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A Igreja e o Mundo

1. A Igreja Católica nunca se deu bem com tempos e lugares, realçando sempre a ideia da sua eternidade e universalidade.
O que é eterno não perece com os tempos e o que é universal tem uma validade para o todo.
Aí reside a sua grandeza e também o seu calcanhar de Aquiles.
A forma de sobrevoar os dias e os lugares nasce duma figura central mal conhecida (Jesus), dum conjunto de textos elaborados à base de figuras de retórica (a Bíblia) e duma história de vivências e repetições (a Tradição).
Jesus, Bíblia e Tradição são os alicerces da doutrina da Igreja Católica donde, em todos os tempos e lugares, os dignitários e agentes buscaram fundamento para exercer acção sobre as sociedades.
Em cada época e lugar, os intérpretes da doutrina utilizam os sinais dos tempos e os ventos que sopram, daqui e dali, para dizerem o já dito por outras palavras, procurando sempre integrar a evolução histórica e os dados sociais numa teia de parábolas e de símbolos que nunca mudam.
E, quando os inimigos atacam a Igreja, esta enfulipa-se, como um felino perturbado, recuando um pouco e buscando logo o acolhimento de qualquer poder que lhe dê guarida e lhe permita, por emboscada ou por afrontamento, defender-se, atacando. E, nesses momentos, aparece inteira, com todos os seus dignitários sem excepção, numa coesa solidariedade.
Se algum dos seus membros falha ou se desvia, sofre excomunhão e é perseguido.
2. A Igreja Católica conseguiu com a sua metodologia manter uma doutrina inalterada e geralmente aceite nas suas áreas de influência até à Revolução Industrial, à Revolução Francesa e à Revolução Científica.
A partir de então, começou a perder terreno até aos nossos dias.
Relevam várias centenas de anos, em que se baseou na economia agrária, no feudalismo, no sistema de vassalagem e no apoio incondicional ao “Ancien Régime”.
As três revoluções citadas, com cerca de 250 anos, foram a grande machadada na Igreja Católica, até porque todas se desenvolveram contra ela, na medida do seu profundo compromisso com espírito agrário, com a monarquia absoluta e com uma ideologia perene, baseada na ciência dos gregos e romanos e numa concepção primitiva do Mundo e do Homem, à base de mitos, receios e afinações colectivas.
3. As três revoluções citadas trouxeram às sociedades sucessivas gerações de direitos humanos: a democracia liberal, a democracia social, e democracia individual. No primeiro momento, afirmaram-se as liberdades cívicas, o que desencadeou a afirmação de interesses de grupo, permitiu desenvolver-se a intervenção das classes menos favorecidas (partidos operários, sindicatos, associações mutualistas) e destruir a pirâmide hierárquica da sociedade, generalizando as reivindicações e operando uma melhor distribuição dos direitos e do acesso à propriedade.
No segundo momento, avançou para tentativas e tendências em termos de poder político, para a perequação social, operando-se uma redistribuição dos rendimentos e da fortuna, através de sistemas de protecção aos menos desfavorecidos da sorte (Caixas Sindicais, Segurança Social, protecção na doença, na infância, na velhice, no desemprego,....).
No terceiro momento, caracterizado pelo grito da Revolução de Maio de 68, “É PROIBIDO PROIBIR”, nasce o carinho e respeito por minorias incompreendidas como a prostituição, a homossexualidade, as minorias étnicas, os imigrantes, a exigência de protecção dessas minorias, a defesa da punição severa dos políticos e empresários que claudicam, a preocupação pelo meio ambiente, o retorno do Homem à Natureza, a que sempre pertenceu e a inequívoca compreensão de igualdade sexual.
4. A Igreja Católica nunca se adaptou aos novos modelos de sociedade, nascidos das três revoluções.
E, porque o não fez, não detectou os “Sinais da História”, nem os “Ventos dos Lugares”, redemoinhando sobre si mesma, em sucessivas tentativas para apanhar os tempos e os lugares, como a criança que tenta, sem êxito, apanhar um pássaro a voar.
A vontade da Igreja Católica seria engaiolar o pássaro da História num lugar único e irrepetível, mas em vão.
Esboçou a tentativa de elaborar uma doutrina social, que fosse adoptada pelas sociedades como critério ideal do relacionamento entre as classes, equidistante dos interesses dos capitalistas e dos trabalhadores, num esforço para dobrar a História, fazendo de conta que estava com todos, mas colocando-se sempre ao lado dos poderosos.
Fez esforço por dominar o movimento sindical, chegando-se a constituir sindicatos cristãos e centrais sindicais cristãs.
Mas esse esforço não teve êxito.
Modelou a criação de partidos democratas cristãos, mas estes, por sistema, colocaram-se nas posições mais retrógradas, conservadoras ou reaccionárias, e não atingiram a sociedade, mesmo com o sopro no voto dado pelos padres nas homilias.
Recusou sempre subscrever a Declaração Europeia dos Direitos do Homem e filiar-se no Conselho da Europa, porque rejeita a igualdade entre homens e mulheres.
5. O Concílio Vaticano II foi a esperança da inserção da Igraja Católica no movimento da História.
Ele realizou-se para ler os “sinais dos tempos” e os “novos ventos dos lugares”.
O Papa João XXIII, entendendo a colegialidade dos bispos como uma evidência e a comunidade dos teólogos como uma família, imaginou que o Concílio seria uma reunião de escassos dias, porque todos estavam de acordo na mudança.
Mas enganou-se.
O Concílio continuou após a sua morte, com Paulo VI, e este, na encíclica Populorum Progressio, marcou um grande esforço para acompanhar a História, abrindo campo para a teologia da libertação.
Após a sua morte, a Igreja Católica voltou a fechar-se ao Mundo.
O Papa João Paulo II, aproveitando o lado pior do post-modernismo, fez-se aos diversos lugares da Terra, falando aos homens por frases de roda-pé, atraindo a si o espírito de vedeta e produzindo uma imagem, não da Igreja Católica, mas de si próprio, como “o herói de muitas lutas”, mas sem semear qualquer ideia que permitisse relançar a posição da Igreja no Universo, num estilo populista, sem valores credíveis ou programas aceitáveis.
Durante o seu mandato, foi um peregrino das Nações, mobilizou milhões de pessoas, exibiu afectos, mas, no fundo, comportou-se como o Pai Tirano.
Repetiu, vezes sem conta, a rejeição dos direitos humanos, que a História e os lugares, postulam, acentuando a preocupação de manter a desigualdade entre o homem e a mulher, a negação do direito ao corpo, a proibição da sedução, do desejo e da felicidade, a consideração de que o casamento é para procriar, o afastamento da ideia duma maternidade responsável, a insistência nas vantagens do sofrimento, a acentuação da devoção mariana popular e com formas repelentes e indignas, ...
Não percebeu a História, não deixou obra que o futuro aprove... só deixou uma imagem fátua que, a breve prazo, desaparecerá.
Pior não era possível !
6. O Para Bento XVI é um verdadeiro sábio e estudou profundamente os “Sinais da História” e os “Ventos dos Lugares”.
Ele tem seguramente a consciência de que a Igreja Católica não fez a leitura correcta das três Revoluções citadas e, na função papal, vai ter de mexer na doutrina social, na ética, na disciplina interna e nas relações com outras religiões.
Toda a gente tem dele a imagem do Prefeito-Mor do Santo Ofício, por ter estado à frente da Congregação da Doutrina da Fé.
Há mesmo queixas de teólogos que chamou a capítulo por desvios.
Mas, ao que se julga saber, em toda a sua acção, utilizou argumentos e esforçou-se por convencer os desviados.
É um óptimo retor: afirma, mas tenta convencer.
E, seguramente, já percebeu que quem não persuade, fica a falar sozinho.
Ele referiu já a necessidade de evangelizar a Europa: ele sabe que este continente aderiu com entusiasmo às três gerações dos direitos humanos e tem consciência de que não pode lutar contra a Europa inteira, mas tem de ir ao encontro dela. Por outro lado, na relação ecuménica, não pode ignorar a existência da alteridade e saberá distinguir, com segurança, o que é comum a todas a religiões e o que é específico.
Por isso, essa relação passará pela persuasão e troca de argumentos, e não pela imposição da melhor doutrina.
De resto, ninguém aceita imposições.
Espero que o sínodo dos bispos, marcado para Outubro, traga novidades.
Depois, veremos se o Papa Bento XVI é um conservador, reaccionário e antiquado, se um homem do nosso tempo.
7. O Vaticano II fez a tentativa de aderir à Revolução Francesa (1ª geração dos direitos humanos), apelando à colegialidade dos bispos e abrindo a hipótese de identificar a inspiração divina com a vontade maioritariamente expressa em sínodos episcopais.
Por outro lado, dentro duma visão pluralista, apareceu o movimento dos padres operários, dos padres guerrilheiros e dos padres da teologia da libertação, uma identificação com os mais desfavorecidos da sorte e em alegado testemunho do Cristo dos sacrificados da História, que com ele, se juntaram na triunfal entrada em Jerusalém, o que se integra na 2ª geração dos direitos humanos.
Criou-se, no seio da Igreja, a preocupação por uma paternidade e maternidade responsáveis, com centros de apoio a mães solteiras e a divorciados, com aconselhamento no âmbito do controlo da concepção e no sentido de criar famílias que não fossem apenas locais de incubação de filhos, mas instituições de felicidade e prazer de viver, surgiram movimentos e instituições católicas de protecção de pessoas marginalizadas – prostitutas, homossexuais, imigrantes e mendigos.
Aqui avançava-se na 3ª geração dos direitos humanos.
Ao mesmo tempo, a Igreja esforçava-se por evitar conflitos com os cientistas tolerando as suas descobertas (para não cometer o erro histórico contra Galileu); aceitava conviver com a laicidade dos Estados, considerando-a uma opção legítima; procurava orientar, equilibradamente, os conflitos sociais, em ordem à compreensão das diversas classes; e esforçava-se por uma mensagem que levasse conforto a todas as pessoas, aceitando a diferença e a alteridade, numa visão ecuménica, em que as demais religiões também tinham lugar e afastando o princípio “Fora da Igreja, não há salvação”.
João Paulo II, em 27 anos, destruiu todas essas conquistas históricas, chamando a si o exclusivo da verdade e produzindo um discurso de “purificação”, todo ele retórico, com uma dupla mensagem: criar uma imagem exterior de defensor dos direitos humanos e praticar uma disciplina interior de retorno ao passado, nomeadamente, excomungando ou excluindo todos quantos divergissem do perfil que ele entendia.
Ao mesmo tempo, ressuscitou em todo o mundo o fenómeno, já em vias de extinção, da religiosidade popular, acrítica, rocambolesca e estupidificante em torno da Virgem Maria e de exemplos da virtude que canonizou, à pressa e contra uma tradição de excessiva cautela.
E, no sentido de acobertar a Igreja ao poder, agora só económico, dinamizou a acção da OPUS DEI, para conquistar influência nas estruturas dominantes, tal como aconteceu no tempo da economia agrária (antes da Revolução Industrial).
8. É urgente e decisivo que a Igreja Católica retome o Concílio Vaticano II e se adapte ao Mundo criado pela Revolução Industrial, pela Revolução Francesa e pela Revolução Científica.
Para isso, impõe-se retomar a ideia da colegialidade dos bispos, sendo o Papa o seu primaz, no sentido de colher na maioria expressa pelo seu voto a melhor doutrina, no âmbito da fé, da ética e do compromisso com as sociedades.
Depois, criar uma ideia de colegialidade dos padres, em torno do seu bispo, em assembleias diocesanas.
Finalmente, estabelecer nas paróquias a Fábrica da Igreja com um grupo de leigos que tenha também voto em matéria de gestão dos assuntos correntes e sirva de ligação dos párocos às sociedades paroquiais.
Torna-se urgente reconhecer a igualdade sexual, rever o papel da mulher dentro de Igreja e na sociedade, concebê-la como integrada de pleno direito na vida económica e dar-lhe acesso ao sacerdócio.
Impõe-se uma nova teologia do corpo e da vida, assumindo um pensamento voltado para a felicidade e bem-estar individual, mas sacudindo todas as estruturas de intervenção económica e social, baseadas na “Arte da Guerra” e na agressividade dos mais fortes sobre os mais fracos, na conquista dos bens e das consciências.
Releva-se ainda a ideia do direito à diferença e da alteridade, que deve ser cultivada, em ordem a um novo compromisso que respeite as minorias, como ponto de partida, e que as integre na maioria, como ponto de chegada.
A Igreja Católica tem de habituar-se a respeitar os dados da ciência, assumindo-os como conquistas da Humanidade, e reler o seu discurso de acordo com esses dados.
A Ciência está em vias de confirmar definitivamente a inexistência da dualidade – corpo e alma, o que fará cair por terra a ideia de salvação tal como está definida na teologia; mas pode ir buscar a Theillard de Chardin inspiração para um novo modelo de salvação, afastado do pecado original e colocando a ideia de Deus dentro do Universo.
Como metodologia de acção, a Igreja deve entender-se com as sociedades e seus elementos e não com os governos e os poderosos.
Nesse aspecto, o Presidente do Governo Espanhol, face às pressões da Igreja para não aprovar o casamento de homossexuais, deu uma lição clara: “Não pressionem o Governo que legisla de acordo com a vontade do povo que o elegeu. Convençam o povo da maldade dessa lei e ele exigirá a sua revogação”.
A Igreja tem de acabar com a caridade beata e a exaltação do sofrimento, lutando pelo reconhecimento dos direitos dos desfavorecidos e pelo alívio do seu sofrimento.
A Cruz deve ser um sinal do que se não deseja, e não um objectivo.
Finalmente, a Igreja deve ter um papel semelhante ao Zé do Telhado ou ao Robin Wood: pedir aos que têm a mais, para satisfazer os que não têm nada.
Estou seguro de que Bento XVI já pensou nisto tudo: mas não sabe por onde começar.
E é difícil !

José Vigário Silva – Associado nº 2248
Porto, 2005-05-03

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