2017-11-15



Risoleta C Pinto Pedro


Prantear a seca e a fome



«Eu só quero prantear
Este mal que a muitos toca;
Que estou já como minhoca
Que puzerão a seccar.»

Gil Vicente, Pranto de Maria Parda



Foi notícia recente, na comunicação social, a dependência de anti-depressivos e ansiolíticos por uma grande percentagem de portugueses. Muito frequentemente, os jovens, não todos, mas muitos, regam as suas festas com abundante cerveja. Num planeta que não lhes dá garantias de poderem perpetuar, com abundância dos elementos fundamentais à vida, a posteridade, afogam a angústia.

Tal como hoje brasileiros, africanos, asiáticos e outros, no tempo de Gil Vicente, na viragem do século XV para o XVI, mestiços e negros correspondiam a uma elevada percentagem (10%) da população de Lisboa. Bebiam, tinham sido cristianizados sem convicção e sem critério, tinham subempregos, o futuro não lhes sorria e a tristeza era a companheira com que dormiam.

Maria, a protagonista do Pranto de Maria Parda, é parda e pária. Sem futuro e, como os outros, cristianizada à força («Ó bebedores irmãos,/ Que nos presta ser christãos,/ Pois nos Deos tirou o vinho?/ Ó anno triste cainho,/ Porque nos fazes pagãos?»). Vive um problema físico e espiritual («triste, desdentada e escura»). Com que voz cantaria Gil Vicente os tempos de agora? Não sabemos, mas podemos imaginar. No testamento de Maria Parda, manifesta esta a intenção de mandar fazer um hospital que acolha.

«Item mais mando fazer
Hum espaçoso esprital,
Que quem vier de Madrigal
Tenha onde se acolher.»


Coisa que nos daria jeito, em tempos em que, por influência de governações ainda não convenientemente corrigidas, os hospitais se apressam a mandar embora os doentes, desde que não estejam visivelmente a morrer. Não são espaços de acolhimento, como deveriam sê-lo se o cidadão não fosse confundido com um cifrão e com um amontoado de peças entre as quais é necessário descobrir a que tem a avaria, ignorando quer o resto da matéria, quer o mistério que a anima. Quanto ao actual problema de Leiria e arredores, o mestre é quase oracular:

«E dos termos de Leirea
Dem-lhe pão, vinho e candea,
E cama, tudo de graça.»

E em tempo de seca, que no caso das queixas de Maria Parda é mais a do líquido que dá a videira, bem podemos tomar como metáfora a sua lamentação:

«Chorae todos meu perigo,
Não levo o vinho que digo,
Qu'eu chamava das estrellas,
Agora m'irei par'ellas
Com grande sêde comigo.»


Choram as gentes, as plantas e os animais. Mas também em 1521 a seca assolava e as pessoas morriam de fome, em Lisboa. Em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão e em casa onde não há pão afoga-se a fome no vinho. Ou a tristeza. Ou o vazio.

Mas segurar a fome era a preocupação da câmara de Lisboa. É tempo do reinado de D. João III, que vai ter de tomar providências. Como hoje, em situações de emergência que ameaçam tornar-se rotineiras. Para a maioria dos governos do passado e do presente, as trancas colocam-se depois da casa roubada. Acontece também que frequentemente os maiores responsáveis pela casa roubada, ou no mínimo os co-responsáveis, não são já os que colocam as trancas. Mas isso pouco importa ao povo. E que travões sejam colocados aos que se têm procedido como se tudo isto lhes pertencesse e tudo fosse legítimo. Que o pior da história deixe de se repetir e a vida irrompa na sua surpreendente bonomia. Que já é tempo!

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