2015-11-20, sexta-feira, 18h30:

lançamento do livros "Crónica dos Dias Pardos" + "Alegoria do Mar",

de Joaquim Murale






Queridas Amigas, Queridos Amigos,

Faz pouco mais de um ano que aqui estive, nesta mesma sala, para vos apresentar os meus livros "De Riso Largo Como a Lua Plena", contos, e "Viagem ao Jardim da Ira", onde reuni 40 anos de poesia. Volto hoje ao convívio do vosso afecto para vos trazer dois livros novos, "Crónica dos Dias Pardos" e "Alegoria do Mar".

Tal, porém, só é possível porque podemos contar com o acolhimento desta casa de Cultura, muito mais do que simples lugar de comércio de livros, que dá por nome de Unicepe, cujo quinquagésimo segundo aniversário ontem mesmo se assinalou e se regista com muita alegria, porque podemos contar com a gentileza dos seus responsáveis e dos seus trabalhadores, aqui representados por Rui Vaz Pinto, a quem nos ligam afectuosos laços de amizade e porque, claro, podemos contar com o tamanho do vosso abraço. Bem-haja a todos vós pela atenção e carinho que me dedicam.

Os livros que vos trago hoje só são novos porque a sua edição é do ano que decorre. Na realidade, ambos estão escritos há praticamente três décadas, repousavam no fundo de uma gaveta, de onde foram retirados pelo interesse de Jorge Castelo Branco, o editor e Amigo que em feliz hora conheci.

Em boa verdade, a sociedade portuguesa sempre foi conservadora. Séculos de Inquisição e décadas de Estado Novo contribuíram grandemente para a situação actual e o 25 de Abril, a mais recente alteração de regime político sofrida pelo país, nada fez de significativo que pudesse mudar este quadro.

É verdade que as "Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas" desse espírito indomável e livre que deu pelo nome de Bocage, escritas no século XVIII, só foram publicadas meio século após a morte do seu Autor. Mas, olhando a forma como a sociedade portuguesa actual cerceia os seus talentos, eu arrisco-me a dizer que se escritores como Bocage, Guerra Junqueiro e Eça de Queiroz fossem nossos contemporâneos enfrentariam inúmeras dificuldades para publicar, hoje, as obras que produzissem porque o pensamento que revelam nas obras que nos legaram escapa ao padrão e ao filtro político das editoras deste triste regime em que vivemos. É minha convicção de que só mesmo na chancela de um Homem livre e verdadeiramente democrático encontrariam apoio e acolhimento: refiro-me, naturalmente, a Jorge Castelo Branco e à Seda Publicações!

Apesar de ter nascido em Estremoz, uma pequena cidade do interior alentejano com um assinalável peso na História de Portugal, pois aí trabalhou D. Dinis, aí morreu sua esposa, a rainha Dona Isabel, e seu neto, D.Pedro I, por ali andou D. Nuno Álvares Pereira para construir o exército que derrotou os espanhóis na batalha dos Atoleiros, ali tiveram lugar importantes movimentações de tropas e a batalha do Ameixial da guerra da restauração da nossa independência, ali ocorreram alguns episódios pouco dignos da nossa guerra civil que opôs liberais e absolutistas e ali foi assinada a paz dessa mesma guerra, apesar de tudo isso confesso-vos que a ficção histórica foi coisa que nunca suscitou o meu interesse. Apenas os factos que por serem tão recentes se tornam contemporâneos têm merecido a minha atenção. Estão neste caso a minha peça "Ao Atiçar do Lume", sobre a repressão no Alentejo no tempo do Estado Novo, e o romance "Há Sempre Um Sonho no Enquanto", a propósito do mesmo tempo histórico, ainda muito presente nas vidas de tantos de nós.

É nesta sequência que aparece agora "Crónica dos Dias Pardos", elaborado a partir do testemunho de alguém que cumpriu na Índia o seu tempo de serviço militar obrigatório ao serviço do exército colonial português e acabou apanhado pela justa rebelião da União Indiana, preso e humilhado pelos vencedores da guerra e pelo poder político do seu próprio país.

O colonialismo, enquanto sujeição de um país a outro, será sempre desprezível. O desejo de liberdade dos povos acorrentados será sempre objecto de exaltação. Mas o aspecto mais chocante dessa guerra declarada a Portugal pela União Indiana com o fito de recuperar as possessões conhecidas como Estado Português da Índia, foi a ordem expressa emanada do governo de Salazar para que o exército português resistisse ao invasor até ao último homem. A disparidade em meios bélicos e humanos das forças em contenda era de tal forma abissal que tal ordem equivalia a condenar à morte a totalidade dos integrantes do exército português. Nenhuma honra, nenhum patriotismo justificariam alguma vez tal demência!

Este livro expõe a situação vivida naqueles tempos de dramatismo, olhando-a a partir da caserna dos soldados portugueses na perspectiva de ser cada um daqueles homens um ser oprimido pela máquina que era obrigado a servir, o exército português, e, ao mesmo tempo, uma ferramenta usada por essa máquina para oprimir o desejo de libertação de um povo colonizado.

Correndo o risco da incompreensão de alguns leitores por não me colocar na perspectiva do Exército Português, porque isso equivaleria a colocar-me no papel de historiador do regime colonialista, eu segui nas minhas pesquisas um dos métodos de investigação histórica praticado por um dos nossos mais ilustres historiadores, Fernão Lopes, que, pelo rigor e imparcialidade, foi, sem dúvida, um dos percursores da historiografia moderna: ouvi o testemunho pessoal de um interveniente naqueles acontecimentos, soldado do exército português, cativo do exército da União Indiana, desprezado pelo poder do seu país, que preferia vê-lo morto, e humilhado pelo orgulho dos vencedores, como acontece sempre a quem perde uma guerra mesmo tendo apenas nela papel de figurante. O testemunho pessoal é redutor, na medida em que é limitado, mas tem a grande vantagem da sua autenticidade. E, nesta ficção, a autenticidade é aquilo que mais conta! Do ponto de vista literário este romance, que eu considero de caserna por, sendo um escritor realista, não ter podido fugir a alguma linguagem menos própria que acontece naqueles meios, até em bocas que o leitor não suspeitaria, "Crónica dos Dias Pardos" apresenta uma particularidade: a de não ter uma personagem central à volta da qual a trama se desenvolve. Aqui, são os acontecimentos que condicionam e fazem evoluir a história.

A outra obra que vos trago é uma espécie de delírio, um exercício de estética literária de difícil enquadramento. Confesso que na altura em que escrevi estas obras, a minha pena dava nota de algum rigor formalista. Esta obra, que eu enquadro na poesia, é prova disso.

"Alegoria do Mar" é um retrato caricatural de um povo de beira-mar, servo de um deus que não é só um, são muitos, tantos os santos e lugares de culto e adoração. O retrato de um povo que foi ensinado a esperar, se necessário milénios, de joelhos de preferência. A caricatura de um povo que aprendeu a ser descrente nas suas capacidades. O retrato de um povo que, na iminência de uma qualquer tragédia, ao invés de arregaçar as mangas e fazer uso da força de que é capaz, prefere ir a Fátima pedir milagres à Virgem. Neste livro fala-se, claro, de um povo que vive num país que se chama Portugal! Um povo raro, capaz de eleger um pedregulho para presidir aos seus destinos e, não satisfeito com isso, num acto de puro masoquismo, o reelegeu. Um povo que depois de espremido durante quatro anos foi capaz de voltar a votar nos seus algozes. Um povo que aguarda, serenamente, a decisão que um pedregulho há-de tomar sobre a valia do seu voto. Um povo assim é forçosamente triste. Que outro destino um povo assim pode ter para além da servidão? Todavia, foi deste povo que eu nasci, a este povo pertenço, é a este povo que eu amo. Tenho consciência de que o que escrevo de pouco vale. Não passará de um brevíssimo sopro. Mas que felicidade seria se, um dia, um sopro se juntasse a outros sopros e se fizessem tempestade que acordasse o povo que dorme neste país de beira-mar!

Estes livros que vos apresento hoje, apesar de muito diferentes entre si, respiram o seu autor mas, pelas razões atrás ditas, não vêem a luz do dia na sequência desejável. Por outro lado, penso que estes livros, a par de "Exausto Exílio", uma obra de poesia lírica escrita durante o mesmo período e publicada em 2012 pela Edium Editores, outra chancela de Jorge Castelo Branco, expressam uma das características literárias que me define: algum refinamento formal que se revela no uso do menor número possível de palavras para dizer um pensamento, descrever uma acção ou retratar uma personagem. Na minha escrita as repetições são raras e as descrições são reduzidas ao essencial. Ao leitor é deixado um amplo espaço para que possa, ele também, imaginar os cenários e desenhar as personagens na certeza de que tudo o que possa cortar ritmo à ficção e instalar monotonia é extirpado da narrativa. Ao fim e ao cabo, a leitura de um livro é sempre um acto de cumplicidade entre o leitor e o escritor. E os meus leitores merecem-me o maior respeito!

Com a publicação destes dois livros pretendo também homenagear dois amigos de longa data, Manuel de Seabra e Vimala Devi, dois "estrangeirados", radicados em Barcelona há várias décadas, que, através das suas obras, têm prosseguido a nobre missão de lançar os alicerces de uma sociedade mais igual, onde a compreensão entre os povos traga paz ao mundo e o viver seja mais feliz. Manuel de Seabra, nascido em Lisboa, juntamente com Vimala Devi, goesa, sua esposa, além de uma valiosa obra literária individual, publicaram em parceria "A Literatura Indo-Portuguesa" e criaram o "Grande Dicionário Português-Catalão". Manuel de Seabra honrou-me com o Prefácio à "Crónica dos Dias Pardos".

Escreve-se para exorcizar fantasmas, para realização pessoal, para concretizar sonhos. Eu também escrevo por essas razões mas, principalmente, escrevo para mudar o mundo. E é por isso que vos convido, queridas Amigas, queridos Amigos, a lerem os meus novos livros. E a lerem também os restantes. E ouso pedir-vos ainda que, se a sua leitura vos for gratificante, os aconselhem a outros amigos vossos. Só assim poderá vencer-se o muro de silêncio com que os "media" castigam a minha obra. Muito obrigado a todos vós por terem vindo. Muito obrigado pela atenção que me dispensaram. No afecto das vossas mãos, os meus filhos, isto é, os meus livros, vão em muito boa companhia!

Joaquim Murale,

Porto, Livraria Unicepe, 20 de Novembro de 2015.

Joaquim Murale nasceu em Estremoz, Alto Alentejo, em 1953.

É licenciado em Psicologia pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada e pós-graduado em Consulta Psicológica e Psicoterapia.

Sobre "Crónica dos Dias Pardos"

Estes dias pardos de Joaquim Murale, mergulhando na recentíssima (em tempo histórico) invasão de Goa pela União Indiana, parecem-me insólitos (e valentes) nos tempos que correm. É como se a história se vingasse dos maus tratos que tem sofrido às mãos dos historiadores portugueses. Por tudo isso temos um conhecimento deturpado do nosso passado, o que nos leva a projectar o futuro equivocadamente.

A "Crónica dos dias pardos tem o mérito a um tempo do rigor e da ficção. É história rigorosa e é romance, o que faz dela uma peça literária notável e necessária. Oxalá não caia no esquecimento, como acontece com tanta frequência com textos em que o autor se atreve a desafiar a versão oficial dos factos.

Sobre "Alegoria do Mar"

Portugal tem sido, ininterruptamente na sua História, um país de pequenos ditadores, cujo principal orgulho é o de censurar, ignorando, cerceando, silenciando, os pensamentos que não caibam na medida dos seus, muito acanhados, horizontes. E se hoje temos um Portugal pequenino, dirigido por gentalha pequenina e com sonhos pequeninos é graças a esta ralé, que se reproduz como coelhos e enxameia os lugares de direcção institucional, que teima em perpetuar no país e na vida dos portugueses os tempos castradores de ignomínia e barbárie da Santíssima Inquisição. Os actos dos censores têm sempre consequências; causam dano, causam dor. Mas, tanto quanto a História lembra, sempre ficaram impunes. Até ver.


    


Fotografias de Francisco Chico da Emilinha