Hoje, ao meio-dia, estava eu sentado na mesa do costume, virado para a porta do restaurante. Vi-o entrar pela mão de um jovem, muito provavelmente seu filho, ou algum dos raros seres humanos que ainda guardam dentro do peito um coração em vez de uma pedra. Rosto chupado, coberto de pelos, desde o cabelo enrodilhado à barba grisalha e emaranhada, olhos lá no fundo de umas órbitas arroxeadas, fitava o infinito de uma qualquer galáxia para lá das paredes do restaurante. Vestia um casaco escuro muito coçado, de trespasse, caído do lado direito por força do uso e abuso.
Era mesmo ele, não tive dúvidas, o sem-abrigo que eu encontro todos os dias na Avenida dos Aliados, enfiado numa caixa de cartão, soerguendo a cabeça à passagem de alguém que lhe pareça suficientemente humano para se desapegar de uma moeda.
Sentaram-se na mesa frente à minha. O jovem, provavelmente seu filho, leu pausadamente o menu três ou quatro vezes, tentando libertá-lo da alienação da sua paisagem cósmica. Bacalhau assado na brasa… bacalhau à Braga… vitela na caçarola… bifinhos de frango…, mas o olhar fixo, sabe-se lá onde, não se desfazia. Pensei que estava pousado na televisão que ficava atrás de mim, mas olhando de esguelha, vi que estava preso no lado oposto, na parede nua.
Ao fim de uns minutos e de carinhosa paciência, o presumível filho conseguiu um assentimento no bacalhau na brasa. Pressentia-se que o apetite era pouco, ou melhor, já não era capaz de sentir o que é ter apetite. Habituado à fome, ter um nutrido prato na sua frente era um incongruente desábito. Lembrou-me os tempos da guerra, em que nós nos ríamos do perigo, tão habituados que estávamos a ele.
Quando esperava deste anónimo sem-abrigo uma sofreguidão faminta, nem consciência tive de um organismo que se habituara a desdenhar da fome e do apetite devorador dos que tudo comem e não deixam nada. Esboçou um sorriso desdentado nascido lá do fundo do desânimo, conseguiu lamber umas lascas do bacalhau, tragar dois goles de vinho e rir, não dando por isso, dos apetites do mundo, assim testemunhando, sem disso ter consciência, o ridículo de “O Mito do Normal”, de Gabor Maté.
Outubro de 2024
Adão Cruz
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