Espaço Associados


      


Basilicata – Província de gregos, romanos, normandos, sarracenos, aragoneses, itálicos e … esperantistas.


por Miguel Boieiro



Meia dúzia de portugueses, fortemente entusiasmados pela língua internacional, aventuraram-se a participar no 84º Congresso Italiano de Esperanto que se realizou de 26 de agosto a 2 de setembro de 2017 na cidade de Policoro, sita na província de Basilicata, bem ao sul da península italiana. O referido Congresso registou 212 inscritos oriundos de 30 países, todos irmanados nos ideais humanistas e culturais que caracterizam o movimento esperantista.

Sobre o Congresso

O Hotel Heracleia, engalanado com muitas bandeiras, nas quais sobressaía o pavilhão verde e branco do Esperanto, acolheu no seu salão as cerimónias de inauguração e de encerramento do congresso com a presença de ilustres autoridades locais e regionais. Sob o lema “Kultura kaj Komunicado en Europo”, que podemos traduzir por “Cultura e Comunicabilidade na Europa”, decorreram sessões paralelas em várias salas com intervenções de especialistas convidados para o efeito. Igualmente tiveram lugar cursos para principiantes e para todos aqueles que pretendiam aperfeiçoar os seus conhecimentos sobre o idioma. À noite, os participantes puderam assistir a espetáculos de canto, música e poesia, alguns de brilho inegável, como foi o caso do exímio par de artistas holandeses, Kajto. Participámos nalgumas excursões programadas de que, a seguir, faremos breves relatos.

Policoro

Policoro é uma cidadezinha situada junto à costa do mar jónico com praias de águas tépidas e calmas, embora de areia juncada de seixos rolantes. O espaço balnear encontra-se dotado de boas infraestruturas de apoio, havendo, por perto, excelentes parques de campismo e hotéis como aquele onde ficámos hospedados (Hotel Oási) e o que acolheu o congresso (Hotel Heracleia). Esclareça-se que a designação grega “Heracleia” corresponde ao antigo nome do povoado.

Museu Nacional de Siritide

Perto de Policoro, este museu arqueológico documenta exuberantemente, através de numerosos artefactos, como se desenvolveu a colónia de Siritide que fazia parte da chamada Magna Grécia. Muitos dos vestígios encontrados e expostos, provêm de recuadas épocas da pré-história, alguns até do V milénio a. C. Fiquei com “inveja” de uma senhora que viveu há 3 mil anos, cujo esqueleto conserva ainda uma dentição quase perfeita. Que dentadura! Ao invés deste pobre escriba de dentes postiços que até tem dificuldade para trincar a “pasta al denti”. Muito interessante foi também a constatação do sincretismo religioso da civilização grega em que sobressaíam o santuário de Demetra (divindade feminina) e o santuário de Dionísio (divindade masculina). Muito mais haveria para dizer sobre este museu e sobre Heracleia, cidade estrategicamente situada entre dois rios navegáveis (Aciris e Siris) desaguantes no Jónio. Temos, porém, algum receio de esgotar a paciência dos leitores menos dados à arqueologia e à História. Acrescentaremos apenas que a maior parte dos trabalhos de investigação se devem ao arqueólogo romeno Dinu Adamestranu (1913-2004), cujo projeto se intitulava significativamente “Do Mar Negro ao Mar Jónio”.

Anglona

Trata-se de uma igreja medieval, fundada no século XII, muito estimada na região. O santuário, dedicado a Santa Maria, ergue-se a 263 metros de altitude e não é muito grande, como também não o é a respetiva aldeia. Contudo, decorriam já os trabalhos de ornamentação para a festa anual que costuma arregimentar milhares de crentes das redondezas. Curiosamente, enquanto decorreu a visita, a Manela, “achou” a Anita, uma jovem freira angolana que ali se encontrava em missão. Deu para falar português e trocar endereços.

Rabatana

O termo “rabatana” provém da palavra árabe “rabat” que quer dizer “povoado”. É uma antiga aldeia árabe com edificações do século XVIII onde ainda vivem 20 famílias. Estivemos no “Palazzo dei Poeti” onde provámos vinho e saboreámos petiscos locais cujos ingredientes eram pão torrado, azeite, queijo e tomate. O anfitrião brindou-nos com uma sessão de poesia em idioma tursiano. Acrescente-se que Rabatana pertence ao termo municipal de Tursi, cidade histórica e pitoresca que atravessámos sem parar no regresso a Policoro.

Matera

Matera começou por ser um povoado de trogloditas. As pessoas viviam em cavernas escavadas nas rochas calcárias desde tempos paleolíticos e continuaram assim nas idades do bronze e do ferro, dos gregos, dos romanos, dos normandos, dos godos, dos sarracenos, dos bizantinos e na idade moderna até quase aos nossos dias. O escritor Carlo Levi anotou que, em 1946, 20 mil pessoas residiam ainda nesses buracos imundos. Só a partir de 1952 é que os habitantes começaram a ser evacuados e transladados para novos bairros na periferia da cidade. É claro, as grutas permaneceram para deleite dos curiosos visitantes e testemunho de um passado duro em todas as aceções do termo. As pessoas viviam em condições insalubres juntamente com os animais (cães, ovelhas, cabras, galinhas, …). Apenas tinham uma porta por onde entrava o ar e a escassa claridade. Tivemos oportunidade de visitar a Casa Grotta del Casalnuovo, situada bem no coração do bairro denominado Sasso Caveoso. Era uma habitação típica com cinco divisões dispostas em três patamares, incluindo o estábulo, a cozinha, os quartos, e a adega. Encontra-se mobilada com os trastes dos princípios do século XX e até ostenta as fotografias dos seus últimos moradores.

Também as igrejas eram escavadas nos rochedos. Observámos uma necrópole localizada por cima de uma igreja. Os defuntos eram colocados em cavidades retangulares cuidadosamente esculpidas na pedra. E vejam a curiosidade: nas épocas medievais os cadáveres eram sepultados no interior das igrejas (em Portugal até houve levantamentos populares de protesto quando os cemitérios passaram para fora dos templos – como foi o caso da revolta da lendária Maria da Fonte) e aqui foram para o telhado do santuário.

Os dois bairros (Sasso Caveoso e Sasso Barisano) que compõem o chamado Sassi, casco antigo da cidade, foram integrados pela Unesco na lista do Património Mundial da Humanidade em 1993 e, em 2019, Matera será justamente proclamada Capital Europeia da Cultura.

De resto, o cenário de contrastes e o panorama rupestre de todo o conjunto é deveras impressionante e por isso não admira que a região tenha sido escolhida para a rodagem de cerca de 40 filmes famosos, entre os quais os místicos: “A Paixão de Cristo”, “O rei David”, “O Evangelho Segundo Mateus”, “O Jovem Messias” e “Cristo parou em Eboli”.

A digressão pela cidade antiga culminou numa loja “gourmet” onde provámos o afamado pão de Matera, bem azeitado, acompanhado de tomate seco.

Aliano

Aliano é uma pequena cidade isolada no cimo de uma montanha de onde se divisam paisagens de precipícios e desfiladeiros de cortar a respiração. Carregada de História e tradição ganhou mais notoriedade por ser o lugar para onde o intelectual antifascista Carlo Levi (1902-1975) foi desterrado pelo regime de Mussolini. Estivemos na pinacoteca instalada na modesta casa térrea habitada por Levi, onde se expõem muitas das suas pinturas. Mas Levi foi sobretudo um afamado escritor. O seu livro “Cristo si è fermato ad Eboli” (Cristo parou em Eboli) originou posteriormente uma apreciada longa-metragem. Em Aliano foi criado o Parque da Literatura que os visitantes puderam observar em pormenor. Aliás, toda a povoação é um hino à literatura. As suas ruelas muito bem arranjadas ostentam orgulhosamente placas com extratos de obras literárias. Por fim, realizou-se, no Centro Cultural, uma notável sessão de poesia e apresentação de traduções para Esperanto de vários “best-sellers” da literatura mundial. Ficou bem demonstrada a flexibilidade do Esperanto como língua de tradução. Castelmezzano

Depois da visita ao Centro Naturalístico do Monte Croccia que será objeto de análise posterior, rumámos, por estradas montanhosas cheias de curvas, até outra povoação de espanto: Castelmezano: É uma vilória situada a 1731 metros de altitude que não chega a ter mil habitantes. Todavia, recebe anualmente 17 mil turistas. Tal se deve, principalmente, ao chamado turismo de aventura (percursos pedestres, alpinismo, voos em parapente). Com algum esforço fizemos a subida de uma parte da Via Ferrata que termina na aldeia de Pietrapertosa, a qual vimos ao longe, escarrapachada na montanha mais alta. Na Piazza Emilio Caizzo, praça principal da vila, desfruta-se uma bela paisagem prenhe de afilados penhascos. Nessa praça ergue-se a principal igreja construída (ou restaurada) em 1872 que não desperta muito interesse. Na frontaria do templo vemos uma lápide dedicada a Andrea Boffa, habitante de Castelmezzano que em 1939 morreu em Espanha lutando pelo triunfo do fascismo. Por baixo, outra lápide maior regista os nomes dos habitantes que caíram defendendo a grandeza da Itália. Não sabemos se eram pelo fascismo (provavelmente) ou contra o fascismo.

Pisticci

É a sede de um município com 18 mil habitantes. Dizem que o seu nome significa “fiel à Grécia”. Foi teatro da guerra entre Roma e Taranto. Tem dialeto próprio com vestígios da língua grega. A cidade fica também no cimo de um monte por razões de defesa militar. Vê-se um longo aqueduto que transportava a água do rio lá muito em baixo. Antes eram as mulheres que penosamente, subindo as íngremes encostas, acarretavam a água em vasilhas. Aos homens eram atribuídas tarefas “mais nobres”. Vimos a igreja matriz construída pelos normandos na Idade Média. Quase totalmente destruída por um terramoto, foi reconstruída por dois irmãos lombardos. A sua sacristia contém um arquivo com documentos antiquíssimos. Na respetiva casa de banho um letreiro por cima da sanita anunciava: “Trovarlo pulito è un piacere, laciarlo pulito è un dovere”. Cremos que não será necessário traduzir!

Montalbano Jonico

Esta cidade, rodeada por planícies férteis, era outrora considerada o celeiro romano. Nos séculos XV e XVI, dominada pelos aragoneses, continuava a ser uma terra próspera. Hoje, apesar de ter uma atividade cultural algo intensa, são visíveis os edifícios arruinados na parte antiga do burgo. Visitámos o pequeno museu Vincenzo Rosano que mostra de forma interativa como era a vida campestre no século passado: a ceifa do trigo, a separação do grão, os artefactos da lavoura, as canções populares, os jogos, a cozinha e o quarto de dormir dos camponeses. No final, o cicerone brindou-nos com uma espiga de trigo rijo como sinal de bom augúrio. Após um pequeno passeio pedestre chegámos ao Palazzo Rondinneli. Este centro cultural estava dotado de exposições permanentes sobre geologia, biologia (Reserva de Calanchi) e arqueologia da região (réplica da famosa Tábua de Heracleia), biblioteca e exposições temporárias de fotografia, pintura e escultura. Passámos também junto à porta da Universidade de Estudos da Magna Grécia que deve ser deveras interessante.

As comidas

As massas (pasta) são de longe o ingrediente principal dos comeres italianos. É raro haver uma refeição em que não entra a pasta. Tivemos alguma dificuldade em nos habituar ao sistema. Primeiro vêm as entradas, depois chega a pasta sem nenhum acompanhamento. Comendo tudo já ficamos saciados. Por fim, vem a carne ou o peixe sem nada a acompanhar e pouco comemos porque estamos cheios. Parece uma maneira racional de diminuir o consumo de produtos animais, o que não deixa de ser mais económico e simultaneamente benéfico para a saúde. O tomate (pomodoro) é omnipresente e o bom azeite também, fazendo jus à, agora tão celebrada, dieta mediterrânica.

A botânica da região

Logo à saída do aeroporto de Bari que fica a mais de uma hora de Policoro, vemos a predominância dos olivais. Os vinhedos estavam cobertos com redes talvez para prevenir os “roubos” da passarada. Depois surgiam pinheiros mansos, altíssimos loendros, ciprestes, carvalhos, figueiras-da-índia, nogueiras e muitas figueiras. A espécie invasora mais frequente era composta por ailantos que vieram da China pelo seu pé ou então trazidas pelo Marco Polo. Acácias, só as vimos junto às praias da costa jónica. Os eucaliptos eram todos da espécie “angustifolia”, ou seja, de folhas estreitas.

Nas planícies de Basilicata são frequentes extensos laranjais, outras árvores de fruto e campos de morangos, melancias e melões. Muitas terras foram recentemente lavradas e esperam a chuva para a sementeira do trigo que, como se sabe, é a base da alimentação transalpina.

Nas zonas montanhosas onde se encontram as principais povoações visitadas, predominam as ervas típicas dos terrenos calcários e dos estios quentes e secos, mas de folhas mais miúdas: alfavacas-de-cobra, mentas, beldroegas, abrolhos, milhãs, pepinos-de-são-gregório. Em Matera havia alcaparras e bastantes romãzeiras. Em Aliano despertaram a curiosidade os “quercus” que ladeavam a praça principal. Estavam podados para não crescerem muito e as respetivas caldeiras continham borras de café. Perguntei ao guia qual o nome da árvore e ele, depois de indagar, respondeu: “leccio”, ou seja, azinheira, talvez uma espécie diferente das nossas. Em Montalbano ficámos admirados com a existência de salgadeiras (Atriplex halimus) nas encostas dos montes. Afinal o mar não está distante e em tempos recuados chegou bem perto da cidade como demonstram os fósseis marinhos expostos no respetivo museu.

Parco Naturale di Gallipoti Cognato Piccoli Dolomiti Lucane

Trata-se de uma reserva botânica protegida com uma elevada densidade de “quercus”, principalmente carvalhos e azinheiras. Não vimos um único sobreiro, espécie que deve ser considerada a árvore nacional de Portugal dada a sua raridade no resto do mundo

Nesta reserva visitamos o Ecomuseu Centro Naturalístico Monte Croccia, espaço didático que mostra a diversidade da flora, da fauna e da geologia abordando o ecossistema, as espécies e a genética. Anotámos as espécies estudadas de algumas famílias. Eis, a título de exemplo, em especial para os amantes da botânica:

Coníferas: Pinus nigra, Larix decidua, Pinus strobo, Abies alta, Pinus pinea Abies pinsap

Quercus: robur, rubra, petraea, trojana, coccifera, suber

Áceres: negundo, palmatum, pseudoplatano, opaluo, monspessulanum, platanoides, campestre.

No jardim botânico adjacente, algo descuidado, diga-se de passagem, estavam identificadas diversas espécies, quase todas da região mediterrânica: Rhamnus alaternos, Juglans regia, Populus alba, Arbutus unedo, Cornus sanguínea, Prunus spinosa, Ligustrum vulgare, Spartium junceum, Sorbus domestica, Pistacia lentiscus, Erica arbórea, Phillyrea latifolia, Pyrus pyraster, Ulmus minor, Cornus mas, Alnus glutinosa, Laburnum anagyroides, Salix alba, Crataegus monogyna, Rosa canina, Viburnum tinus, Quercus ilex, Laurus nobilis, Rosmarinus officinalis, Pinus halepenoso, Pinus pinea, Pinus nigra, Juniperus communis, Tilia cordata, Sorbus aucuparia, Fraxinus ornus, Quercus cerris, Acero pseudoplatanus, Fraxinus angustifolia, Euonymus europaeus.

Tivemos ainda oportunidade de visitar a Olfatoteca (palavra a acrescentar ao dicionário), zona coberta onde através do cheiro podemos identificar diversas ervas aromáticas: orégãos, crategos, camomilas, centáureas, hissopes, valerianas, lúcias-lima, etc.

Conclusões

1ª – O Congresso serviu para dilatar os conhecimentos e a prática do Esperanto, idioma que, como nenhum outro, permite a comunicação rigorosa entre povos com línguas diferentes;

2ª – Permitiu igualmente criar novas amizades com gente culta e idealista, com preocupações humanitárias que consideram a paz e a cooperação internacional como algo essencial no relacionamento entre as nações.

3ª - Os temas abordados no decurso do Congresso identificaram problemas e apresentaram propostas de soluções relativamente à boa comunicabilidade entre as nações europeias.

4ª – A viagem ao sul da Itália constituiu uma experiência singular que deu para conhecer uma região fora dos roteiros turísticos internacionais e entender melhor a evolução histórica e a civilização grega corporizada na Magna Grécia.

5ª – Para além do aperfeiçoamento do idioma internacional, esta viagem possibilitou alguns conhecimentos práticos de italiano, língua, por excelência, de arte e cultura.

Miguel Boieiro



LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS