, a cidade quase intocável, para quase todos os que já lá estiveram. Mas para este poeta não há realidades intocáveis, porque ele vê o que está oculto, ainda que o processo de desocultar seja o do desvendar até à invisibilidade; ele denuncia e mostra como até a mais insuspeita cidade contém a selva.

Em “Barcelona 3” vai mais longe, porque começa por mostrar o paraíso na cidade e depois denuncia-lhe o inferno que esconde, revela-lhe cruamente o jogo e a perfídia.

Mas nem sempre o cenário é de Apocalipse; pelo contrário, “Marão” é um dos poemas mais belos

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e apresenta a serra como uma paisagem bíblica, pré-diluviana. É um poema curto sobre a beleza do Marão. Aqui, Manuel Amaral foi muito contido nas palavras e no entanto criou um poema imenso como a serra musa, viajando como num túnel pelo próprio ventre da serra à procura da origem. E mostra-a, pelo lado do invisível.
É o amor e a admiração pela natureza a equilibrar a desconfiança em relação às cidades. Como, no poema “Castanheiro de Podente”, a amorosa personificação da natureza no corpo de uma árvore, que, se não tinha já, passou a ganhar uma alma:

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Também no maravilhoso poema “O último galo”
a natureza é amorosamente, quase surrealisticamente transfigurada: o pescoço clarim, metal de som que se sacrifica ao outro silencioso e denso metal, a faca, que silencia o som. Do som ao sangue, assim cumpre este poema, e nos faz cumprir, o ciclo metal.

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Retenho ainda e não resisto a partilhar convosco algumas belas imagens que encontrei aqui e ali:

- “Quando os penedos têm páginas”
- “.../arcos condicionados nas órbitas.”
- “...a curva ancestral”,
- “a oponibilidade dos dedos já não se joga nas mãos”
- “os que não deixam secar
- “... e o sapo no jardim
- “enquanto os cavalos,
- “... por entre árvores e arbustos
- “.../ os ossos mitológicos do rio/...”
- “... este espanto