2020-05-27



Risoleta C Pinto Pedro


Os paradoxos do tempo



      O tempo tem sido, para os humanos, um dos mais difíceis conceitos com que têm tido de aprender a lidar.
      Para os gregos, se Chronos é o tempo na sua dimensão física ou linear, o tempo tal como o medem os relógios, já Kairós é o tempo do ponto de vista da eternidade.
      O tempo psicológico, tal como o sentimos, está a meio caminho entre um e outro. Uma hora pode representar, para mim, uma eternidade ou um segundo, consoante o seu valor emocional. Contudo, racionalmente sei o tempo que passou.


No entanto. também este saber começa a ser posto em causa pela teoria de que a duração do tempo já não é a mesma e que um dia que nos acostumámos a avaliar com a duração de vinte e quatro horas durará, na realidade, actualmente, apenas dezasseis. Poderá ser verdade, mas não há provas. Pelo contrário, alguns investigadores relacionam essa sensação do tempo que voa, com a entrada na idade adulta, a monotonia dos dias sempre iguais e o escassear das experiências de “primeiras vezes” que abundam na infância e na juventude. Talvez daí a expressão do rabi Nahman de Bratislava: «Se eu me sentisse hoje o mesmo de ontem, perderia o desejo de viver!». Seja como for, a expressão “tempus fugit” não é recente, e por isso, também não a sensação. Já o romano Virgílio, na sua obra As Geórgicas, a usa, num tempo em que o tempo ainda era regulado pelas estações, o que está quase a desaparecer da nossa experiência, excepto para aqueles que continuam excepcionalmente focados nas mudanças, nos ritmos, nos ciclos, o que começa a ser um grande desafio e quase um exercício espiritual. Porque se o ideal das civilizações baseadas em exploração foi sempre o trabalho a tempo inteiro dos que servem, e se hoje já não há ética que sustente tal interesse, na verdade só hoje se conseguiu, plenamente, o que se defendeu antes. As pessoas estão mergulhadas nas imagens artificiais e já não olham as nuvens, o estado da Lua, o movimento do Sol, o passar das estações. A chuva e o frio parece-lhes quase uma ofensa pessoal a uma vida fácil. Como se atreve o tempo a ser… desagradável?

É que se até o escravo, até o operário, tinham os seus tempos de descanso, hoje isso deixou de existir para muitos, não há tempo para olhar o céu, para andar à chuva pelo prazer de o fazer, porque com a Internet e o computador, o trabalhador pode ser solicitado, a qualquer hora da noite ou do dia, a dar resposta a uma qualquer questão de trabalho. Deixou de haver o direito ao recato. E se algumas empresas e escolas já optaram por bloquear nos computadores de trabalho o acesso a redes sociais como o FB, a doença está de tal modo entranhada, que apenas se consegue resolver esta outra forma de auto-escravatura que é a pertença a uma rede social, se for o próprio utilizador a impor-se as suas próprias regras e a empenhar-se em cumpri-las, como ir à Internet apenas uma vez por dia, a não ser no horário de trabalho se isso fizer parte do mesmo, abster-se de divulgar todas as suas passadas diárias com fotos ou textos e propagação, qual magia negra, das desgraças que vão acontecendo no mundo, e por aí fora. Isto é, se o cidadão compreender que hoje a escravatura já não é um caso de legislação, mas um estado de alma e apenas é possível se ele não estiver disposto a renunciar, se ele se prestar a tal, se ele criar as condições para que o processo lhe pareça natural, uma vez que é ele próprio que se auto-escraviza. A coisa chega a um ponto em que as pessoas arriscam a sua vida e a dos outros pelo e-mail, pela rede social, pela prática altamente perigosa de usar o tm durante a condução. Porque tudo tem de ser urgente, imediato, nada pode esperar, há uma ansiedade incompatível com a espera, com a contemplação, com a capacidade para adiar, como se na hipótese de não podermos acompanhar ao segundo o que se passa, estivéssemos a ser excluídos do mundo, da vida, da existência, a ser atirados para fora do planeta, do grupo. Uma espécie de urgência de morte condicionada por uma febre mortal do instante, pela desistência do tempo enquanto momento, da renúncia à sensação enquanto eternidade. A tirania do Chronos derrotando a realeza do Kairós. Com toda a nossa cumplicidade. Sem ela, não seria possível.

Contudo, a literatura, mais uma vez ela, neste caso através da Torah, vem mostrar-nos que, se quisermos, podemos fazer magia com o tempo, e a nosso favor. Que a tirania e a ditadura do tempo linear não é a única realidade, e que podemos, se quisermos, estar atentos a outros modos de sentir. Vejamos as seguintes palavras:

«Eis-nos transportados a um mundo em que o tempo nos parece diferente. A ordem cronológica das duas Toró, escrita e oral, conhece uma curiosa inversão: é a Tora oral – comentário da Lei escrita – que é anterior. Descobrimos, por exemplo, que os patriarcas tiveram de se submeter aos preceitos da Tora, e os hebreus, desde a sua escravização no Egipto, observar o Sabate muito antes de qualquer proclamação sinaica.

É preciso ir mesmo mais longe ainda e afirmar que, para o próprio Deus – Deus que dá a Tora -, esta permanece objecto de um estudo incessante e que é através da sua contemplação que Ele criou o mundo, como se o Eterno se submetesse a uma realidade que simultaneamente emana d’Ele e Lhe é exterior.» (A Cabala e a Tradição Judaica).

Curioso, não é verdade? Mas como chegar a esta percepção tão plástica e elegante e revolucionária do tempo se não moldarmos, nós mesmos, como deuses, o nosso próprio Tempo?


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