2022-06-29
PORTO DE ABRIGO


Risoleta C Pinto Pedro





Foi uma altura em que me encontrava muito cansada de um recente Covid intensificado por cuidados a mãe em igual situação. Preocupações passadas, fui ao Porto, como já estava providencialmente agendado, algum tempo antes, por alheias razões. O Porto, desta vez, foi lugar para andar. Coisas a tratar relacionadas com escritas várias, lançamento de uma colectânea, encontros com amigos, encontros com livros, museus, inspiração para novas escritas, agendamento de eventos próximos, mas também uma necessidade de percorrer o espaço, alegrar os olhos e admirar a beleza. Entre 12 a 15 quilómetros a pé por dia. Cansar o corpo, repousar o espírito. Tempo muito bem governado, que implicou escolhas. Alguns livros me acompanhavam de Lisboa, sendo um deles o extraordinário Dicionário Toponímico Ilustrado de Rosalvo Almeida, que fui lendo no comboio, e outro: a Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, de Agostinho da Silva. Deste último, recolho algumas palavras que me foram acompanhando o andar, a propósito da crise surgida em Portugal, como aquilo que considera o desaparecimento do teatro, pois vê como culminante o teatro medieval, que considera autêntico, audacioso: «Portugal em teatro para Portugal». Que não era só literatura ou só espectáculo, mas «que cumpria civicamente o seu dever de prestar culto aos que pela nação tinham caído; que cumpria aristotelicamente o seu dever catártico», o dever de mostrar «a sua miséria e a sua grandeza». Este teatro que Portugal tinha era «o teatro que Portugal nunca mais fez». Não por falta de talento teatral dos portugueses, mas porque depois de terem «criado um tal teatro» não valia a pena «vir a cair ao nível do teatro que havia de fazer mais tarde o resto da Europa, todo o resto do mundo», com excepções: «o teatro que heroicamente persiste indu, chinês ou japonês». O processo é aquilo que designa como a dessacralização do teatro, a decadência do «teatro heróico para o teatro realista». E «para reatar comparações: depois de ter sido Ésquilo valia a pena ser Plauto?». Por isso, considera Gil Vicente não um «esboço de teatro», mas «um resto de teatro». Assim descreve, magistralmente, a infelicidade que vê:

«Habituado a não fazer as coisas por metades, a ser inteiro em tudo quanto era, Portugal recusou-se a fazer metades de teatro. E calou-se nos tablados».

É da falência de espírito responsável pela cessação «de uma actividade tão fortemente espiritual como esta» que vai à procura. Já vamos ver que tem tudo isto a ver com o Porto.

Um dos responsáveis é, no seu entender, o Infante D. Henrique, por quem «se fez história; mas se diminuiu o Espírito». Atribui ao caso, «o ser metade inglês e metade português», considerando que a grandeza do Infante «está no que tem de português, na sua concepção religiosa da vida, na sua paciente persistência, nas suas visões ou sonhos do Espírito Santo». Mas critica-o no que diminui a expansão portuguesa: «a dureza de sacrificar irmãos, e três provavelmente, um D. Fernando, um D. Duarte, um D. Pedro também; o gosto do isolamento, separando-se de um povo cujos reis com ele dançavam noites inteiras à luz de archotes ou com ele discutiam, numa verdadeira democracia, os negócios do Reino; e a terrível tentação de fazer que importe nas empresas o lucro material.» E remata: «o lado inglês do Infante, para manter o homem, matou o deus».

Considera esta «a linha de quebra, o pequeno passo errado» determinante do futuro, «porque estamos num universo que também é de física». A quebra da fraternidade.

Por isso, pessimista, o que não é muito do seu modo de ser, cita o grande Sá de Miranda: «E tudo o mais renova, isto é sem cura». É esta fraternidade que vai rareando numa cidade invadida como é Lisboa, fraternidade que ainda se encontra no Porto, onde os invasores se ficam, preguiçosamente, pela Ribeira, actual zona a evitar. Tudo o resto é “limpo” e belo, mesmo as partes mais decadentes, mesmo os imensos prédios tradicionais a gritarem por recuperação. Mas atenção: a que preço? Que não se siga o exemplo de Lisboa, de onde os habitantes foram expulsos das mais diversas e cruéis maneiras.

Após esta primeira falta apontada por Agostinho, outras vão suceder-se a que aquela abriu caminho, usando a imagem da «fenda, que pode ser insignificante, e não o era no caso presente de Portugal, mas que vai a pouco e pouco, por seus alargamentos, acabar na ruína das muralhas». Não posso pormenorizar aqui, por causa da extensão em que nos desdobraríamos, em que já vamos, quais as falhas seguintes, mas passemos umas páginas, passemos pela entrada de Maquiavel com D. João II, o alargamento da «tal fenda que era inglesa», já uma brecha, por onde «vão entrar e tomar conta da inteira história de Portugal que por completo destroem tudo quanto se pudera levantar de extraordinário na Idade Média: de modo que se poderia dizer que Portugal depois do século XV, só vai ser grande naquilo que continua a ser medieval; no resto se empequenece». Refere-se ao tratamento dos judeus, «agravado por D. Manuel e pelos reis seguintes», devido a «interesses europeus ou de talhe europeu», que os repeliu. Refere-se, também, à outra «consequência do gesto real português», o acontecimento «muito grave para o conjunto da civilização europeia: soltou sobre a Europa um judeu completamente virado agora, por ressentimento e desespero, para o tal pendor da vida prática que já o tinha levado a, desprezando o Salmo, emprestar a bom juro, e a cristãos, o dinheiro que, no fundo, de cristãos era. E é este judeu agudamente arguto, diligente e resistente, sabendo aguentar todas as humilhações e sabendo também não as poupar no momento oportuno, o grande agente daquela civilização de tipo germânico que nos nossos dias veio a dar, por um lado, os Estados Unidos, por outro lado a Rússia, até opor os dois blocos no que, com todas as consequências que, boas ou ruins, daí possam advir para a humanidade e com todas as diferenças que devamos pôr entre as duas orientações , não é mais do que um novo cisma das tribos.»

«Católico» é usado aqui não no seu sentido restrito, mas no original, de universal, como princípio de liberdade. Que é o que se respira no Porto. A sua toponímia revela todas as rebeliões, revoluções e inconformismo que foi vivendo esta cidade, a qual tem uma rua chamada da Constituição.

Mas Portugal, onde os forais que burgueses e populares se haviam feito «conceder cada vez mais amplos e de maiores garantias» começava a perder «para o lado dos reis». E aqui tínhamos Portugal «depois de ter assentado base de Império sobre sacrifício de irmão; depois de, secundando, outra base de império ter lançado sobre outro sacrifício de irmão, desta vez o judeu; o terceiro alicerce fundaria sobre terceiro sacrifício: o do direito concelhio ao direito cesarista, imperialista, anticatólico de Roma». Fui descansar até ao Porto, onde ainda existe a memória do sonho anterior à fenda, e mesmo o que foi trabalho foi descanso. Do Porto, refere Agostinho os «sisudos, calmos e precavidos cidadãos do Porto, ansiosos de poder renovar em outros mundos as liberdades da sua terra», esses que segundo ele, «se salvavam, porque ficavam fiéis às duas palavras de ordem, aos dois signos iniciais dos destinos de Portugal: a acção e a saudade».

Foi esta gente que encontrámos em cada esquina, que nos deu informações ou serviu generosas refeições, com um sotaque antigo e vibrante de quem não receia fazer-se ouvir.


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