Queridas Amigas, Queridos Amigos,
Faz pouco mais de um ano que aqui estive, nesta mesma sala, para vos
apresentar os meus livros "De Riso Largo Como a Lua Plena", contos, e "Viagem
ao Jardim da Ira", onde reuni 40 anos de poesia. Volto hoje ao convívio do vosso
afecto para vos trazer dois livros novos, "Crónica dos Dias Pardos" e "Alegoria do
Mar".
Tal, porém, só é possível porque podemos contar com o acolhimento desta casa
de Cultura, muito mais do que simples lugar de comércio de livros, que dá por
nome de Unicepe, cujo quinquagésimo segundo aniversário ontem mesmo se
assinalou e se regista com muita alegria, porque podemos contar com a gentileza
dos seus responsáveis e dos seus trabalhadores, aqui representados por Rui Vaz
Pinto, a quem nos ligam afectuosos laços de amizade e porque, claro, podemos
contar com o tamanho do vosso abraço. Bem-haja a todos vós pela atenção e
carinho que me dedicam.
Os livros que vos trago hoje só são novos porque a sua edição é do ano que
decorre. Na realidade, ambos estão escritos há praticamente três décadas,
repousavam no fundo de uma gaveta, de onde foram retirados pelo interesse de
Jorge Castelo Branco, o editor e Amigo que em feliz hora conheci.
Em boa verdade, a sociedade portuguesa sempre foi conservadora. Séculos de
Inquisição e décadas de Estado Novo contribuíram grandemente para a situação
actual e o 25 de Abril, a mais recente alteração de regime político sofrida pelo
país, nada fez de significativo que pudesse mudar este quadro.
É verdade que as "Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas" desse espírito
indomável e livre que deu pelo nome de Bocage, escritas no século XVIII, só foram
publicadas meio século após a morte do seu Autor. Mas, olhando a forma como a
sociedade portuguesa actual cerceia os seus talentos, eu arrisco-me a dizer que se
escritores como Bocage, Guerra Junqueiro e Eça de Queiroz fossem nossos
contemporâneos enfrentariam inúmeras dificuldades para publicar, hoje, as obras
que produzissem porque o pensamento que revelam nas obras que nos legaram
escapa ao padrão e ao filtro político das editoras deste triste regime em que
vivemos. É minha convicção de que só mesmo na chancela de um Homem livre e
verdadeiramente democrático encontrariam apoio e acolhimento: refiro-me,
naturalmente, a Jorge Castelo Branco e à Seda Publicações!
Apesar de ter nascido em Estremoz, uma pequena cidade do interior alentejano
com um assinalável peso na História de Portugal, pois aí trabalhou D. Dinis, aí
morreu sua esposa, a rainha Dona Isabel, e seu neto, D.Pedro I, por ali andou D.
Nuno Álvares Pereira para construir o exército que derrotou os espanhóis na
batalha dos Atoleiros, ali tiveram lugar importantes movimentações de tropas e a
batalha do Ameixial da guerra da restauração da nossa independência, ali
ocorreram alguns episódios pouco dignos da nossa guerra civil que opôs liberais e
absolutistas e ali foi assinada a paz dessa mesma guerra, apesar de tudo isso
confesso-vos que a ficção histórica foi coisa que nunca suscitou o meu interesse.
Apenas os factos que por serem tão recentes se tornam contemporâneos têm
merecido a minha atenção. Estão neste caso a minha peça "Ao Atiçar do Lume",
sobre a repressão no Alentejo no tempo do Estado Novo, e o romance "Há
Sempre Um Sonho no Enquanto", a propósito do mesmo tempo histórico, ainda
muito presente nas vidas de tantos de nós.
É nesta sequência que aparece agora "Crónica dos Dias Pardos", elaborado a
partir do testemunho de alguém que cumpriu na Índia o seu tempo de serviço
militar obrigatório ao serviço do exército colonial português e acabou apanhado
pela justa rebelião da União Indiana, preso e humilhado pelos vencedores da
guerra e pelo poder político do seu próprio país.
O colonialismo, enquanto sujeição de um país a outro, será sempre desprezível. O
desejo de liberdade dos povos acorrentados será sempre objecto de exaltação.
Mas o aspecto mais chocante dessa guerra declarada a Portugal pela União
Indiana com o fito de recuperar as possessões conhecidas como Estado Português
da Índia, foi a ordem expressa emanada do governo de Salazar para que o
exército português resistisse ao invasor até ao último homem. A disparidade em
meios bélicos e humanos das forças em contenda era de tal forma abissal que tal
ordem equivalia a condenar à morte a totalidade dos integrantes do exército
português. Nenhuma honra, nenhum patriotismo justificariam alguma vez tal
demência!
Este livro expõe a situação vivida naqueles tempos de dramatismo, olhando-a a
partir da caserna dos soldados portugueses na perspectiva de ser cada um
daqueles homens um ser oprimido pela máquina que era obrigado a servir, o
exército português, e, ao mesmo tempo, uma ferramenta usada por essa
máquina para oprimir o desejo de libertação de um povo colonizado.
Correndo o risco da incompreensão de alguns leitores por não me colocar na
perspectiva do Exército Português, porque isso equivaleria a colocar-me no papel
de historiador do regime colonialista, eu segui nas minhas pesquisas um dos
métodos de investigação histórica praticado por um dos nossos mais ilustres
historiadores, Fernão Lopes, que, pelo rigor e imparcialidade, foi, sem dúvida, um
dos percursores da historiografia moderna: ouvi o testemunho pessoal de um
interveniente naqueles acontecimentos, soldado do exército português, cativo do
exército da União Indiana, desprezado pelo poder do seu país, que preferia vê-lo
morto, e humilhado pelo orgulho dos vencedores, como acontece sempre a quem
perde uma guerra mesmo tendo apenas nela papel de figurante. O testemunho
pessoal é redutor, na medida em que é limitado, mas tem a grande vantagem da
sua autenticidade. E, nesta ficção, a autenticidade é aquilo que mais conta!
Do ponto de vista literário este romance, que eu considero de caserna por, sendo
um escritor realista, não ter podido fugir a alguma linguagem menos própria que
acontece naqueles meios, até em bocas que o leitor não suspeitaria, "Crónica dos
Dias Pardos" apresenta uma particularidade: a de não ter uma personagem
central à volta da qual a trama se desenvolve. Aqui, são os acontecimentos que
condicionam e fazem evoluir a história.
A outra obra que vos trago é uma espécie de delírio, um exercício de estética
literária de difícil enquadramento. Confesso que na altura em que escrevi estas
obras, a minha pena dava nota de algum rigor formalista. Esta obra, que eu
enquadro na poesia, é prova disso.
"Alegoria do Mar" é um retrato caricatural de um povo de beira-mar, servo de um
deus que não é só um, são muitos, tantos os santos e lugares de culto e adoração.
O retrato de um povo que foi ensinado a esperar, se necessário milénios, de
joelhos de preferência. A caricatura de um povo que aprendeu a ser descrente
nas suas capacidades. O retrato de um povo que, na iminência de uma qualquer
tragédia, ao invés de arregaçar as mangas e fazer uso da força de que é capaz,
prefere ir a Fátima pedir milagres à Virgem. Neste livro fala-se, claro, de um povo
que vive num país que se chama Portugal! Um povo raro, capaz de eleger um
pedregulho para presidir aos seus destinos e, não satisfeito com isso, num acto de
puro masoquismo, o reelegeu. Um povo que depois de espremido durante quatro
anos foi capaz de voltar a votar nos seus algozes. Um povo que aguarda,
serenamente, a decisão que um pedregulho há-de tomar sobre a valia do seu
voto. Um povo assim é forçosamente triste. Que outro destino um povo assim
pode ter para além da servidão? Todavia, foi deste povo que eu nasci, a este povo
pertenço, é a este povo que eu amo. Tenho consciência de que o que escrevo de
pouco vale. Não passará de um brevíssimo sopro. Mas que felicidade seria se, um
dia, um sopro se juntasse a outros sopros e se fizessem tempestade que
acordasse o povo que dorme neste país de beira-mar!
Estes livros que vos apresento hoje, apesar de muito diferentes entre si, respiram
o seu autor mas, pelas razões atrás ditas, não vêem a luz do dia na sequência
desejável. Por outro lado, penso que estes livros, a par de "Exausto Exílio", uma
obra de poesia lírica escrita durante o mesmo período e publicada em 2012 pela
Edium Editores, outra chancela de Jorge Castelo Branco, expressam uma das
características literárias que me define: algum refinamento formal que se revela
no uso do menor número possível de palavras para dizer um pensamento,
descrever uma acção ou retratar uma personagem. Na minha escrita as
repetições são raras e as descrições são reduzidas ao essencial. Ao leitor é
deixado um amplo espaço para que possa, ele também, imaginar os cenários e
desenhar as personagens na certeza de que tudo o que possa cortar ritmo à
ficção e instalar monotonia é extirpado da narrativa. Ao fim e ao cabo, a leitura de
um livro é sempre um acto de cumplicidade entre o leitor e o escritor. E os meus
leitores merecem-me o maior respeito!
Com a publicação destes dois livros pretendo também homenagear dois amigos
de longa data, Manuel de Seabra e Vimala Devi, dois "estrangeirados", radicados
em Barcelona há várias décadas, que, através das suas obras, têm prosseguido a
nobre missão de lançar os alicerces de uma sociedade mais igual, onde a
compreensão entre os povos traga paz ao mundo e o viver seja mais feliz.
Manuel de Seabra, nascido em Lisboa, juntamente com Vimala Devi, goesa, sua
esposa, além de uma valiosa obra literária individual, publicaram em parceria "A
Literatura Indo-Portuguesa" e criaram o "Grande Dicionário Português-Catalão".
Manuel de Seabra honrou-me com o Prefácio à "Crónica dos Dias Pardos".
Escreve-se para exorcizar fantasmas, para realização pessoal, para concretizar
sonhos. Eu também escrevo por essas razões mas, principalmente, escrevo para
mudar o mundo.
E é por isso que vos convido, queridas Amigas, queridos Amigos, a lerem os meus
novos livros. E a lerem também os restantes. E ouso pedir-vos ainda que, se a sua
leitura vos for gratificante, os aconselhem a outros amigos vossos. Só assim
poderá vencer-se o muro de silêncio com que os "media" castigam a minha obra.
Muito obrigado a todos vós por terem vindo. Muito obrigado pela atenção que
me dispensaram. No afecto das vossas mãos, os meus filhos, isto é, os meus
livros, vão em muito boa companhia!
Joaquim Murale,
Porto, Livraria Unicepe, 20 de Novembro de 2015.
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