2022-06-08
Da sobrevivência do sol


Risoleta C Pinto Pedro





Ostende é nome de município belga e de cidade, esta situada na Flandres ocidental e banhada pelo Mar do Norte. É um importante porto, e conta, na sua história, com a tradição da pesca.

É também nome de livro, com o subtítulo “1936, o Verão da amizade”, editado pela Unicepe. O seu autor é Volker Weidermann, alemão, escritor, crítico literário e jornalista. Não sei como é enquanto crítico, mas é um notável escritor, ao ponto de merecer e estar à altura de narrar a amizade entre o enorme Stefan Zweig e Joseph Roth, Kisch, Irmgard Keun...

No interior do livro, os compagnons de refúgio e fuga são caracterizados como «um zombeteiro, um lutador, um cínico, um apaixonado, um desportista, um alcoólico, um falador». Isto remete-nos para a extraordinária variedade do painel humano e da estupidez da mesma humanidade em pretender que os outros se lhe assemelhem, tanto mais que somos nós, cada um de nós o «zombeteiro, o lutador, o cínico, o apaixonado, o desportista, o alcoólico, o falador»… Ostende é o lugar onde se refugiam, e onde o mal emergente tende a fazer de cada um uma muralha.

O subtítulo, “O Verão da Amizade”, diz-nos muito sobre a psicologia dos tempos de guerra, em que tudo se extrema. Alguém que esteja do outro lado da barricada e que em circunstâncias normais poderia ser nosso amigo, por causa do lugar onde está passa a ser inimigo; por sua vez, outro deste lado, com características para ser odiado, passa a ser amigo, cúmplice e apoiante. Isto mostra a fragilidade da coerência humana, a infantilidade de uma civilização que não sabe lidar com as idiossincrasias e a complexidade. A guerra tudo nivela, pelo processo de destruição ou apenas pela sua ameaça. Num cenário onde desaparecem direitos humanos, quem se lembra de direitos laborais, de direito à educação ou à saúde? Já viram alguém de máscara em plena guerra da Ucrânia? Quando é a vida do planeta que pode estar em causa, quem se lembra das medidas para controlar as alterações climáticas e proteger a ecologia?

Em Ostende, os copos vão-se esvaziando, o álcool é um bom psicólogo, tudo parece tranquilo, embora se tenha «a sensação de que bastaria uma palavra desadequada para fazer explodir a animosidade aqui na mesa». Porque cada um não está só, cada um transporta para o exílio as suas circunstâncias, as suas causas e os seus casos. Nem sempre as dissensões se resolvem civilizadamente, por escrito, como fazem Zweig e Roth, quando o primeiro, o «judeu ocidental», lhe escreve, comovido com a leitura de Judeus Errantes, a história dos judeus na Europa de Leste, a sua situação na União Soviética e a emigração para a América, com muitos a ficarem pelo caminho e outros a regressar. Há uma imagem tremenda de Roth, quando diz que «os judeus orientais não têm pátria em qualquer lugar mas sim túmulos, nos cemitérios». Não podem deixar de ser amigos, mesmo discordando sobre a crença dos judeus na «vida extra-terrena», o que Roth não põe em causa. Ainda assim, os fins não foram muito diferentes. Ambos partiram com o desgosto de uma Europa dilacerada: Zweig radical, com barbitúricos; Roth lentamente, com o auxílio do álcool. Nenhum deles assistiu ao fim da guerra, ou como Zweig deixou escrito: «Deixo saudações a todos os meus amigos: talvez vivam para ver o nascer do sol depois desta longa noite. Eu, mais impaciente, vou embora antes deles». E nós? Veremos, e quando, o nascer-do-sol? Uma coisa é certa, e com esta atitude dogmática e crença não negociável, concluo: o sol tem sobrevivido.


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