2025-05-07
O REGRESSO À DIGNIDADE DO CORPO
Percorro os passeios da cidade e observo as crianças. Elas não andam, dançam, criam coreografias, saltitam, rodopiam. Numa casa de banho, chamam a minha atenção, na zona dos lavatórios, uma mãe e uma criança. O menino não fala, canta, vocaliza, solta gritos, experimenta sons sem nenhum tipo de pudor. Num mundo que perdeu a vergonha, esta ausência de pudor (não de vergonha) é a nossa salvação, para aprendermos a diferença entre a imoralidade e a arte. À medida que vamos percorrendo as ruas e observando as crianças, galgamos décadas, e esta velocidade vai de par com a fragilização do corpo. Cada músculo, cada articulação, cada célula, valem ouro. Fazem-se sentir como nunca, recordam-nos que existem, rangem, doem, claudicam. Partes nossas de que não sabíamos, agora têm som, como numa escala desconhecida. Quando queremos voltar a ser como a criança e dançar e vocalizar com elegância e arte, os músculos enfraquecidos e a garganta enrouquecida lembram-nos que alguma coisa mudou, que perdemos algo lá atrás e que a competência já não é a mesma. Ao mesmo tempo, olhamos os nossos animais envelhecendo connosco e sentimos vergonha, porque quando após uma longa imobilização se levantam e os membros lhes falham e fraquejam, fazem-no sem um suspiro e com tal elegância e graça quase como se fossem bailarinos de uma coreografia contemporânea, que nos interrogamos se uma das suas importantes missões não será ensinarem-nos a envelhecer serenamente e sem dramatismos, portadores de uma nova elegância e dignos, com a naturalidade com que cumprimos as anteriores etapas. Não sei se aceitam a dor ou se simplesmente a integram como uma nova função do corpo. São, sem o saberem, silenciosos e profundos, dignos e estoicos, comoventes e mestres.
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