2025-04-02
O ABANDONO DA MATÉRIA
«As árvores
crescem em direção ao Sol, mas quanto mais se aproximam da luz mais fundo
mergulham as raízes na Terra» António Telmo,
“Louvor da Matéria”, in: Filosofia e Kabbalah Pelo menos aqui na zona onde
vivo, é cada vez mais frequente encontrar objetos abandonados. Frigoríficos,
livros, mesas, carpetes, estantes, cadeiras, plantas em vasos e sei lá que
mais. Se nos dirigirmos um bocadinho mais para baixo, descendo a colina, e nos
aproximarmos da zona baixa da cidade, também encontraremos pessoas
abandonadas como lixo, às vezes por si próprias. Mas sempre por nós, por
todos nós. Não há desculpa. Temos de viver com este sentimento. Dói, mas é
preferível à inconsciência, à desresponsabilização. No outro dia salvei uns
livros do lixo, hoje estive quase para salvar um cedro, mas era demasiado
grande. Estava tombado, aproximei-me, tentei pegar nele e senti que não ia
ser fácil, perdi a coragem, encostei-o à parede, para que, no abandono, pelo
menos tivesse alguma dignidade e o consolo de um olhar, de uma mão, e vim-me
embora com vergonha, um nó na garganta e uma interrogação: o que é que leva
alguém a abandonar um cedro? Um senhor, encostado a uma porta, olhava para
mim com uma expressão estranha de quem não está a perceber. Eu estava triste
pelo cedro e por mim, porque quanto mais me afastava dele, da sua madeira, da
sua matéria, mais me afastava do Sol e da Terra. É evidente que estas emoções e
gestos só são possíveis porque temos o privilégio de viver num cenário que
não é de catástrofe, não estamos no meio das ruínas de um terremoto, nem dos
despojos de uma guerra. Podemos seleccionar o que merece a nossa compaixão.
Numa dessas situações, não nos deteríamos pelos cedros caídos, nem pelos
livros. Se estivéssemos acossados pela fome, procuraríamos, febrilmente, algo
para meter na boca, sem relação e sem respeito. Seria compreensível. Contudo,
muitos dos que fugiram à guerra, e estou a pensar concretamente nos ucranianos,
não vieram embora sem os seus animais. Quantos de nós o fariam? Mas voltemos aos objetos. Hoje
quero falar da matéria: mesas, livros, estantes. Coisas velhas, mas ainda em
condições de uso. Era o caso, ontem, de
uns pratos e umas travessas, inteiras, sem rachas, com aspecto até de novas, que
estavam dentro de uma caixa junto aos contentores. A facilidade com que
descartamos é escandalosa. Numa sociedade materialista, apesar da
proliferação dos grupos de pendor espiritualista de todo o tipo, é um
paradoxo. Vivemos para a matéria, mas desprezamos a matéria. O pior dos dois
mundos. Parecemos, somos gnósticos radicais virando as costas a tudo o que é
material, mas aprimorando o espírito ou iludidos de que o fazemos, de que
conseguimos fazê-lo sem a matéria, e procurando o céu fora da terra, num
sinal de desequilíbrio, mas melhor que nada; e do materialismo não soubemos
aprimorar o racional que poderia aconselhar-nos a viver numa relação
equilibrada com a matéria, retirando dela o melhor proveito. Nem uma coisa
nem outra. Do gnosticismo radical, nas suas várias tendências, retiramos
apenas o usar a matéria como uma prostituta, virar-lhe as costas quando já
não nos apetece, a desconsideração por tudo o que consideramos sobras, restos
e refugo, fazemos ioga, meditação, pertencemos a grupos muito espiritualistas,
mas esvaziamos as nossas casas e deitamos tudo fora para substituir por uma
loja do Ikea; do materialismo e racionalismo desaustinados, herdámos o horror
ao espírito que tudo permeia. Vamos ao ginásio para nos pormos em forma, para
podermos vestir as calças apertadas ou o biquíni, não pelo prazer que isso dá,
ou por amor e reconhecimento ao corpo que nos sustenta aqui, mas para não
sermos descartados, para não envelhecermos, para não sermos considerados lixo.
A avaliar por aquilo que fazemos com as coisas velhas, não é difícil imaginar
o que receamos em relação a nós mesmos. Vamos à igreja para ganharmos o céu,
e à confissão para alguém nos consolar com uma absolvição, e semanalmente
continuaremos a reciclar esta necessidade de consolo. Tão impossível de
satisfazer, como no título de Stig Dagerman… As bibliotecas dos antepassados
são vendidas ao desbarato, as arcas com os lençóis e as rendas das avós,
desprezadas, os pratos antigos que alimentaram física e esteticamente tantas
gerações da família são agora deitados fora, porque há uma teoria espiritualista
qualquer que diz que dá más energias guardar coisas rachadas, e assim vamos
caminhando junto ao abismo, sem nos apercebermos de nada. E como também dá
más energias conservar a Terra ferida pelos maus-tratos, apesar de ter
acolhido tantas gerações que possibilitaram a nossa vinda à velha Terra que
já não serve, começamos a fazer as malas para viajar até Marte, longe desta
lixeira que criámos e continuamos a manter e a “enriquecer”. Uma relação equilibrada com a
Terra aconselha a que nos desenvolvamos enquanto espírito para podermos
trazer esse espírito, ou luz, à matéria. Somos, sem dúvida, os senhores, na
criação. Mas que mal nos portamos! Não compreendemos que sê-lo só nos traz responsabilidades.
A responsabilidade de cuidar: de nós, dos animais, dos vegetais, dos
minerais. Envenenamo-nos de todas as maneiras, desventramos a terra pelos
minerais, queimamos as florestas e abandonamos os animais quando já nos são
pesados ou torturamo-los para ficarem mais tenros e podermos comê-los com
mais conforto para os dentes que estragamos com os açúcares e as farinhas. Muito pessimista? Não me
parece… há um filósofo que faria cem anos em 2027 que nos deixou, em forma
cifrada, a fórmula. Cabe-nos decifrá-la. Nunca foi de mastigar pelos outros.
A fórmula chama-se “razão poética”, e contém dentro de si o equilíbrio entre a
matéria e o espírito, o pensamento e a intuição, a ciência e a poesia, as
ideias e as coisas, a divindade e o humano, não separados, mas em íntima
união e permanente busca da harmonia. Não estaticamente, que isso seria a
morte, mas em desequilíbrio, em busca constante do equilíbrio, como numa
dança, que é a vida. Aqui. Onde se passa tudo o que poderá ser interessante
para nós. O nome do filósofo: António Telmo.
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