NA CHINA PROFUNDA
por Miguel Boieiro
De 11 de janeiro a 12 de fevereiro de 2012 estivemos (minha esposa e eu)
na ilha de Hainan, situada no extremo sul da China. O objetivo da viagem
foi a participação numa experiência de ensino intensivo de esperanto, a
língua internacional criada por Zamenhof há cerca de 120 anos, para
estabelecer uma ágil intercomunicação entre as nações e assim, facilitar a
cooperação internacional e a obtenção da paz universal.
Esta ambição, sonho ou, se quisermos, utopia, continua de pé e vai
angariando cada vez mais entusiastas. A demonstração cabal desta
asserção tem expressão plena nesta verdadeira aventura que foi a de
realizar em Hainan, o projeto “Esperanto-Insulo” (Ilha do Esperanto). A
referida iniciativa, levada a preceito na Universidade de Haikou (capital da
província), consistiu basicamente em quatro cursos:
- BEK, destinado a iniciantes, extremamente intenso, funcionando 8 horas
diárias, exceto domingos. Participaram mais de 80 alunos universitários, a
esmagadora maioria chineses, mas também coreanos, mongóis e de
outras nacionalidades.
- METODIKA para o aperfeiçoamento dos métodos de ensino dos
instrutores de esperanto.
- “ALFRONTI MILITON” versando a temática dos conflitos internacionais e
as diversas formas de evitar a guerra.
- EVOLUÇÃO E HISTÓRIA DA INFORMÁTICA e dos caminhos inovadores
que ela está a abrir para a Humanidade.
Neste sintético relatório, cujo objetivo central é despertar curiosidades e
eventualmente suscitar entusiasmos, não nos parece conveniente entrar
em muitos detalhes que poderão, não obstante, ficar para posteriores
artigos especializados.
Por agora, para não enfastiar os leitores, deixaremos o Esperanto e
focaremos o relato nos aspetos que mais nos impressionaram na vida
chinesa, uns pela negativa, outros pela positiva, mas sempre sob o ponto
de vista estritamente pessoal.
Não fomos à China fazer turismo, pelo contrário, fomos em missão de
trabalho voluntário, tivemos dificuldades de adaptação e estamos
conscientes da debilidade e do subjetivismo de alguns conceitos que
iremos expor.
A China é um país enorme formado por um conjunto de nações tão
complexo que dificilmente o habitante de um pequeno país ocidental
poderá ser taxativo e muito menos conclusivo nas suas apreciações
pessoais.
Estabelecer comparações e dizer o que está, ou parece estar, certo ou
errado, será sempre estultícia. Sejamos, pois, humildes quanto baste,
porque para dizer bem ou dizer mal, há sempre muita gente seduzida, ou
não, pelos poderosos manipuladores “mass media” internacionais.
Uns focarão os pormenores que julgam ferir a “civilização” ocidental e
tendencialmente só apontarão defeitos. Ao invés, outros só notarão o que
de mais positivo lhes parece. Assentemos na premissa de que neste caso,
a imparcialidade não existe, existirá tão-somente a vontade de se ser
imparcial.
Após este preâmbulo, diga-se então, o que se achou de melhor e de pior
nesta fantástica experiência de 32 dias nessa pitoresca região do Oriente.
1 – A beleza natural da ilha de Hainan
As benesses do clima propiciaram uma flora luxuriante em que os
coqueiros são reis. As avenidas da cidade de Haikou e de outras cidades
estão ladeadas de coqueiros e de outras árvores de folhas lustrosas e
perenes. Guedelhudas “Ficus” com raízes pendentes até ao solo dão ar
exótico às urbes e escondem as vistas menos atraentes.
2 – As flores
Abundam por toda a parte lindíssimos arranjos florais em que o escarlate
das estrelas de natal contrasta com a púrpura e o amarelo vivo das
asteráceas e de outras espécies. Vasos artísticos de vários tamanhos,
dispostos harmonicamente em espaços públicos e privados, formam
curiosos desenhos e dão um toque de alegria permanente, valorizando as
paisagens.
3 – As frutas
Os vendedores de fruta encontram-se por todo o lado. As espécies,
algumas para nós tão exóticas que nem lhes descortinamos o nome, a par
de mangos, ananases, bananas curtas e longas, goiabas, papaias,
mamoncilhos, olhos de dragão, jacas, anonas, litchias, mangostões,
pequenas tangerinas, laranjas, toranjas, melancias, melões, maçãs de
vários tipos, uvas, peras… As carambolas ficam em lugar de destaque,
porque depois de cortadas horizontalmente formam uma estrela de cinco
pontas que, como se sabe, é um dos símbolos do esperanto.
4 – A rede rodoviária
As estradas e autoestradas são bem dimensionadas e em muito bom
estado em toda a ilha. Os automóveis são quase todos novos e modernos.
Há cerca de 15 anos quando estivemos em Cantão, ficámos
impressionados com a concentração de ciclistas que, nas horas de ponta,
confluíam de todo o lado, ocasionando um verdadeiro caos. Atualmente
em Haikou, as bicicletas foram substituídas por motorizadas. O caos não
deixa de acontecer, mas há uma maior disciplina.
Notámos ainda que os peões são mais desconsiderados do que na
Europa. Eles só têm a primazia quando há semáforos. Nas zebras sem
semáforos, os cidadãos atravessam por sua conta e risco, sem qualquer
prioridade.
5 - Tansportes públicos
Só os utilizámos no último dia para ir ao Museu. Cada viagem custa uma
simples nota de iuan, ou seja, aproximadamente 14 cêntimos de euro. O
sistema é simples: o passageiro ao entrar deita a nota numa caixa com
uma ranhura e avança sem mais perdas de tempo. As viaturas pareceram-
me suficientemente confortáveis e as paragens são anunciadas
previamente.
6 – A alimentação
É muito diferente da nossa, mas julgamos ser mais saudável. O arroz está
omnipresente em todas as refeições. É cozido a vapor o que o torna mais
saboroso. Num supermercado próximo do hotel contámos 15 espécies de
arroz a granel nas respetivas tulhas, mas seguramente que haverá muito
mais. Os chineses não usam pratos, nem toalhas nas mesas. Na maior
parte dos restaurantes também não há guardanapos, quem os quiser tem
que os levar no bolso. Os talheres são constituídos por dois pauzinhos e
uma curta colher de louça para a sopa. Com os pauzinhos é mais difícil
comer à pressa o que até é mais conveniente para uma boa mastigação.
Comem os legumes geralmente cozidos a vapor, pouca carne e pouco
peixe. Os galináceos cozidos vêm inteiros para o centro das mesas. Faz
impressão ver os frangos com a cabeça, a crista, as asas, os pés e depois
tentar trinchá-los com os pauzinhos. Praticamente não bebem leite, nem
comem manteiga, nem queijo. Os pequenos-almoços constavam
geralmente de um caldo de arroz ou massa, pires com legumes picantes,
tiras de pepinos em conserva e um ovo cozido. Todos os dias o ovo cozido
era imprescindível. Muitos europeus mais sensíveis fugiram destes
pequenos-almoços. Porém a alternativa é fraca porque o pão não presta.
É demasiado mole e tem açúcar misturado.
7 - O Setor Imobiliário
O incremento da construção de novas habitações é uma evidência em
toda a ilha. As casas velhas e feias, sem cérceas, onde não entra o sol,
estão, pouco a pouco, a ser demolidas e em seu lugar crescem prédios
modernos com dezenas de pisos. Visitámos alguns andares-modelo junto
ao rio que atravessa Haikou e, na verdade, nada ficam a dever em
“design”, comodidade e luxo aos melhores que se constroem na Europa.
Em particular, na parte sul da ilha, onde o clima e as praias coralinas são
paradisíacas, os hotéis de 4 e 5 estrelas à volta da cidade de Sanya são
numerosos e caros. Tal deve-se à crescente afluência de turistas, não só
chineses, mas também australianos e russos. Muitas legendas
encontravam-se escritas em inglês e em russo. Resta-nos aguardar que
daqui a uns anos estejam também redigidas em esperanto.
8 – Ano Novo Lunar
Este ano a passagem do ano ocorreu a 22 de janeiro, mas os ruidosos
festejos prolongaram-se por toda a semana seguinte. O fogo-de-artifício e
o rebentamento de petardos a toda a hora do dia e da noite foram, para
nós, muito penalizadores. Em cada largo na cidade ou no campo
acumulavam-se montões de pequenos papéis vermelhos, que eram os
restos da famigerada pirotecnia. As casas particulares e os espaços
públicos encontravam-se primorosamente decorados com lanternas,
dragões e flores de papel multicoloridos. No grupo dos europeus, houve
quem gostasse muito destes festejos tradicionais. Mas para mim, com o
devido respeito pelos ancestrais costumes, eles foram muito
incomodativos. É claro que a tradição inclui também o reencontro de
famílias e comezainas à grande e à chinesa, mas sobre isso já estamos
conversados.
9 – Higiene
Nota negativa para a higiene. Os chineses (os homens) fumam muito e
escarram para o chão com frequência. Não existem casas-de-banho,
mesmo nos restaurantes mais chiques. Há apenas retretes imundas, sem
papel higiénico, sem sabão e muitas vezes sem água corrente. O utente
que for mais cuidadoso serve-se de uma barrica de onde tira, com uma
vasilha, a água necessária para arrastar os dejetos. Na universidade onde
estudámos e trabalhámos a ajudar os iniciantes, era isto que fazíamos
diariamente. No bolso tínhamos que guardar sempre um rolo de papel,
para o que desse e viesse. Vantagens: poupam água e energia. Não se
riam! Isto multiplicado por 1.400.000.000 de habitantes (mais milhão,
menos milhão) proporciona uma poupança do caraças e dá para comprar
muitas empresas de eletricidade dos países ditos evoluídos.
Em Haikou é normal vermos muitas ratazanas a deambular pelas ruas
perante a indiferença dos locais que quase as veem como animais
domésticos. Elas entram nos quartos do hotel e até mesmo nas salas de
aula e era cá cada bicho!
10 – Mau tempo
A organização do evento aliciou-nos com a promessa de tempo soalheiro
e uma temperatura média de 22º durante o mês de janeiro. Também os
poucos folhetos turísticos que apanhámos, escritos em inglês, diziam o
mesmo. Grande desilusão! Praticamente só tivemos um dia de sol. Nos
restantes dias fez nevoeiro e choveu uma morraceira miudinha e
peganhenta muito desagradável. A temperatura só raramente chegou aos
20º. A maior parte dos participantes estrangeiros, equipados com
vestimentas de verão, de acordo com as recomendações, não tiveram
outra alternativa senão comprar guarda-chuvas e agasalhos que aqui,
felizmente, alguns são muito em conta.
11 – Preços
Os bens essenciais são muito baratos, sobretudo as comidas se
compararmos com as ocidentais. O que paguei por um pequeno-almoço
rasca no aeroporto de Amsterdão, daria para 6 almoços na universidade e
ainda levar uma caixa adicional de arroz para o jantar. De facto, o preço de
uma refeição normal, sem sobremesa nem café, que aqui não se usam,
equivale a 1 euro.
12 – Língua chinesa
A língua oficial da China é o mandarim, mas no país há centenas de
idiomas completamente diferentes uns dos outros. O mandarim funciona
um pouco como o esperanto, pois facilita o entendimento rápido entre
todas as etnias. Os caracteres que enformam a escrita, ideogramas, são os
mesmos em qualquer dos idiomas. Aquela sucessão de “fivelas” que
assustam os ocidentais, constituem afinal uma mais-valia notável.
Contudo, no ensino básico, já se ensina também a escrever em “pinyin”,
ou seja, em alfabeto latino, acrescido de alguns sinais próprios. Em chinês
a pronúncia das vogais é para nós muito complicada porque exige uma
boa audição. Há quatro tonalidades a saber: alta, ascendente,
descendente-ascendente, descendente. Depois temos que considerar que
as palavras não surgem isoladas. A sua combinação com outras palavras,
antes ou depois (uma espécie de prefixos e de sufixos) pode proporcionar
milhares (não exagero!) de significados diferentes.
Da mesma maneira que um ocidental precisa de muito tempo para
pronunciar bem uma expressão chinesa, também os chineses têm o
mesmo problema para entrar nas línguas ocidentais, esperanto inclusive,
embora para este seja mais fácil. Estive dez minutos a treinar um jovem
universitário a pronunciar “parolas” que significa “falas” em Esperanto. A
tendência era dizer “palola”, pois o som “r” raramente é utilizado.
13 – Cultura
Nas excursões que tivemos oportunidade de efetuar aos domingos (aos
sábados trabalha-se), vimos locais turísticos com excelente organização,
refletindo uma civilização antiquíssima onde sobressaía sempre a
sensibilidade artística e cultural: jardins botânicos, parques geológicos,
aldeias e edifícios antigos, atividades agrícolas e comerciais ligadas ao
aproveitamento dos cocos, da cultura do café, do chá, do arroz e da pesca.
A culminar, tivemos no último dia, a visita ao Museu de Haikou, instalado
num primoroso edifício monumental, sem exagero, um dos mais
imponentes do mundo. Ficou-nos gravada na retina a exposição
temporária de pinturas de Li Zijian pela sua originalidade e extrema
beleza. A exposição já esteve nas principais cidades mundiais, mas
infelizmente ainda não passou por Lisboa. As exposições permanentes
dispostas em três espaçosos pisos contam muito sobre a História, a
etnografia e o encontro de culturas que se cruzaram na ilha de Hainan. Em
vão procurámos indícios da presença portuguesa. Afinal os nossos
compatriotas foram os primeiros ocidentais a chegar àquelas paragens. Os
Portugueses dos séculos XVI e XVII estiveram em Cantão, estiveram na
Formosa, chegaram ao Japão e estabeleceram-se em Macau, não muito
distante desta ilha. Nada encontramos, a não ser uma referência ao início
do cristianismo em 1598 que imaginamos, com a presença natural dos
missionários lusos, ávidos de espalhar a fé, mas também de negociar e
obter riquezas, que nem só do espírito vive o Homem.
14 – A afabilidade chinesa
Uma nota final (porque embora fique muito por dizer, o texto já vai longo)
para a afabilidade chinesa. Por todo o lado encontrámos simpatia e
vontade de ajudar, pese embora as dificuldades de comunicação, visto
que até os pequenos gestos têm significados diversos.
Em Hainan a população é muito laboriosa e ciosa de cultivar os seus
pedacinhos de terra e comercializar. Num mês inteiro não vimos “grafitis”,
nem gente andrajosa, nem rapazes de brinco na orelha ou corpo tatuado.
Não presenciámos discussões nem desacatos. Quais formiguinhas, toda a
gente seguia nos carreiros a caminho das suas obrigações quotidianas.
Miguel Boieiro
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