Espaço Associados
93º Congresso alemão de Esperanto
Munique, 13 a 16 de maio de 2016
por Miguel Boieiro
Primavera na Baviera
Como é sabido, primavera significa literalmente "primeiro verão", mas no
presente caso, melhor seria "segundo inverno" porque arrostámos com
chuva persistente nos seis dias que permanecemos na faustosa cidade de
Munique para participar no 93º Congresso da Deutscher Esperanto-Bund.
Nas breves pausas que a chuva nos concedeu, suportámos frio intenso e
cortante. Previno, no entanto, os estimados leitores quanto ao excessivo
rigor da afirmação. Na realidade, a primavera, aparte os caprichos do
tempo, esteve bem presente de 12 a 17 de maio de 2016, altura escolhida
para dois casais de esperantistas rumarem do Porto a Munique num voo
direto e "low-cost". Vimos muita verdura, flores por todo o lado, lindos
castanheiros-da-índia floridos em ramalhete e áceres pejados de sâmaras.
O Congresso
Cerca de 200 pessoas participaram neste evento que se realizou no centro
da cidade. A maior parte eram, naturalmente, alemães, mas havia
também austríacos, brasileiros, britânicos, checos, croatas, cubanos,
dinamarqueses, eslováquios, franceses, holandeses, italianos, japoneses,
norte-americanos, polacos, russos, suecos, suíços, ucranianos e ...
portugueses. A decorar o palco, em letras verdes, o lema do congresso:
"Esperanto - Wir machen Völkerverstândigung". Esta frase com palavrões
teutónicos quer dizer, pouco mais ou menos, "Proporcionamos a
intercompreensão entre os povos".
Com inexcedível simpatia, ainda antes da abertura oficial do congresso, a
organização local, ou seja, o Clube de Esperanto de Munique, a
comemorar os seus 125 anos de existência, brindou-nos com um
espetáculo de variedades e um "vespermangeto" que se pode traduzir por
jantarinho. Os protagonistas da refeição foram o par de salsichas brancas
tradicionais da Baviera e a cerveja a rodos. Recebemos ainda um folheto
com o historial das tais salsichas e sobre a melhor forma de as comer, não
fosse cometermos algum erro na deglutinação do esquisito manjar.
A maior parte das palestras, sempre seguidas de debate, decorreram
simultaneamente em várias salas. Optámos pelas seguintes (os respetivos
títulos são de tradução livre):
1 - "O Esperanto será apenas uma curiosidade?", por Reinhard Fössmeir,
caracterizando vários aspetos do comportamento dos esperantistas e a
necessidade de encontrar melhores caminhos para divulgar o idioma.
2 - "A Reforma na Chéquia", por Petr Chrdle, que abordou a transição
histórica do catolicismo para o protestantismo no território checo, o papel
da inquisição e a luta desenvolvida pelos reformadores. Foram aludidas
curiosas situações e episódios desconhecidos dos portugueses,
subjugados que fomos, durante séculos, por uma persistente prepotência
católica.
3 - "O Esperanto fora do seu contexto", por Emílio Cid. Este clarividente e
culto professor brasileiro despertou muito interesse pela forma objetiva
como apresentou a sua tese de reforço da aprendizagem do Esperanto e
da sua propagação mundial.
4 - Detlef Blanke, insigne desenhista alemã que, em ateliê, nos ensinou a
desenhar, elucidando-nos que se trata de uma das melhores formas de
cativar as crianças para a aprendizagem da língua internacional.
5 - Mikaelo Bronstejn, "Ucrânia e Rússia, dois estados irmãos?",
dissertando sobre as complexidades históricas e atuais da região, hoje em
conflito nocivo para os respetivos povos.
6 - Stano Marcek, autor checo, falou sobre as vantagens do método de
aprendizagem direta do Esperanto. O seu admirável livro aparece
traduzido em 38 línguas. É claro que, de imediato, adquirimos a versão
portuguesa e o respetivo CD.
Os vestígios do nazismo
Karl Breuninger, excelente cicerone esperantista, proporcionou-nos um
inesquecível percurso pelas zonas da cidade onde ainda permanece a
arquitetura própria do período nazi e estão patentes as nefastas
recordações dessa terrível época. Munique foi o berço da ideologia do
nacional-socialismo. Foi a cidade onde este partido logrou, logo no início,
maior votação e era, portanto, uma das cidades mais queridas de Hitler.
Vagarosamente, passámos pelo quarteirão onde se concentrava a
administração nazi. A maior parte dos edifícios ficaram "milagrosamente"
incólumes apesar dos intensos bombardeamentos das tropas aliadas. Na
Königsplatz apreciámos o conjunto arquitetónico de estilo grego que
marcou o apogeu do estado bávaro, na altura, em acesa competição com
a Prússia. Era aí que os nazis organizavam as suas paradas e ostentavam o
seu poder. Muito perto está a chamada praça do obelisco, com um alto
espigão metálico, construído, segundo nos disseram, com o bronze dos
canhões tomados aos otomanos nas batalhas do século XIX.
Observámos exteriormente o edifício-sede da Gestapo, a "Amerika Haus"
implantada pelos americanos a seguir à guerra para "ensinar" democracia
aos alemães, os palacetes subtraídos aos ricos capitalistas judeus e a
Feldherrnhalle, simbólico local onde todos os passantes tinham que fazer
a saudação nazi, estendendo o braço, sob pena de graves penalizações se
não o fizessem.
No Centro de Documentação do Nacional-Socialismo, entrámos apenas no
átrio o que nos abriu o apetite para voltar. Foi o que fizemos no dia
seguinte, sem limite de tempo.
Centro de Documentação do Nacional-Socialismo
Este museu, inaugurado em maio de 2015, não é, em nada, inferior aos
que vimos em Berlim tratando a mesma temática. Contém milhares de
fotografias, reproduções, projeções permanentes e documentos desde
1914-1918 (1ª guerra mundial) até anos 50 do passado século. Estão
dispostos em quatro pisos a que se juntam mais dois pisos subterrâneos
onde sobressai uma biblioteca. É manifestamente impossível descrever o
que vimos e as sensações que sentimos perante tão abundante espólio.
Apenas algumas notas curiosas que fomos registando, "à vol d'oiseau", no
caderninho de apontamentos:
- De novembro de 1918 a maio de 1919 houve em Munique uma
governação popular e socialista, a chamada República dos Sovietes.
- O "putsch" de Hitler em 1923, apesar de ter falhado, permitiu o
crescimento da propaganda chauvinista, racista e antissemítica. Hitler foi
preso mas gozou de todas as mordomias. Em 1924 começou a escrever o
"Mein Kampf", terminando-o em 1926. Mesmo antes de 1933 foram
vendidos 241 mil exemplares, cifra que passou para 12,5 milhões em 1944
com tradução em 16 idiomas.
- A ascensão notável do partido nazi que em 1928 teve apenas 2,6% dos
votos e em 1932 logrou obter 37,4%, tornando-se o maior partido do
Reich.
- Nessa época, os militantes do interditado partido comunista, utilizavam
o termo "theo" para se referirem aos centros de trabalho clandestinos e
assim iludirem as autoridades nazis.
- Ao abrigo da lei para a prevenção da doença genética, promulgada em
julho de 1933, foram esterilizadas mais de 4900 pessoas.
- O Campo de Concentração de Dachau foi aberto em 1933.
- Os judeus foram objeto de inúmeras proibições. Não lhes permitiam a
posse de rádios. Nos transportes públicos apenas se podiam sentar se não
houvesse ninguém de pé.
- Oficialmente a 2ª Guerra Mundial começou em 01/09/1939, quando a
Alemanha invadiu a Polónia. O ponto mais alto do poder de Hitler
verificou-se em 22/06/1940 na altura em que a França capitulou. O fim do
regime nazi aconteceu em maio de 1945. De 1945 a 1949 procedeu-se à
desnazificação da Alemanha, promovida pelos aliados.
A população de Munique
Munique foi sempre uma cidade de maioria católica conservadora com
governos de direita, excetuando os escassos meses após a 1ª Grande
Guerra quando se constituiu uma governação gerida pelas classes
operárias. Foi, no entanto, sol de pouca dura. No século XIX, quer os
protestantes, quer os judeus, não podiam habitar a cidade. Hoje o
panorama é completamente diferente. Nas proximidades do hotel onde
nos alojámos, bem no centro de Munique, predomina uma população de
tez morena, nitidamente árabe e muçulmana. Os estabelecimentos
comerciais apresentam os seus "placards" em árabe e muitas mulheres
andam de "burka", com o rosto quase completamente tapado.
Igrejas e monumentos
Visitámos a antiga Rathauz (Câmara Municipal), admirável construção em
rendilhado gótico. Estivemos nas igrejas de São Pedro, de São Miguel, de
São Luís, de São Caetano e na catedral. Todos os templos possuem,
principalmente no seu interior, riquíssimos ornamentos arquitetónicos,
escultóricos e pictóricos. Entrámos na Biblioteca Nacional da Baviera.
Deslumbrou-nos a largura imponente da Leopoldstrass, que, em
determinado trecho, possui três fileiras de altíssimos choupos,
culminando no Arco do Triunfo da Baviera, logo seguido pela Universidade
e pela Biblioteca.
Jardim Inglês
Tivemos sorte porque não choveu no par de horas em que permanecemos
neste enorme pulmão verde de 373 hectares, bem no centro da urbe. Na
retina ficou-nos o intenso arvoredo, a malta nova a fazer "surf" num
recanto do rio Isar, a pateira repleta de gansos e o centro de comes e
bebes com uma longa fila para os inevitáveis abastecimentos de cerveja,
no mínimo de meio litro "per capita".
O "amarelo da Carris"
Quando, no primeiro dia, chegámos ao hotel, já passava das 14 horas e o
respetivo restaurante encontrava-se encerrado. Esfomeados que
estávamos, penetrámos na primeira pizzaria que nos apareceu. Era um
minúsculo estabelecimento com duas mesas e oito cadeiras. O balcão-
cozinha anunciava uma parafernália de pizzas ao dispor dos clientes.
Nisto, olho para a escassa parede e que vejo? Uma grande fotografia
emoldurada reproduzindo o elevador da Glória da Carris, empresa de
transportes públicos de Lisboa onde trabalhei quando jovem. Fiquei
emocionado! Eis uma singular mostra da globalização: comida italiana
servida por afegãos numa cidade alemã e um quadro dos transportes
públicos de Lisboa. Metemos conversa e gerou-se uma onda de
comunicabilidade e simpatia só esbatida, mais tarde, quando verificámos
que nos queriam enganar nas contas.
O Jardim Botânico de München-Nymphenburg
Embora atormentados pela moinha que nunca cessou de cair, tivemos
oportunidade de passear pelas áleas deste magnífico jardim. De entre as
flores de todos os feitios sobressaiam as vistosas túlipas de várias cores.
No jardim alpino colocado numa ligeira elevação pudemos apreciar
espécies endémicas. Quanto ao arvoredo, há a destacar as macieiras,
nesta altura revestidas de brancas flores, os carvalhos, os castanheiros-da-
índia e os bordos providos de sâmaras, nome que se atribui aos aquénios
em forma de asa membranosa destinada a uma boa disseminação por via
do movimento helicoidal ao desprenderem-se das árvores.
Todavia, a superioridade deste jardim botânico em comparação com
muitos outros que já visitámos, está na riqueza das espécies
aprovisionadas nas suas 12 estufas temáticas. Na destinada às plantas
suculentas comecei a tomar nota das variedades de aloés e registei mais
de 50. Noutra, as Cycadaceae presidiam, algumas da época dos
dinossáurios. Noutra ainda, tínhamos uma musgueira provida de
numerosas espécies de musgos, alguns já existentes na Terra há 300
milhões de anos. Na das plantas tropicais estavam em destaque as de
importância económica. Numa das muitas placas educativas existentes
por todo o lado, referia-se que a Humanidade toma por dia cerca de 1,6
mil milhões de chávenas de café. Impressionante! Quem as contou
merecia uma estátua!
Como é evidente por causa do tempo no seu duplo sentido: tempo
cronológico e tempo climatérico (em Esperanto não há qualquer confusão
já que se usa duas palavras diferentes, respetivamente: "tempo" e
"vetero") não vimos, nem metade, deste aprimorado espaço. Uma
funcionária informou-nos que aqui laboram permanentemente 70
trabalhadores, número que achamos reduzido face à extensão e à
complexidade botânica do jardim.
Na bem apetrechada loja que visitámos ao terminar a visita, em vão
procurámos livros noutro idioma que não o alemão. Eis o único senão a
apontar para os visitantes estrangeiros que não dominam o idioma local.
Mais, muito mais, haveria para dizer acerca da poderosa capital da Baviera
e sobre a rica experiência que tivemos em escassos seis dias, mas o tempo
e a paciência dos leitores têm limites. Fica o incentivo para irem até
Munique, se possível durante o afamado Oktoberfest e mergulharem nos
jardins da cerveja. O relato de adicionais sensações enriqueceria, esta
singela e modesta croniqueta. Seguramente!
Maio de 2016
Miguel Boieiro
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