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"E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos?"


por Regina Gouveia





E o livro era acabado ainda naquela tarde se houvesse um irmão para fazer o recado que a mãe pedia. O que interessava era não sair daquele mundo em que se estava envolvido por observação, é certo, mas sentindo alegrias e tristezas, experimentando medo, surpresas, entusiasmo tal como aqueles que se observavam (de longe, para eles não nos verem e assim não se desfazer o encanto). (Sousa, 1990, p 115)1

Longe a minha infância, longe a minha adolescência, mas sinto-me fielmente retratada neste excerto que me transporta a esses tempos distantes.

O meu contacto com a literatura começou antes de aprender a ler. Recordo o fascínio que sentia ao ver os mais crescidos, particularmente os meus pais, decifrarem num jornal, num livro ou numa simples carta, uma série de signos para mim estranhos e misteriosos. E se os signos traduzissem estórias, o fascínio era ainda maior. A minha imaginação viajava de forma prazerosa com as personagens, com as quais partilhava todas as emoções.

Vêm-me à memória inúmeros contos para a infância de Guerra Junqueiro, da Condessa de Ségur, de Hans Christian Andersen, mas também muitos outros textos não dedicados explicitamente às crianças.

Para além do conto havia a poesia e aí o gosto foi-me incutido essencialmente pelo meu pai. Desde sempre me lembro de o ouvir dizer/ler poesia (Camões, Bocage, Guerra Junqueiro, Augusto Gil, Júlio Dinis). Ficava fascinada a ouvi-lo e ainda hoje, apesar de nunca ter tido boa memória, consigo reproduzir excertos de alguns poemas, nomeadamente do soneto "Os amigos" de Camilo Castelo Branco e dos poemas "As andorinhas" de Júlio Dinis e "Aos simples" de Guerra Junqueiro.

Ao recordar a diversidade de textos que integraram o meu percurso infantil, lembrei-me de uma entrevista publicada em 2006 pela revista Ler, em que Manuel António Pina, entrevistado por Carlos Marques Vaz, referiu a dada altura:

"(...) eu não sei o que seja um livro para crianças. Os livros não são para. Os livros são, pura e simplesmente. Os autores podem destinar os livros às crianças mas o facto de os autores destinarem os livros a crianças não quer dizer que eles lá cheguem (...) Dizer que não são destinados a crianças seria talvez grosseiro de mais. Não são só destinados a crianças. Ou melhor, não têm destino".

João Luís Ceccantini, professor na UNESP2, investigador em várias áreas, nomeadamente na área da literatura infantil e juvenil, considera que o leitor se forma na diversidade.

Por sua vez, Cecília Meireles3 a propósito do conceito de literatura para a infância referiu:



"São as crianças, na verdade, que o delimitam, com a sua preferência. Costuma-se classificar como Literatura Infantil o que para elas se escreve. Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que elas leem com utilidade e prazer. Não haveria, pois, uma Literatura Infantil a priori mas a posteriori (...)".

Há um ponto em que, genericamente, os especialistas concordam: a leitura é um instrumento essencial na vida de qualquer cidadão pois possibilita a ampliação do conhecimento bem como a comunicação, fundamental à vida em sociedade.

Sendo os livros um ótimo caminho para a ampliação do universo cultural é importante que crianças e jovens contactem com eles desde a primeira infância. Manusear as obras, explorar as ilustrações e começar a descobrir o mundo das letras conduzirá ao interesse pelo mundo das palavras, primeiro passo para se tornarem bons leitores.

A tarefa de fomentar hábitos de leitura, desde cedo, está hoje facilitada. Crianças e jovens têm ao seu dispor um variadíssimo leque de belíssimos textos de bons escritores, dos mais clássicos aos mais atuais.

Termino com um pequeno texto de um desses escritores, José Saramago, que no seu livro "A maior flor do mundo" nos questiona:

"E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos?

Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?"

Regina Gouveia

[Publicado em "As Artes entre as letras", nº96, 10 de Abril de 2013]

  • 1 - Sousa, M.L.D. (1990). Agora não estou a ler, Revista Portuguesa de Educação, 1990, 3(3), Universidade do Minho p 115-127.
    2 - Universidade Estadual Paulista
    3 - http://www.eselx.ipl.pt/curso_bibliotecas/infanto_juvenil/tema1.htm


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