Espaço Associados



       História

1
Pelas duas horas da tarde, lá vinha ela, soberba e carregada, com um gigo à cabeça. Desde o nascer do Sol e, às vezes, antes, a Vó Velha, de saia até aos calcanhares e redonda quanto baste, entregava-se à tarefa de regateira. De véspera, mandava colocar a vendagem a meio caminho da praia; e, ainda de noite, antes do raiar, os cestos eram colocados na lancha. Certificada de que tudo estava em ordem, saía de casa e ocupava o seu lugar entre os passageiros.
A viagem, desde a Praia de Atães à Ribeira do Porto, durava cerca de meia hora. Aportada ao cais a pequena nau, era ver as pessoas, em jogo de equilíbrio, a percorrer a prancha de lançamento em terra. Depois, era a descarga. Sacos de pimentos, cestos cheios de molhos de nabiças, sacotes de piri-piri, gigos com nabos brancos como a cal, abóboras, melões, bolinas, melancias, pepinos e toda uma panóplia de produtos hortícolas, que a aldeia cultivava com alma para deliciar os citadinos. A velha mulher, ajudada por carrejões, montava a sua banca, mesmo em frente ao Rio e de costas para ele, à espera que os portuenses se chegassem. De início, as regateiras conferenciavam sobre os preços que deviam apontar aos clientes, de modo a formar cartel e a regular o negócio. O valor assim estabelecido obedecia às regras de mercado: olhavam à volta, analisavam a quantidade de cada produto exposto e arbitravam um número. Mas o acordo esfrangalhava-se num ápice. Se acorriam muitos citadinos para comprar, cada regateira puxava para cima a base e tirava partido da grande procura; se, ao contrário, havia falta de clientes, os preços caíam, lenta e irremediavelmente. Ao meio da manhã, os preços do que havia para vender entravam em saldo. Não podia haver sobras: tudo era para vender em cada dia e antes que o Sol queimasse. Às vezes, as vendedeiras regateavam forte com os clientes, discutiam umas com as outras, injuriavam-se mutuamente pela qualidade dos produtos, e até havia rixas. No final, limpava-se a banca, arrumava-se os desperdícios, providenciava-se pela guarda dos cestos e dos sacos e, após a tomada de um galão na tasquinha mais próxima, a velha mulher subia a rua em direcção aos Congregados a ouvir uma missa, a rezar um terço ou a dar uma esmola. Era o momento da acção de graças, o diálogo com o divino e a pausa para o recolhimento. Cumprindo a relação com o sagrado, saía da Igreja e descia até ao Largo de S. Domingos, procurando encomendas de carne no talho do senhor António. Levava a carne num gigo colocado na cabeça sobre uma rodilha, e regressava a casa de camioneta. Ao entrar no pátio, já se divisavam algumas mulheres à sua espera, para levarem as encomendas de carne. Vinham com sacas de pano, de atar com um nagalho na embocadura, e recebiam o seu quinhão, depois de cortado e pesado. A velha mulher atendia as clientes sentada numa escada, ao lado do gigo e usando balança de copos. Depois de despachada a freguesia presente, a Vó Velha aquecia uma sopa, com um pedaço de carne de vaca mergulhado na panela, e fazia uma refeição de malga, combinando o caldo com o conduto. Cheio o estômago, arrotava e ia à retrete fazer as necessidades. Reposta, pegava no gigo, punha-o à cabeça e ia dar a volta da carne. De porta em porta, chamava as clientes e, atendida, pousava o gigo no chão, escolhia a carne, cortava e pesava para servir as freguesias. Ao pôr-do-sol, a velha mulher voltava a casa com novas canseiras. Era ver se os lavradores lhe tinham trazido produtos, era lavar as nabiças e fazer molhos com atilhos de palha, era lavar os nabos e colocá-los em castelo nos cestos,… era sentar-se na varanda a fazer as contas do rendimento do dia por memória e sem o uso dos papéis, calculando: “vendi um cento de pimentos a cinco mil réis, dois a sete mil réis, três a quatro mil réis,…” até fazer passar-lhe pelo toutiço a memória completa do negócio. A seguir, contava o dinheiro da algibeira e estabelecia o quanto devia pagar a cada lavrador, gravando os números em memória. Entretanto, punha a panela ao lume e cozinhava novo caldo com verduras e um pedaço de carne de vaca. E , enquanto esperava que o calor da máquina a petróleo fizesse ferver o caldo, botava um rosário.

2
A Vó Velha era tenaz, truculenta e vaidosa. Viveu e trabalhou até à véspera de fazer noventa e seis anos. Tinha um viver egoísta, passando o tempo a evidenciar as doenças que nunca a afectaram. Se alguém se sentia enfermo, ela dizia-se mais; se alguém alegava contrariedades, ela apodava-se de maior vítima; se alguém sofria, ela ripostava “Que direi eu?”. Viu crescer, ao lado e na sua casa, nove netos do seu único filho. Nunca teve um rebuçado que lhes desse. A eles, passava o tempo a ralhar. Ora, porque os via a brincar, e acenava-lhes o trabalho. Ora porque saíam de casa, e atirava-lhes: “Não tens casa para estar ?!” Ora porque colhiam fruta do quintal, e logo invocava o estrago. Ora porque merendavam pão com cebola crua, e invocava o desgoverno da família. Ora porque havia cerimónias religiosas, e apontava-lhes a igreja. Quando ela chegava a casa, os amigos dos netos, que com estes brincavam no quintal, gritavam: “Vem aí a tua avó. Vou-me embora”. E corriam a sete pés pela porta fora, não desejando encontrá-la. Se os visse, espantava-os logo, obrigando-os a ir para suas casas e ouviam um sermão dos antigos. Apesar disso, muitos foram os dias em que os netos trançavam atilhos de palha para ela amarrar os grelos, fazendo molhos. Muitas noites, até bem tarde, os netos lavaram-lhe nabos e nabiças na pia de pedra que existia no quinteiro. Quantas noites e madrugadas, a nora e os netos lhe transportaram vendagens para a beira do rio, onde eram carregadas para o Porto. Na família, ela funcionava como uma abadessa. Era uma espécie de vereadora do pelouro da religião. Aos domingos, havia três missas: uma às seis, outra às nove e outra às onze horas. Ela fazia por ir a todas as missas. E, em dias em que acordava com genica e má disposição, corria a casa toda a bater às portas para que todos os netos fossem à missa das seis. Eles não iam: mas ela fazia barulho, ralhava, resmungava e aborrecia toda a gente. Quando se faziam refeições com toda a família, a mesa enchia-se com doze pessoas, e aí, terminada a refeição, ela fazia questão da reza do terço. E logo o botava… Os netos, ao fim de duas dezenas de Santas Maria, começavam a sentir a cabeça pesada e com ataques de sono. Mas ela prosseguia firme a recitação. Às vezes, a meio, ocorria-lhe qualquer questão e, entre duas Avé-Marias, virava-se para a nora e perguntava-lhe: “Tu chegaste a pagar-me a carne da semana passada ?” Obtida a resposta, se não desse discussão entre o era e o não era, lá continuava a reza. Acabado o rame-rame das Avé-Marias e Santa Marias, a velha mulher, como que entrando em delírio, dizia alto a ladainha, começando pela expressão grega “Kírie Eleison” e continuando em latim, numa lenga-lenga que ninguém entendia, sendo respondida com o “Ora pro nobis”.

3
A Vó Velha era de cor branca, mesmo pálida, e, pela idade, já se lhe tinham ido os cabelos loiros. Não tinha uma ruga na cara nem engelhas nas pernas. Os olhos eram claros. Provavelmente, tinha origem nos vikings que aportaram, em tempos idos, ao Norte de Portugal. Casara duas vezes e perdera os maridos. O primeiro, provavelmente com a tuberculose, doença que empestou a região, nos princípios do século XX. O segundo teve uma doença psíquica que o levou a cenas completamente infantis. Mas era alegre: agarrava testos e batia-os, provocando sons e exibindo-se como maestro da orquestra. Um dia, a abadessa da família, cansada de ter um marido doente e sem cura de remédios, consentiu que um espírita o fosse ver para encontrar o mal e dar-lhe solução. Abalou-se-lhe então a cega confiança em Deus e cometeu o pecadilho de tentar na marginalidade religiosa uma hipótese de salvação para o seu doente. Mas a acção do espírita foi perturbada por ela. Enquanto aquele tentava diagnosticar e testar o paciente, ela, de lado, comentava os actos e criticava o médico de almas. Este, cheio de a ouvir até ao tutano, deu-lhe dois berros e mandou-a sair do quarto, dizendo-lhe: “A senhora não crê, saia!” Foi uma pequena mancha na sua prática religiosa diária e teve de fazer sobre ela o mais sagrado silêncio. Se algum vizinho adivinhasse, lá se ia o prestígio e o conceito em que era tida como beata. De resto, a religião, não era só fazer rezas e dar esmolas; também era negócio. Demorando-se horas na Igreja dos Congregados, recebia encomendas de ouvir missas pela alma de familiares dos clientes e havia uma verba estipulada para remunerar esse trabalho devoto. Uma pessoa entrava na igreja, dirigia-se-lhe e, a troco de cinco mil réis, pedia-lhe para ouvir uma missa por alma de alguém. Esse negócio prosperava, havendo várias beatas ouvidoras de missa, que passavam a manhã num rodopio de olhares. Tinham um papel, recebiam a encomenda e apontavam os nomes, contra a moeda que apressadamente metiam ao bolso ou escondiam na mão fechada, enquanto, devotadamente, continuavam a ouvir a missa do momento, viradas para o respectivo altar. Quando acabava a celebração duma missa, riscavam o nome ou nomes, inscritos no papel, de quem era beneficiário dela. Naquele tempo, havia missas em todos os altares; por isso, as misseiras punham-se no fundo da igreja para poderem acompanhar com o olhar todos os altares e, assim, acumular várias celebrações ao mesmo tempo com a correspondente fé.

4.
Falámos já da lancha. Tinha nome. Era um tanto parecida com aquelas que aparecem nas telenovelas brasileiras, deslizando em águas mansas e ligando povos ermos. Pagava-se catorze tostões por uma viagem de Atães ao Porto. Num dia de nevoeiro, essa envolvência cerrada que cobre o Rio e penetra nos ossos, regressava o pequeno paquete cheio de migrantes, que buscavam na cidade o pão dos filhos, e deu-se o indesejável. A perda de visão do trajecto, o desprezo pela bússola e a falta de meios de navegar sem piloto, levaram o casco contra uma penedia da margem. Rasgou-se o tablado e a água fez-se dentro, em cachoeira, enchendo o interior das cavernas. Essa água, que criava as enguias, alimentava os sáveis e servia de pista de surf às lampreias, empeixou os pobres cidadãos indefesos e sem outro meio que não fosse a sua ligeireza e a arte de nadar. Numa mistura de gritos e de gestos, fora e dentro, em atropelo, todos viam a morte, desejavam a vida e sentiam-se sós. Cada qual, cada qual. Salvaram-se alguns. Outros pereceram no sufoco. O drama correu de boca em boca, sem a mediação de fios ou ondas. E chegou em eco à terra dos finados. As casas esvaziaram. Todos acorreram à praia. Era o choro generalizado. Cada família temia pela sua desgraça, adivinhando o pior. O risco e a sorte postulavam o divino como meio interventor a fadar quem tinha fé e nela via a esperança do menos mau. Conta-se que um dos náufragos conseguiu alcançar a terra firme a nado. Mas, seguro da sua proeza e enchendo-se de autoconfiança, voltou ao rio para recuperar a pasta. E nunca mais foi visto vivo. Também o seu corpo entrou naquele trágico funeral colectivo, para que se mobilizaram todos os vizinhos, numa manifestação de dor, solidariedade e ternura. Naquele tempo, as mulheres da aldeia vestiam-se de negro e velavam o corpo-presente, associando-se às famílias dos finados, com estridente carpir, lembrando o coro no teatro grego. E, quando chegava mais uma, não só entrava em berraria, como estimulava as restantes a acompanhá-la no choro. O cortejo fúnebre, com as pessoas a pé e as urnas em carreta, iniciava-se com as cruzes e bandeiras das sete confrarias. Depois, ordenavam-se, de cada lado da via pública, homens com grandes tochas a cera, que nunca se acendiam. Seguiam-se-lhe os portadores de coroas, ou ramos de flores. Em silêncio ! Quando se tratava de gente rica, havia o coro de meninos órfãos, todos fardados de fato cinza e gravata preta… em número de quarenta, que, de vez em quando, entoavam cantares gregorianos de requiem. E em lugar de um só sacerdote, havia uma cabeceira de padres, lendo rezas em latim e entoando cânticos. Não era habitual encher os jornais de notícias de óbitos, funerais e missas por alma. Nem se afixavam editais nos estabelecimentos. O anúncio fazia-se por pregoeiro, que corria a aldeia, de porta em porta, a informar. Nesses tempos, não existia o diariamente repetido erro de designar esse tipo de novas como necrologia, em lugar de necrofania. Sim, porque necrologia é o estudo dos mortos, enquanto necrofania é o anúncio dos mortos.

5.
Mergulhados no ar quente desse antigo Agosto, soubemos a notícia. Corremos, de imediato, para o rio. Era a pressa de ver e sentir, no testemunho da desgraça. Por todos os caminhos, que davam para a praia, seguiam rostos mascarados de surpresa e feitos de angústia. Quase não dava para trocar impressões. A notícia todos a sabiam, só faltava vê-la na sua crueza. Uns subiram à pesqueira e voltaram os olhares para a praia das mulheres: era ali o local indicado. Outros avançavam mais e chegavam ao areio. Em pouco tempo, amontoavam-se, na margem, centenas de pessoas. Não eram curiosos: eram familiares, amigos, vizinhos, cortados de cima abaixo por um sofrimento que os tomava a todos. Parados na solidária contemplação do desastre. Havia os que mergulhavam no rio, na ânsia de encontrarem o corpo, metido na areia, atracado a um penedo ou agarrado a um tronco de árvore repousada no fundo. Vários barcos ocupavam pontos estratégicos. E estava lá um pescador a lançar a rede, na aventura de arrastar o desditoso. Havia lágrimas. Choravam os mais próximos. Invocavam-se os Santos. E trocavam-se frases tristes. Chegou o Duque com seu aparelho. Foram-lhe indicados locais e facultado um barco. Entrou para ele com o escafandro. Deu indicações ao remador. E começou a lançar a geringonça, no fundo do rio, tentando arrastar o corpo. Ora aqui, ora ali, ora acolá, numa repetição ritual. A certa altura, sentiu prisão na corda: estava ali ! Gerou-se um su-ru-ru e sete mulheres aproximaram-se do areio, com lençol branco. Recolhido o afogado, seu corpo foi colocado no lençol. As sete mulheres agarraram o lençol, pelas extremas, e deitaram a correr, em direcção a casa, gritando, a alta voz: “Está vivo ! Está vivo ! Ainda está quente ! Ainda está quente !”. E lá seguiram, nesses repetidos gritos, para dizer aos ventos e fazer chegar às autoridades, que não era preciso sujeitar o cadáver à necrópsia: ele entraria em casa ainda vivo, por força das declarações das mulheres, e aí podia ser atestada a sua morte por qualquer doença nominativa. Assim viesse o médico! Assim quisesse o médico. Era a tragédia de Verão no Rio Douro. Tanto sol, tanta água, tanto prazer… ali onde se morria por gostar, por tentar, por nadar, no submerso do leito que se transformava num leito submerso. Ainda ecoam as vozes dos pais, dos filhos, dos irmãos… correndo, chorando, rezando. Morreu o Américo!

6.
Naqueles dias, era um espectáculo para os miúdos, acocorados ao cais ou com os pés metidos nas águas mansas do Douro, a olhar fixamente para os barcos rabelos. Numa lufa-lufa, deslizavam, rio acima, com as velas enfunadas, navegando à bolina. Na ré, o homem do leme orientava, fazendo-o seguir, em zigue-zague, pelas zonas mais fundas e evitando os espraiados areios. Fazia como os botos que, nas tardes de Verão, se deliciavam a encher as suas bocarras de peixe, em viagens, seguras e proveitosas, num movimento, monótono e repetido, de mergulho com exposição da sua elevada cauda, seguido da cabeça de fora e boca aberta. Os barcos rabelos, tal como os botos, contornavam os areais, circulando aos esses: no Areínho, seguiam do lado do caminho novo; em Valbom, voltavam-se para a borda de Oliveira do Douro e prosseguiam desse lado até à Praia de Atães; aqui, serpenteavam para Marecos, evitando o Areio de Campos; na Foz do Sousa e Zebreiros, descambavam para Arnelas; e assim sucessivamente. Nas marés mortas ou adversas a tripulação dos barcos rabelos puxava das pás e remava a bom remar para vencer a distância, em heróico esforço. E, nesse labor, já procuravam zonas mais baixas para diminuir o esforço braçal. A canalha via-os passar e assinalava o momento com ditos provocadores, gritando: “Ó rabelinho, a panela tem corninhos?!” Referiam-se ao facto habitual de cozinharem no barco. Os rabelos ripostavam: “Quem tem corninhos é a tua mãe!”. E seguia-se uma série de impropérios, do barco para terra e vice-versa. Era a forma de relacionamento encontrada pelos putos. Andavam por ali, como meninos da praia, escogiando os ditos dos pescadores, acompanhando-os na reparação das redes e tentando experiências de pesca com eles. Nos barcos rabelos, viam-se pipas de vinho, oriundas do Douro Alto, cabazes com frutas e açafates com galinhas. Tudo ia para a cidade do Porto, a despejar na Ribeira ou no cais de Gaia. Era o transporte da época em que o Rio Douro tinha a natureza e dimensão duma auto-estrada. Também os rabões do Pejão, vazios para montante e carregados de carvão para jusante, enchiam o rio de movimento, em constante rodopio entre as Minas da Carbonífera e a fábrica de briquetes, ao Freixo. Manhã cedo, saía de Atães o barco dos trabalhadores dos armazéns de vinho que servia de meio de transporte para Vila Nova de Gaia e de regresso à noite. E, todos os dias, de madrugada circulavam no rio inúmeros barcos de transporte de pessoas e mercadorias, que iniciavam a viagem de regresso ao Porto após o almoço. Não pode esquecer-se os barcos muito especiais de transporte de estrume, trazido dos lados do mar, para fertilizar as terras. Às vezes, descarregados no cais de Atães e daí levados em carros de bois para os campos. Vogava o barco rabelo, vogavam tão outros barcos! Mas não os paquetes de hoje, os iates, as canoas… As populações ribeirinhas viviam voltadas para o rio. Hoje, viram-lhe as costas.

7.
Passava-se o sobreiro da Quinta, por um carreiro inclinado para o rio, e frondosamente escondido entre árvores e arbustos. Alguns metros adiante era o Rio e o Areio de Atães. No Verão, as mulheres tomavam esse trilho e iam a banhos. Despiam as roupas de fora, no esconso recôndito, longe da vista dos homens. Punham-se em camisa de dormir ou combinações e faziam-se à água, nadando na pocinha, que se formava entre a lingueta do areio e a Quinta de Atães. Algumas, mais corajosas, iam fora, rio adentro. Os homens, esses preferiam exibir-se, entrando a nadar pelo cais ou ensaiando saltos de mergulho na extremidade da pesqueira. Havia alguns bem exímios, atirando-se à água, de cabeça ou de pés, e dominando perfeitamente a corrente e a técnica de natação. Enquanto os homens praticavam natação a qualquer hora, as mulheres escolhiam sempre o fim da tarde. Iam em grupos de vizinhas, levavam toalha e sabão e aliavam desporto à higiene pessoal. Aí vertiam os suores de Verão, tratavam a pele, num ritual semelhante a uma novena: uns tantos dias por semana, durante umas tantas semanas, como gozo de época balnear. Quando saíam da água, as combinações e camisas colavam-se-lhes ao corpo e evidenciavam-lhe as formas. Havia mirones, que subiam as escadas, por detrás do coberto, entravam no carreiro da Quinta e punham-se, de cima, a observar os corpos molhados com a morfologia exposta em todas as dimensões. Eram momentos de coragem e arrojo das mulheres, num misto de utilidade e gáudio! Eram também momentos de delícia para os olhos dos mirones na apreciação das raparigas e senhoras, que se atreviam a ir a banhos.

8.
A Vó Velha fazia coisas que só ela ! Guardava religiosamente os dinheiros que juntava, pondo moedas e notas dentro de pequenos sacos de pano. Atava o saco na boca com um nagalho e procurava, com a mão dentro do colchão da cama, o melhor sítio para escondê-lo no meio da palha. Procedia do mesmo modo com segundo monte de poupança, com terceiro e, assim, sucessivamente. Vinha, depois, a mudança da palha do colchão. Esventrava-se o continente do tecido de fazer também sacos de cebolas, com as mãos a ripar os caules de centeio, já esmagados ou desfeitos, no escuro interior acessível pela abertura central. A certa altura, aparecia o primeiro saco de dinheiro, depois o segundo, logo o terceiro…E pairava sempre no ar a dúvida: “Quando a Vó Velha vier, vai já dizer que havia mais um saco com dinheiro ou que os sacos foram desselados”. Um dia, escondeu o cordão de ouro, longo e pesado, em local inacessível e inimaginável, para ter a segurança de que lho não furtavam. Anos depois, lembrou-se dele. Mas não se lembrou do sítio onde o pusera. Vai daí, e escolhe uma vítima – a nora. Agarra-se a ela, exige-lhe a devolução do cordão, trata-a de ladra e cria uma perturbação familiar. Toda a gente de casa se enerva com a questão. Alvitram-se outras hipóteses, testam-se uma a uma, cordão nem vê-lo. Anos depois, quando se resolveu dar uma pintura à casa, caiando as superfícies interiores das paredes, foi preciso tirar os quadros pendurados na sala, onde pontificava um grande santuário sobre uma cómoda e as tradicionais estampas do Coração de Jesus e do Coração de Maria. O Manel topou que, por trás do Coração de Jesus e sobre o prego de suporte, lá estava o cordão alapado. Tirou-o e deu-o à Velha. Luziram-se-lhe os olhos, mas não teve uma palavra de desculpa à ofendida nora.

9.
Era ali a praia, no vasto relvado natural, em planura, com o ribeiro ao meio, demarcada pelos cômoros dos campos e por uma linha de penedos junto ao rio. Sim, era ali a praia! Apesar de ser partilhada com dezenas de vacas que pastavam de sol a sol… E a cada mijada faziam crescer uma mouta de relva mais alta e espessa e a cada cagada marcavam o chão com um monte de bosta… Era ali que se passavam tardes de lazer, de prazer, de ócio, nos meses de Verão. Lia-se, escrevia-se, jogava-se a bola. E, a meio do recreio, abriam-se os sacos da merenda, e lá ia uma maçã, comida com casca, uma sandocha… Era ali, na praia dos tesos, junto ao rio. Nossos olhos enchiam-se da correnteza das águas, dos barcos que passavam e da habilidade de algum pescador à cana, sobre as penedias. Viam-se barbos, muges e tainhas. E, certo dia, até deu para ver, no charco da nascente do ribeiro da Solugares, peixes vermelhos a que se chamava pimpões. E também se apreciou um pescador furtivo apanhá-los todos com o uso duma rede, traiçoeiramente colocada na água, presa a terra dum lado e puxada do outro em fecho de círculo, arrastando nela os lindos pimpões, que não eram muitos. Sentados ou deitados, comungávamos da mesma relva dos bovídeos: não havia outra. E também não tínhamos areal. Nós e a natureza, em diálogo silente e reciprocamente respeitados, digeríamos o tempo, sem olhar ao cenário, apenas preocupados em curtir a amizade de estudantes em férias. Ás vezes, aparecia lá o Adriano, vindo de caíque, sempre com outros compinchas, e trazia a bola. Então, dois paus espetados, um nagalho entre os cabeços, e era jogar voleibol. Pedaços bons, esses! O Adriano era um artista da bola. Não cantava, mas já evidenciava um temperamento triste, um olhar terno e um comovente silêncio de alma. Não tinha muitas palavras. Como nunca teve muitas palavras. É que quem dá sentido profundo à sua mensagem, perde a largura, concentra-se num ponto e daí difunde os sentires de modo agudo e penetrante. Por isso, foi mais tarde um cantor de alma, com voz gemida, rosto apagado e rompendo silêncios. Mais tarde, expulsaram as vacas. Destruíram a relva. E, numa visão hipócrita, encheram a planura de areia. Não aquela que as águas botam em terra e lambem na maré cheia. Mas areia trazida, sabe-se lá donde, em camiões. E, como a Natureza não brinca, a cada cheia do rio corresponde a limpeza desse areio de artifício, que é absorvido pelas águas, regressando a relva, no seu esplendor e direito. Como era linda a Praia de Solugares, com relva, vacas e tudo!

10.
Como era cativante o dia de festa da Senhora das Neves! Logo de manhã, a banda de música corria os caminhos do lugar, em circuito, alternando marchas alegres, saídas do sopro dos inchados tocadores, ou da manipulação de pratos e tambores, com sequências de silêncio em passo acertado. Alinhados atrás, em magotes, os putos seguiam os músicos, em radiante alegria e, com eles, davam a volta à aldeia. O povo, num fru-fru de animada canseira, fazia tudo para corresponder à festividade. Aproveitava-se para pintar as casas. Ou, pelo menos, fazia-se-lhes uma limpeza geral, varrendo e lavando os pisos dos quinteiros e varandas. Até à rua ! E, em muitos casos, o próprio caminho de serventia era limpo, dando um ar de gala ao aspecto geral dos passantes. Essas tarefas ocorriam ao sábado para que o domingo parecesse um dia diferente, no asseio e vaidade das pessoas. Na Quinta do Pessegal, até a campainha da sineta, no seu espelho e puxador de cobre era posta a brilhar com a fricção de dois ou três limões, o afago de panos e a força manual do esfreganço. Aliás, como convinha ! Pois aí se iria concentrar a banda no domingo, para um trecho completo, em homenagem ao proprietário, que era um “brasileiro” rico. E este, em compensação, servia um pequeno-almoço aos executantes. Durante a tarde, havia sempre vida e alegria em dois coretos montados na ocasião: em cada um, instalava-se uma banda, com cerca de vinte e cinco músicos, e era dar aos instrumentos o tempo todo até à meia-noite. O concerto era alternado, de modo a que, enquanto uma banda tocava, a outra descansava. Prestava-se atenção aos músicos, ouvindo-os em pé e como calhava. E teciam-se comentários ao desempenho. Cerca das onze horas da noite, iniciava-se o concerto com o toque de modinhas. As modinhas eram rapsódias de músicas várias, populares ou de folclore, que excitavam de alegria os festeiros. Dava-se então grande relevo ao desempenho do operador de tubos verticais, com o som estridente e o bater dos martelinhos de pau. À meia-noite, a festa acabava, com uma sessão de fogo-de-artifício. De pé ou sentados na relva, os festeiros olhavam para o céu, divisando as bolinhas de cor e os lagartos voadores, os jactos centrífugos de luz, a claridade na noite… e esperavam pela girândola final. Lançada esta, era um troar louco, contínuo e repetido, entre clareiras e fumos, num momento ensurdecedor, mas apaixonante. Seguiam-se três fortes morteiros, que marcavam o fim-de-festa e o regresso a casa. Então, contavam-se os minutos de duração da exibição pirotécnica e comparava-se com a festa do Senhor do Palheirinho, do outro lado do rio, que terminava da mesma forma e também era visível do local. Ao meio da tarde, a procissão dava a volta ao lugar, percorrendo cerca de dois quilómetros, com os cavaleiros da GNR na frente, os andares dos santos da Capela e da Santa Cruz padroeira da freguesia, umas dezenas de anjinhos e santos imitados em criança, os homens e mulheres vestidos de mortalhas funerárias, as sete cruzes transportadas por zeladores, de opas a rigor e o pálio com o sacerdote a exibir a hóstia consagrada ou qualquer relíquia de santo. Atrás, seguia a banda, concentrada e tocando, a espaços. Quando éramos catraios, a festa representava-se para nós como o dia da compra dos sorvetes, da aquisição dum automóvel miniatura em chapa, ou dum pequeno carro de bois em madeira para alimentar as nossas ilusões citadinas ou rurais durante o resto do ano. Fazíamos pequenas garagens no quintal, abríamos estradas e aí brincávamos até que os carrinhos se deterioravam ou se perdiam.

11.
A comunhão solene era um acto obrigatório aos dez anos de cada miúdo. Lembro que esse dia concentrava os familiares no comungante e havia mesa de festa. Mas tive dois percalços incomodativos. O primeiro consistiu em ter espetado uma farpa de madeira num dedo, quando procedia ao banho, metido dentro duma dorna, feita de meia-pipa. Era essa a banheira possível: uma vasilha feita de ripas de madeira, aros de ferro e tampo de tábua, onde se deitavam algumas panelas de água quente e alguns canecos de água fria. O segundo percalço foram os sapatos: estreados para a missa solene da manhã, magoavam-me os pés, criando feridas calosas. De tarde, fui à procissão descalço, embora metido dentro dum fato de calças e casaco preto, camisa branca e laçarote. Nesse dia, o meu padrinho deu-me uma aliança de ouro. Raramente a usava, e nem fazia sentido um rapaz de dez, onze ou doze anos colocar no dedo um tal enfeite. Mas, um dia, coloquei-o e fui para o rio. Meti-me a nadar e perdi-a. Tentei que um pescador mergulhasse no local, a ver se a encontrava, mas era procurar agulha em palheiro. Calei-me muito calado e nunca mais falei no caso a ninguém. Certo dia, quando esperávamos a visita pascal, o meu pai disse-me: “Então não pões a aliança?. Vai buscá-la, que hoje é festa !” Tive então de confessar a perda desse objecto, o que me valeu um raspanete dos antigos. A visita pascal era um fenómeno curioso, que ainda hoje se vê. Trata-se da deslocação de Cristo a cada casa de família cristã, a anunciar a sua ressurreição. O cortejo era composto por um sacerdote, de batina e sobrepeliz, o juiz da cruz, transportando um crucifixo de metal, o carregador da pia de água benta com o hissope e o colhedor de donativos com um saco de pano. No dia, antes da chegada do compasso, os cristãos colocavam um tapete de verdes e pétalas de flores, em frente à porta de entrada, a assinalar que se tratava dum lar cristão, tal como os judeus fizeram no Egipto ao assinalar as portas de suas casas com sangue de cordeiro para serem salvos duma praga de Jeová. À entrada, o homem da Cruz ia à frente, e saudava “Boas festas, Aleluia”, tal como o sacerdote e os demais em repetição. O padre tomava o hissope e lançava água benta sobre os da casa, em acto de abençoar. Depois, todos os familiares ajoelhavam e beijavam, sucessivamente, o crucifixo e a estola do sacerdote, enquanto o homem do saco olhava para a mesa, procurando um envelope com dinheiro, ou uma nota sobre um pires, ou algumas moedas juntas, e rapava para dentro do alforge. E lá continuavam o percurso, depois de retirarem do interior das casas. Em cima das mesas, colocavam-se frutas secas e amêndoas, água e vinhos, e os do compasso, por vezes, pegavam em qualquer coisa, bebiam um copo de vinho ou dessedentavam-se com água. A festa da Senhora das Neves e a festa da Páscoa eram dois marcos importantes da vida do povo de Atães. E ambas reflectiam a religiosidade profunda e o sentido da alegria na fé. Já o Natal não era assim. Enquanto aquelas festas traduziam a exteriorização do espírito da ligação a Deus, este era mais o recolhimento da família em festa. As rabanadas, as filhós, os doces de bolina, a aletria e o bacalhau com batatas animavam a noite. Depois, era o rapa, a pinhões. No dia seguinte, de manhãzinha, era a corrida ao sapatinho para procurar a prenda. Sim, a prenda, e não as prendas, porque normalmente cada um só era beneficiado com uma prenda. E as prendas eram só para as crianças e jovens. Recordo a consoada, em casa dos meus pais. Éramos nove filhos. Cada travessa de bacalhau com batatas e pencas brancas era destinada a três: um comia duma ponta, outro doutra e o terceiro do meio. Não havia pratos nesse dia. Mas a comida sobrava sempre. E, no dia seguinte, aqueciam-se as batatas, as pencas e o bacalhau, numa amálgama tipo meia-desfeita, e era o farrapo-velho. Comia-se, assim, poupando e, nesse poupar, havia alegria, orgulho e satisfação.

11.
Não era tempo de motobombas. Havia as minas, cavadas no subsolo, em longos túneis, abrindo caminho à água da nascente, que circulava por gravidade até aos vários destinos. Havia o poço, donde saía a água, em baldes içados por uma corda, que enrolava e desenrolava num sarilho manipulado por mãos humanas. Havia o engenho de rodar, composto por um conjunto de traves de madeira em carrocel, ou um arco de ferro com prumos orientados para cima, em cone, com um eixo no centro, puxado por uma junta de bois que, afanosamente, calcorreavam um carreiro exterior, em volta do redondel, fazendo girar essa abentesma, cujo movimento se comunicava a uma roda de dois aros, ligados por um conjunto de peças tipo escora, colocada na boca do poço: por esta roda, com eixo horizontal, passava uma corrente de bóias de madeira que, circulando no interior dum tronco, sacavam a água para a superfície. E havia ainda a nora. Semelhante ao engenho, era uma geringonça ligeira que tirava água do poço com uma cadeia de cocos, que enchiam no fundo e despejavam à superfície. As águas de mina, sempre a nascer e a correr, eram mantidas em presas e presotes, pequenas barragens de terra e pedras. E, normalmente, pertenciam a vários lavradores que as usavam, na rega e lima, em consórcio, numa distribuição por dias e meios-dias de cada semana ou quinzena. Às vezes, o trajecto dessas águas percorria quilómetros, desde o local de depósito até ao campo onde eram utilizadas. Todos os anos, antes do início de Verão, havia um domingo em que se encontravam os consortes, depois da missa, para combinarem a limpeza e arranjo da mina, do presote e dos regos que serviam de aqueduto, contribuindo com os seus moços ou familiares na prestação do trabalho. Cada lavrador, no seu dia ou meio-dia de rega, ia abrir o presote e acompanhava a água ao longo dos regos até aos campos, tapando qualquer fuga e mantendo limpo o leito. À chegada ao campo, a água era orientada para o interior por uma barreira de terra e ervas e era conduzida por regos ao longo das tornas ou talhões, limitados por morros de terra. Cada torna era regada por uma abertura no morro delimitador e a aposição dum talhador de chapa de ferro a atravessar obliquamente o rego. Atalhava-se a água até ela se espraiar, ao longo da torna, de modo a chegar ao pé de todas as plantas. Terminada a rega duma torna, levantava-se o talhador, recompunha-se o morro do bardo e acompanhava-se a corrente, em igual operação em novo talhão. Esgotado o período de rega, colocava-se o rolhão no presote para conservar a água e fazê-la subir de cota.

12.
Em Atães, havia um pouco de tudo, ao longo do ano. Campos de milho, centeio, cevada, aveia e trigo, com espigas a bambolear ao vento. Campos de nabos, dando também nabiças e grelos, e as pencas brancas do Natal. E couve galega nos arredores, junto às extremas, em fila ou em várias fiadas. A seu tempo, viam-se terrenos com abóboras, bolinas, melancias, pepinos, melões, calondros e cabaças. Também os pimentos, tomates, malaguetas, morrones e piri-piri. E os campos de linho, com o moinho, que ainda lá existe, mas não mói. A cebola, temporã e serôdia, que constituía um bom negócio para os agricultores. A batata que era também um produto vendido com vantagem. E as beterrabas para alimento de porcos e coelhos. A cultura do crizântemo e a sua comercialização no dia dos Fiéis Defuntos mobilizavam muitas pessoas. A sua acomodação e transporte era feita com recurso a uma espécie de canastro, formado de ripas, horizontais e verticais, onde se encaixavam as flores, como um autêntico andor. Os campos eram extremamente férteis. O solo formava-se de terra negra, havia abundância de água e as leiras recebiam o Sol na posição mais quente. Diversas casas de lavoura mantinham activa a vida agrícola: a Casa do Alves da Aldeia dos Lavradores, a Casa do Alves da Aldeia Nova, a Casa da Quinta da Palmeira, a Casa do Alves Caldeira, a Casa dos da Moreira, a Casa do Fonseca, a Casa do Torneiro, a Casa do Franklin, a Casa do Maximino, a Casa da Aniceta, a Casa do Ramos de Aldeia Nova, a Casa do Macedo, e algumas outras já a perder o estatuto.

José Vigário Silva – Associado nº 2248
Junho de 2006






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