2023-06-07
TUTTI-FRUTTI


Risoleta C Pinto Pedro



Agora que está na moda o sabor tutti-frutti, seja lá isso o que for, e nunca pensei que o conceito que tenho encontrado em embalagens de sumos, preparados para pudins, sabores de gelados e opções culinárias desse para tanta conversa, também eu vou escrever uma crónica ao estilo miscelânea procurando reabilitar- me no final.

Mesmo sabendo o estado em que anda a informação, sempre vou ouvindo a comunicação social, com preferência pela rádio, porque me permite ir fazendo algumas tarefas que me deixam livre a atenção, e concluo que alguma coisa se vai aprendendo. Do como fazer e do como não fazer. Depende também dos canais. Mas algo de quase transversal posso encontrar independentemente da antena que estou a sintonizar: o erro gramatical, e aviso já que não sou fanática nem ando com cana de pesca à procura do erro. Claro que me preocupa a degradação em que a nossa bela língua vai estando mergulhada, com ajuda significativa do Governo, como sabemos. Tenho algum grau de tolerância em relação ao falante comum cujo nível de expressão é cada vez mais limitado, por lhe conhecer as causas, contudo preocupam-me os monossílabos, as interjeições e as não frases em que se vai transformando o discurso da maioria dos mais jovens, preocupa-me que alguns adultos, para parecerem “fixes” e modernos os imitem renunciando ao papel educativo que têm só por serem falantes, preocupam-me as falhas graves de muitos comentadores, mas enfim, tenho de ir dando o desconto ao facto de muitos deles não estarem a recorrer a discurso escrito e poder haver uma dose de improviso e espontaneidade própria da oralidade, embora seja um bocado demais o que às vezes ouço, e ainda mais os descuidos, chamemos- lhes assim, dos profissionais da comunicação social. É sobretudo inquietante que algumas das tendências estejam a consolidar-se à custa de tanta repetição. É o caso de estruturas como esta, que estou constantemente a ouvir: “Embora os números da economia são realmente números…”. Sei que a maioria dos meus leitores não só sabe reconhecer o erro, como não o comete, mas como estas crónicas também poderão ser pedagógicas, aproveito para explicar a algum leitor que o desconheça, que o que está certo é que, ao empregarmos uma concessiva, como é o caso, iniciada por embora (ou ainda que, posto que, mesmo que, se bem que), o verbo, segundo a norma actual, vá para o conjuntivo e não para o indicativo, ao contrário do (mau) exemplo acima. Esta é, digamos, a “lei geral”, a coisa é um pouco mais complexa, mas neste caso não há dúvida nenhuma. Também podemos argumentar que o Padre António Vieira escreveu, no Sermão da Sexagésima: “O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu;”. Uma coisa é certa: os que cometem este erro não o fazem por recorrem a esta versão, não o fazem por muito terem lido o Padre António Vieira. Oxalá assim fosse… Por outro lado, nem todos são o Padre António Vieira, que pode manipular a língua a seu bel-prazer e temos também de ter em conta que o uso da língua (não a língua) se vai alterando através dos tempos e que são normalmente os que a conhecem mal que mais contribuem para que isso aconteça. Sei que é assim, mas deixem-me que vá dando o meu contributo para que o processo seja o mais natural possível, isto é, o mais lento que conseguirmos, que de velocidades já estamos cheios.

Ninguém poderá levantar-se e afirmar que nunca cometeu um erro. Serei a primeira a acusar-me, até sei os erros que por vezes cometo, a maioria por distracção e falta de revisão minha, mas permitam que com a parte que sei, dê o meu contributo para a preservação deste belo monumento imaterial que tantos partilhamos. Como quem restaura um fresco, uma tapeçaria ou uma escultura, património de todos.

Afinal de contas, também é escrevendo que aprendemos, como afirmava o filósofo Álvaro Ribeiro (1905-1981), que costumava dizer que se alguém não sabia algo deveria escrever sobre isso. É o que eu faço. Na verdade, escrevo para aprender. É equivalente o pressuposto por detrás do título do livro Se não Sabe porque é que Pergunta, baseado em conversas de João Sousa Monteiro com João dos Santos. De facto, fazer uma pergunta é já um princípio de resposta.

Termino, assim, com uma pergunta minha que antecedo de uma introdução: A minha querida amiga Margarida Morgado, poeta de respiração inteira, olhos de criança e caligrafia de sonho, partiu há dias. Foi uma das obreiras da língua, e quem a conheceu tomou contacto com um modo de vida mais poético. Se o seguiu ou não, já é da responsabilidade de cada um. Vivendo em Évora desde os dois anos, com incursões pela Bélgica, Angola, Alemanha, França e Lisboa, onde trabalhou muitos anos na Comissão da Condição Feminina, regressou a Évora e lá permaneceu durante décadas, residindo recentemente em Cascais, por motivos de saúde. Partiu olhando o mar como olhara a planície. Uma parte que foi sua pairará benévola e poeticamente sobre a Arrábida. E esta madrugada foi sentido um sismo em Évora. Afinal, não era uma pergunta. Todavia, é uma interrogação. Sem sinal de pontuação. Mas cheia de símbolo. Talvez a partida de quem viveu assim a poesia corresponda a um sismo na terra.


risoletacpintopedro@gmail.com

http://aluzdascasas.blogspot.com/
http://diz-mecomonasceste.blogspot.com/
http://escritacuracriativa.blogspot.pt/
http://www.facebook.com/risoleta.pedro
https://www.facebook.com/escritoraRisoletaCPintoPedro/
http://aluzdascasas.blogspot.com/2020/03/o-vale-do-infante.html
http://risoletacpintopedro.wix.com/risoletacpintopedro

LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS