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O CERCO


por Miguel Boieiro




      Esta narrativa foi escrita há mais de meio século, ficando guardada no baú da memória e no arquivo dos papéis estudantis. Em 1986 foi publicada na Revista “Movimento Cultural” dos Municípios do Distrito de Setúbal como mera curiosidade. Peço aos leitores que tiverem paciência para ler este conto até ao fim que não se detenham nos circunstancialismos gramaticais, nem no estilo literário, algo ingénuo, do adolescente que aspirava a ser escritor, muito embora na casa paterna e vizinhanças ninguém soubesse ler nem escrever. O texto surge, de novo, à luz para relembrar aspetos curiosos de uma arte de pesca que já se extinguiu. Afinal, todo o mundo é feito de mudança como cantava o nosso épico Luís de Camões, no século XVI. O objetivo é também homenagear um irmão e dois sobrinhos, pescadores profissionais, que tiram o seu sustento neste imenso Mar-Tejo onde, segundo o cruzado Osberno que, no século XII, ajudou Afonso Henriques a conquistar Lisboa, o estuário era tão úbero que se compunha por 2/3 de água e 1/3 de peixe.

      Tudo estava mais claro. O céu, as coisas e eu. Sempre ia ao “cerco”.

      Quando era miúdo ia muita vez, tinha vício mesmo. Mas agora era diferente. Ia tornar meras recordações em realidade. Na véspera tinha pensado muito. Ir ou não ir, eis o problema. Sim porque a faina começava sempre cedo, por volta das seis, mais ou menos, e não me apetecia nada levantar àquela hora.

      Após um ano escolar bastante duro e de me levantar diariamente às seis e meia, precisava de descanso. Em férias não me apetecia fazer mais sacrifícios. Na véspera, ao deitar-me, após ter pesado os prós e os contras, cheguei à conclusão que não iria. No outro dia quando o meu irmão me acordou no meio de alegre algazarra, respondi furioso.

      - Estás maluco se pensas que me vou levantar por causa duma coisa dessas. Vai tu sozinho!

      - Eh pá anda! Já estão quase a pescar!

      Não respondi e virei-me para o outro lado. Porém, não tornei a adormecer. Na minha mente giravam as suas últimas palavras.

      - Ah não vens? Pois olha, é o que perdes!

      Comecei a ficar excitado. Já não tinha mais sono, e depois, poderia dormir a sesta.

      Subitamente, mudei de ideias, saí da cama e vesti-me. Tudo feito num ápice. A roupa era a mais velha que tinha e os sapatos já estavam postos de banda. Arregacei as calças e as mangas da camisa até mais não poder. Procurei uma foice velha e um chapéu de palha que pus dentro de uma lata e corri em direção à praia. Enquanto corria, mastigava um bocado de pão com queijo que a minha mãe me tinha dado. Mas, talvez por estar cansado de correr, quando cheguei à praia, achei o queijo seco e o pão sem gosto e acabei por guardar o restante no bolso da camisa.

      Olhei à minha frente e vi que a malta já lá estava toda. Então coloquei o chapéu na cabeça, apertei melhor os sapatos e meti-me à lama. A cada passada, ouvia atrás o som pitoresco que a água fazia ao preencher os buracos feitos pelos meus pés.

      O cerco era uma coisa muito “gira”. Um grupo de pescadores espetava varas na lama quando estava baixa-mar. Essas varas sustinham a rede que se levantava depois da maré encher. Algumas vezes o cerco era fechado. Isto é, vinha até à praia, sendo esta o diâmetro de uma semicircunferência formada pela rede. Quando a maré vazava, o peixe que se tinha aproximado da margem, tinha que voltar com a enchente. Então, encontrava a rede erguida à sua frente que o impedia de passar, deixando, por sua vez, escoar a água pelos finos buracos da rede. Era a vez dos pescadores procederem à apanha do peixe que agonizava sobre a lama. Nós, os rabiscadores, íamos a seguir e apanhávamos o peixe que eles não viam ou tinham deixado para trás.

      O que trazíamos, o chamado “peixe de rio”, era uma delícia e servia-nos de muito arranjo. Mas não íamos ao cerco só para o “governo da casa”. Íamos por prazer que, aliado ao entusiasmo, gerava vício, um vício benéfico. Certas vezes não compensava porque se despendia bastante esforço, sujava-se muito a roupa e o peixe apanhado era pouco. Mas, semelhantes desfortúnios serviam, não obstante, para incentivar a vontade de participar em mais cercos. Até que se trouxesse peixe suficiente para toda a família e para dar a vizinhos e amigos.

      Embora tivesse caminhado tão depressa quando podia, quando lá cheguei, já tinham começado a pescar. Não desanimei e pegando na foice, fui pesquisando o que se encontrava ao redor, enquanto me aproximava do grupo.

      A foice é o instrumento utilizado, para além dos nossos conhecimentos e do golpe de vista. Com o bico da foice vamos traçando a lama e algum peixe que se tenha escondido nela é puxado para fora. Estão, neste caso, as enguias e os linguados.

      Não comecei mal, pois logo de entrada, a foice levantou um soberbo linguado. É também de salientar, saber identificar o barulho que os peixes fazem de encontro à lama, consoante a sua espécie. Há ainda o rasto que cada um faz ao mover-se que é igualmente bastante importante.

      Quando cheguei ao pé do grupo já todos tinham peixe nas latas e cestos. Eu levava só um linguado, mas, a pouco e pouco fui enchendo a lata. Linguados, robalos e pequenas tainhas abundavam. Enguias eram poucas. Os pescadores diziam que o ano tinha sido pouco propício e que os preços de venda bem o demonstravam. Lembrei-me que tinha visto na praça estarem a vendê-las a vinte escudos e fiquei contente por ter duas na lata. Continuámos marchando na lama, sempre curvados, manejando as foices e muito sujos. Os olhos de cada um eram como os pequenos faróis das pilhas elétricas, procurando incisivamente.

      - É pá, vamos a andar depressa que já lá vem a água!

      Pensando mais no sentido da frase do que no autor dela, olhei para o poente onde a maré vinha alargando, a pouco e pouco, os seus domínios. Custava-me a crer que aquela água era uma natureza mineral. Não, a água era um ser vivo. Aquela água mexia-se. Avançava ou recuava. Tinha fome e sede e, por isso, se alimentava. E quando a maré enchia, lançava na praia os seus excrementos inúteis.

      O grito “cuidado”, pronunciado de modo brusco, veio quebrar as minhas divagações de filosofia barata.

      Lá à frente tinham descoberto uma pequena urge. A urge é um peixe que pertence à família dos ragídeos e, como tal, é bastante parecida com as raias. Tem a mesma cabeça viscosa e o mesmo corpo espalmado com as barbatanas dorsais desenvolvidas, mas a sua espinha dorsal prolonga-se numa cauda comprida que termina num pico semelhante às pontas dos juncos. Esse pico contém veneno e causa uma picadela tão dolorosa como a do lacrau. Por tal motivo, há quem lhe chame o “lacrau do mar”. Maneja o rabo como um chicote, com a ponta em riste. Ai de quem for tocado. Sofre uma dor que dura 24 horas, caso não seja imediatamente socorrido. Felizmente, nas minhas andanças pelos cercos nunca deparei com nenhum acidente desta natureza. As urges só vêm “até à terra” em dias quentes. Lembro-me que, uma vez, em miúdo, cheguei a apanhar vinte urges, havendo nesse dia uma grande caldeirada. Eram de diversos tamanhos. Espetava-se vigorosamente o bico da foice no seu lombo e zumba, dentro da lata. Depois, em casa, era só cortar-lhe o rabo, que se enterrava no chão, e retirar-lhe as vísceras. A sua carne é tão saborosa como a da raia e admito que seja pouco conhecida nos mercados apenas pela sua perigosidade e feio aspeto depois de retirada a cauda.

      Mais pequenas que as urges que chegam a pesar alguns quilos, aparecem, de tempos a tempos, as tremelgas. Pertencem igualmente à mesma família e são iguais às raias na forma. Porém, se lhes pomos a mão quando estão vivas, recebemos uma sacudidela semelhante a um pequeno choque elétrico. Depois de mortas, perdem essa propriedade.

      É curioso verificar como a natureza dotou os seres de meios de defesa realmente variados.

      As tainhas servem-se da sua velocidade de nadar e da capacidade em saltar. As enguias são tão viscosas que escorregam facilmente de qualquer presa. Os linguados valem-se do mimetismo para passarem despercebidos.

      Há, porém, velhos pescadores, cuja argúcia ultrapassa todas as dificuldades. Lembro-me do cuidado que tinha em não me colocar logo atrás dos homens que levavam cestos de cana. Estes eram experientes pescadores e quem fosse atrás deles, dificilmente apanharia qualquer coisa. Parecia-me impossível como descobriam e capturavam enguias tão grossas como as que via nos seus cestos. Conheciam os linguados à distância e quando punham a mão era logo para “caçá-los”. Nós, os rapazinhos, se insistíssemos naquele modo de vida, seríamos depois como eles, diziam-nos. Eu acreditava, pois via-me nas primeiras vezes que ia aos cercos, recolhendo apenas o peixe-rei que ficava com a cabeça entalada nos buracos da rede, disparando sofregamente para montículos de lodo que pareciam mesmo linguados e regressar depois com a lata muito levezinha onde brilhava o fundo metálico. Mas os velhos pescadores de camisolas de lã de tons pardos cinzentos e pretos, de grandes botifarras de borracha que chegavam às ancas e com cestos de cana torcida e retorcida, eram realmente uns mestres naquelas fainas. Uma vez, um conseguiu descobrir um congro enorme. O bicho pôs-se em pé e deslizou rapidamente pela lama com o pescador no seu encalço. Encontrando um rasgão na rede o congro enfiou por ele. O pescador então levantou a rede e seguiu-o tropeçando, caindo e erguendo-se através da imensidão lamacenta. O congro vendo o caminho livre galopou doidamente para o mar. Quando o seu perseguidor regressou, vinha abatido e não houve ninguém que o consolasse. É que não perdoava a si mesmo o ter deixado escapar tão invulgar peixe. Invulgar pelo seu tamanho, pois alguma vezes aparecem alguns do tamanho de enguias. Distinguem-se destas pela sua cor esbranquiçada e pelo tom avermelhado da sua barbatana dorsal.

      Atravessamos agora uma pequena extensão de ostras que pouco peixe tinha. Apenas alguns robalos que estendiam as suas barbatanas numas poças de água. Aqui podíamos andar firmemente porque não havia lodo. Mas ai de quem viesse descalço. As ostras envolvidas por cascas irregulares e pontiagudas retalhavam-lhes duramente a sola dos pés. E se há lama por cima, então é bastante pior. Não as vemos e apenas sentimos metade dos cortes que nos fazem. Mais tarde é que são elas, quando verificamos na planta dos pés os mapas tão severamente traçados.

      O cerco está enfim a terminar pois a maré invade agora a armação. Há muitos que já vão empreendendo o regresso e eu resolvo imitá-los. Estou cansado. Doem-me os membros e os rins. O cerco não foi mau! Foi mesmo bom! Tenho a lata cheia e estou satisfeito! Apoiando as mãos no bordo da lata, empurro-a suavemente por aquela planície enlameada. Comparo a cena a um trenó deslizando pela neve. Somente a neve é branca e a lama é bem escura. Sinto na cara salpicadelas de lodo seco pelo sol. Enfim, a água tudo lava, consolo-me.

      Chego depois à praia e nem sequer perco tempo a lavar o peixe. Tenho fome. Lavo as mãos e recomeço a mastigar o pedaço de pão que tinha guardado no bolso da camisa.

      Perguntam-me: - Então o cerco?

      Instintivamente respondo: - Nada mau!

      A minha cabeça vai cogitando. Um dia, hei de escrever qualquer coisa sobre isto… e escrevi!



      MIGUEL BOIEIRO

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